São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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NO PLANALTO

Antiamericanismo delinquente produz pró-americanismo irresponsável

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Só há uma coisa pior do que o antiamericanismo delinquente: é o pró-americanismo irresponsável. Tão execrável quanto a exacerbação do terrorismo é a proliferação da idéia de que o direito à justa reparação confere aos EUA salvo-conduto para cumprir os desígnios de potência moral do Universo.
Sob condições normais, já se costumava aceitar com jucunda naturalidade a tese de que são inevitavelmente movediças as fronteiras do interesse americano. Pois a fumaça que emana dos escombros do World Trade Center e do Pentágono como que desenhou sobre o telhado da Casa Branca um temerário halo de divindade.
O mandato de George W. Bush emergiu, como se sabe, de urnas suspeitas. Ele assumiu uma nação dividida. E a maneira mais eficaz de unir americanos em torno de um presidente sob questionamento tem sido o bombardeio de territórios alheios. De modo que a cúpula da ONU pode ir pensando em como explicar, uma vez mais, a inutilidade da instituição.
Até a semana passada, imaginava-se que, depois de Pearl Harbor, em 1941, ninguém jamais ousaria alvejar os EUA dentro de sua própria casa. Os inimigos podiam até enfrentar os americanos nas inúmeras trincheiras que cavaram mundo afora. Os vietcongues chegaram mesmo a subjugá-los. Mas a memória da retaliação atômica contra o Japão oferecia ao americano a utopia da segurança absoluta.
Uma utopia que ruiu junto com as torres gêmeas do Trade Center. Sob as ruínas do símbolo da pujança financeira dos EUA, esconde-se a principal novidade deste início do século 21: os conflitos já não são movidos a ideologia. Tampouco são guiados apenas pelo interesse econômico.
A guerra agora opõe civilizações. De um lado, o Ocidente cristão e o seu fundamentalismo financeiro. Do outro, o indecifrável Oriente islâmico e o seu fundamentalismo maometano.
Tocados pelo compreensível emocionalismo dos dias que correm, os americanos encomendam sangue à Casa Branca. Mas o cheiro acre dos cadáveres ainda por contabilizar, um odor que ficará impregnado na atmosfera dos EUA para sempre, deve conduzir o establishment do império, num futuro próximo, a uma inexorável fase de reflexão.
Uma coisa é assistir às aventuras militares dos EUA pela CNN, entre um comercial da Coca-Cola e outro do McDonald's. Outra bem diferente é sentar-se num luxuoso escritório de Manhattan e ter o peito varado por aviões comerciais que irrompem janela adentro no início do expediente.
São grandes as chances de sobrevir um questionamento da sociedade americana à mania dos EUA de estender os limites de sua segurança a localidades tão distintas quanto Coréia, Japão, Vietnã, Cuba, Kuait, Iugoslávia, Colômbia... O exame de consciência deve passar inclusive por um balanço do tipo custo-benefício do alinhamento automático com Israel.
Em certa medida, a reflexão de caráter geral começou a ser feita antes mesmo dos episódios da semana passada. No livro "A Crise do Capitalismo", editado no Brasil pela Campus, o megainvestidor George Soros, visto como uma espécie de terrorista das finanças internacionais, acusa os Estados Unidos de praticarem algo que chamou de "fundamentalismo de mercado".
Soros escreveu: "Como única potência militar remanescente e potência econômica mais poderosa, os EUA estão dispostos a tomar parte de organizações -como a Organização Mundial do Comércio- que abrem mercados e, ao mesmo tempo, oferecem proteção ao capital investido; no entanto, resistem energicamente a qualquer infração de sua própria soberania em outras esferas. Dispõem-se a interferir nos assuntos internos de outros países, mas não estão prontos a submeter-se às regras que procuram impor aos demais".
"Pode parecer chocante", prosseguiu Soros, "mas creio que a atual postura unilateralista dos EUA constitui uma séria ameaça à paz e à prosperidade mundiais". Para Soros, os americanos poderiam se converter em "poderosa força para o bem". Bastaria que adotassem uma mentalidade "multilateral".
Ainda segundo Soros, "o sistema capitalista global gerou um campo de jogo muito desigual. A distância entre ricos e pobres está aumentando. Isso é um perigo, pois um sistema que não oferece alguma esperança e benefícios aos perdedores corre o risco de ver-se dilacerado por atos de desespero".
De tempos em tempos, os americanos são acometidos de um conveniente surto de amnésia histórica. É como se extraviassem de propósito nacos de seu passado, apenas para evitar o encontro com o remorso. Decorrido mais de meio século, ainda não expiaram convenientemente, por exemplo, a culpa pelo que fizeram em Hiroshima e Nagasaki.
Os japoneses preparavam a rendição antes mesmo de os B-29 decolarem para cuspir urânio radioativo sobre o seu território. A exibição de musculatura militar poderia ter sido feita, de resto, em área desabitada. Teria amedrontado do mesmo jeito.
Mas até hoje Harry Truman, o homem que ordenou o bombardeio, é tratado como herói. Aliás, Truman, um sujeito do meio-oeste americano, de modos ásperos, guarda certa semelhança com o caubói texano Bush.
Os EUA vivem procurando demônios. O mais recente se chama Osama bin Laden. Esconde-se no Afeganistão. Curiosamente, ele foi inventado pelos próprios americanos, numa fase em que ajudava a exorcizar a União Soviética, o Satã de outrora.
A eventual eliminação de Bin Laden pode saciar a momentânea sede de vingança dos americanos. Mas só o encontro do império com a sua consciência pode mudar os rumos da história. Se os EUA não se derem conta da sua própria capacidade para o exercício do mal, novos Bin Laden surgirão para perturbar-lhes o sono.


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