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NO PLANALTO
Antiamericanismo delinquente produz pró-americanismo irresponsável
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Só há uma coisa pior do que o
antiamericanismo delinquente: é o pró-americanismo irresponsável. Tão execrável quanto a exacerbação do terrorismo é
a proliferação da idéia de que o
direito à justa reparação confere
aos EUA salvo-conduto para
cumprir os desígnios de potência
moral do Universo.
Sob condições normais, já se
costumava aceitar com jucunda
naturalidade a tese de que são
inevitavelmente movediças as
fronteiras do interesse americano.
Pois a fumaça que emana dos escombros do World Trade Center e
do Pentágono como que desenhou sobre o telhado da Casa
Branca um temerário halo de divindade.
O mandato de George W. Bush
emergiu, como se sabe, de urnas
suspeitas. Ele assumiu uma nação dividida. E a maneira mais
eficaz de unir americanos em torno de um presidente sob questionamento tem sido o bombardeio
de territórios alheios. De modo
que a cúpula da ONU pode ir
pensando em como explicar, uma
vez mais, a inutilidade da instituição.
Até a semana passada, imaginava-se que, depois de Pearl Harbor, em 1941, ninguém jamais ousaria alvejar os EUA dentro de
sua própria casa. Os inimigos podiam até enfrentar os americanos
nas inúmeras trincheiras que cavaram mundo afora. Os vietcongues chegaram mesmo a subjugá-los. Mas a memória da retaliação
atômica contra o Japão oferecia
ao americano a utopia da segurança absoluta.
Uma utopia que ruiu junto com
as torres gêmeas do Trade Center.
Sob as ruínas do símbolo da pujança financeira dos EUA, esconde-se a principal novidade deste
início do século 21: os conflitos já
não são movidos a ideologia.
Tampouco são guiados apenas
pelo interesse econômico.
A guerra agora opõe civilizações. De um lado, o Ocidente cristão e o seu fundamentalismo financeiro. Do outro, o indecifrável
Oriente islâmico e o seu fundamentalismo maometano.
Tocados pelo compreensível
emocionalismo dos dias que correm, os americanos encomendam
sangue à Casa Branca. Mas o
cheiro acre dos cadáveres ainda
por contabilizar, um odor que ficará impregnado na atmosfera
dos EUA para sempre, deve conduzir o establishment do império,
num futuro próximo, a uma inexorável fase de reflexão.
Uma coisa é assistir às aventuras militares dos EUA pela CNN,
entre um comercial da Coca-Cola
e outro do McDonald's. Outra
bem diferente é sentar-se num luxuoso escritório de Manhattan e
ter o peito varado por aviões comerciais que irrompem janela
adentro no início do expediente.
São grandes as chances de sobrevir um questionamento da sociedade americana à mania dos
EUA de estender os limites de sua
segurança a localidades tão distintas quanto Coréia, Japão, Vietnã, Cuba, Kuait, Iugoslávia, Colômbia... O exame de consciência
deve passar inclusive por um balanço do tipo custo-benefício do
alinhamento automático com Israel.
Em certa medida, a reflexão de
caráter geral começou a ser feita
antes mesmo dos episódios da semana passada. No livro "A Crise
do Capitalismo", editado no Brasil pela Campus, o megainvestidor George Soros, visto como uma
espécie de terrorista das finanças
internacionais, acusa os Estados
Unidos de praticarem algo que
chamou de "fundamentalismo de
mercado".
Soros escreveu: "Como única
potência militar remanescente e
potência econômica mais poderosa, os EUA estão dispostos a tomar parte de organizações -como a Organização Mundial do
Comércio- que abrem mercados
e, ao mesmo tempo, oferecem proteção ao capital investido; no entanto, resistem energicamente a
qualquer infração de sua própria
soberania em outras esferas. Dispõem-se a interferir nos assuntos
internos de outros países, mas
não estão prontos a submeter-se
às regras que procuram impor aos
demais".
"Pode parecer chocante", prosseguiu Soros, "mas creio que a
atual postura unilateralista dos
EUA constitui uma séria ameaça
à paz e à prosperidade mundiais". Para Soros, os americanos
poderiam se converter em "poderosa força para o bem". Bastaria
que adotassem uma mentalidade
"multilateral".
Ainda segundo Soros, "o sistema capitalista global gerou um
campo de jogo muito desigual. A
distância entre ricos e pobres está
aumentando. Isso é um perigo,
pois um sistema que não oferece
alguma esperança e benefícios
aos perdedores corre o risco de
ver-se dilacerado por atos de desespero".
De tempos em tempos, os americanos são acometidos de um
conveniente surto de amnésia histórica. É como se extraviassem de
propósito nacos de seu passado,
apenas para evitar o encontro
com o remorso. Decorrido mais
de meio século, ainda não expiaram convenientemente, por
exemplo, a culpa pelo que fizeram
em Hiroshima e Nagasaki.
Os japoneses preparavam a rendição antes mesmo de os B-29 decolarem para cuspir urânio radioativo sobre o seu território. A
exibição de musculatura militar
poderia ter sido feita, de resto, em
área desabitada. Teria amedrontado do mesmo jeito.
Mas até hoje Harry Truman, o
homem que ordenou o bombardeio, é tratado como herói. Aliás,
Truman, um sujeito do meio-oeste americano, de modos ásperos,
guarda certa semelhança com o
caubói texano Bush.
Os EUA vivem procurando demônios. O mais recente se chama
Osama bin Laden. Esconde-se no
Afeganistão. Curiosamente, ele
foi inventado pelos próprios americanos, numa fase em que ajudava a exorcizar a União Soviética,
o Satã de outrora.
A eventual eliminação de Bin
Laden pode saciar a momentânea sede de vingança dos americanos. Mas só o encontro do império com a sua consciência pode
mudar os rumos da história. Se os
EUA não se derem conta da sua
própria capacidade para o exercício do mal, novos Bin Laden surgirão para perturbar-lhes o sono.
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