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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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Presidente da Câmara afirma não considerar imoral ou irregular uso de servidores nos Estados

Cargos especiais não mudam, diz João Paulo

VALDO CRUZ
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

O presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP), disse não considerar imoral ou irregular a utilização de pessoas que ocupam CNEs (Cargos de Natureza Especial) para tarefas em redutos eleitorais de deputados que integram a Mesa da Câmara. Ele não pretende alterar as atuais regras porque, segundo ele, elas não impedem esse tipo de trabalho.
O presidente da Câmara disse que poderá tomar providências caso seja feita alguma denúncia contra funcionário que, nomeado como CNE, não esteja trabalhando, o que configuraria um desvio.
Segundo João Paulo, problema haveria se os CNEs não estivessem trabalhando. Sobre o uso, em gabinetes e lideranças parlamentares, de CNEs lotados nas comissões permanentes da Casa, João Paulo afirmou que é preciso avaliar caso a caso.
Leia a seguir trechos da entrevista que foi concedida à Folha na última quinta-feira no gabinete da presidência da Câmara, em Brasília.
 

Folha - Que providência o sr. e a Câmara irão tomar a respeito da atuação dos CNEs?
João Paulo Cunha -
Primeiro eu queria dizer que não dei entrevista antes [à Folha] porque estava muito envolvido com a votação da reforma da Previdência. Na semana passada, gastamos dois dias até muito tarde [no plenário]. Na quinta-feira, fiquei muito esgotado. Na sexta, tive reunião com os governadores. No domingo, fui para o Uruguai e acabei, por absoluta falta de tempo, não conversando [com o jornal]. Estou acompanhando as reportagens com bastante cautela para depois a gente ver em que a gente vai poder tomar de iniciativa. Mas, por enquanto, nenhuma.

Folha - Os CNEs são cargos necessários?
João Paulo -
A Câmara tem um quadro de funcionários efetivos, tem os funcionários dos gabinetes e depois criou uma quantidade de cargos, que não são do deputado, relacionada a uma determinada função [que o deputado exerce]. Uma atribuição a mais. Mesa, lideranças. No caso das lideranças, há uma tabela proporcional ao tamanho da bancada. Dependendo da bancada, haverá um número de CNEs. O PT, por exemplo, é a maior bancada e deve ter 52 CNEs. Você tem essa parte da estrutura da Câmara que é estritamente de confiança da função que o deputado se investe em determinado momento e circunstância. Portanto não pertencem a mim e a ninguém os CNEs. Pertencem à função. As lideranças têm, todas as comissões permanentes têm, as especiais, as comissões de inquérito, o procurador, o conselho de ética, o ouvidor, a Mesa. E existem CNEs na Casa que exercem funções administrativas. Nesse caso, o caminho natural será esgotá-los por meio de concurso.

Folha - Quantos CNEs estão hoje na Casa?
João Paulo -
Todos estão na Casa.

Folha - As reportagens da Folha mostraram vários deles vivendo nos Estados.
João Paulo -
Eu não sei a opinião de vocês, mas vocês não acham razoável que o presidente da Câmara tenha dois, três, quatro ou cinco funcionários a mais para lhe dar suporte no Estado de origem?

Folha - Mas o regulamento dos CNEs diz que eles deviam estar lotados na Casa.
João Paulo -
Isso é uma interpretação. Você poderia ser tão rigoroso a ponto de chegar a essa conclusão, mas não é absoluta essa visão. Porque, na realidade, quando você coloca um CNE designado para cumprir uma função, ele pode, de repente, para cumprir aquela função relacionada a determinado cargo, estar em outro lugar, não tem problema. O erro seria se a pessoa não estivesse trabalhando. Se ele estiver registrado e não estiver trabalhando, esse sim tem de ser punido, demitido sumariamente.

Folha - O sr. não vê problema nenhum no fato de CNEs lotados na área administrativa da Casa trabalharem nos Estados?
João Paulo -
Mas não estão lotados na administração da Casa. Uma parte dos CNEs fica na administração mesmo. Eu estou lhe dando um exemplo, minha secretária tem um CNE. Fora isso, na diretoria geral da Casa há alguns CNEs. Na Secretaria de Comunicação, se você for lá, há vários jornalistas que são CNEs.

Folha - A atribuição da Mesa não é administrativa? Cada secretaria não tem uma função específica?
João Paulo -
Não, claro que não. Não é só administrativa. Nenhum deputado exerce uma função somente administrativa.

Folha - Se é política, por que então esses CNEs...
João Paulo -
Eu não estou dizendo que é política. Estou dizendo que não é só administrativa a função do deputado que tem qualquer cargo. Vejamos na Mesa. O presidente pode ter alguns cargos, um, dois, três, quatro, cinco, que o auxiliem. Veja bem, qual é o problema? Eu sou um deputado normal em São Paulo e tenho a minha estrutura de deputado, mas quando eu viro presidente, o meu trabalho multiplica por cem, do ponto de vista administrativo e do ponto de vista político. O presidente da Câmara chega a São Paulo, eu não estou falando do deputado, não tem um motorista, um segurança, uma secretária, um assessor para nada. O cargo do meu gabinete de deputado continua fazendo o trabalho de deputado. Agora, alguns fazem o meu trabalho de presidente. Será que isso é injusto? Eu não acho que seja.

Folha - [Os CNEs] podem acompanhá-lo, mas estar baseados ali o ano inteiro, esperando o sr.? O sr. vai quantas vezes a Osasco (SP)?
João Paulo -
Eu vou... tem mês que eu vou uma vez por semana. Toda semana, praticamente.

Folha - E durante a semana, eles ficam no seu aguardo?
João Paulo -
Não. Não ficam no meu aguardo. Ficam fazendo coisas para mim. Se eu lhe mostrar a agenda que eles fazem, você vai ver o quanto que eles trabalham.

Folha - Todos eles declararam que o trabalho é político.
João Paulo -
Mas é político mesmo.

Folha - O sr. pretende rever o ato número 11, que regula a frequência do CNE e autoriza o titular da área a liberar ou não o ponto?
João Paulo -
Se você tem o servidor que é digitador, que tem de chegar às 9h e ir embora às 17h e digitar dez processos, esse tem de assinar o ponto ao lado da mesa dele. Agora, se você tem um assessor que faz múltiplas ações, ou seja, faz ação política, vai visitar um ministério, prefeitos, vereadores, deputados estaduais e acompanha determinado assunto, eu não preciso pedir um ponto diário para ele. O que eu tenho de saber é se ele fez aquele trabalho para o qual foi contratado. Se fez, não tem problema.

Folha - O sr. manterá o ato?
João Paulo -
Vou [manter]. Só se me for apontada uma coisa muito desproporcional.

Folha - E o posicionamento do presidente do Conselho de Ética (Orlando Fantazzini, PT-SP), que pediu uma atitude imediata da presidência para resolver os desvios de função?
João Paulo -
Eu recebo a manifestação do presidente do Conselho de Ética com muito respeito. Só que ele precisa me mostrar, mandar um expediente para cá, porque, até agora, ele só falou com o jornal, não falou com o presidente. Então ele tem de mandar um expediente para o presidente, dizendo quais são os desvios de função existentes, para que eu tome as medidas. Enquanto não for apresentado, não tem o que fazer.

Folha - Quando o sr. diz que o CNE foi criado não para a figura do deputado, mas para o cargo, não seria mais justo que pessoas concursadas trabalhassem?
João Paulo -
Acontece que essa Casa se move também por doutrinas, por filosofia, por pensamentos. E são pensamentos diferentes. Um presidente da comissão "x", sendo do PC do B, leva determinadas pessoas que pensam como ele. Sabe quantos expedientes foram protocolados aqui neste ano? Dezoito mil. [Houve] 1.200 depoimentos, 500 audiências. A comissão tem corpo técnico concursado que independe do presidente. O presidente da comissão leva os CNEs para auxiliá-lo diretamente. Na Mesa, o presidente é o que tem mais, 21.

Folha - É justamente por esse acúmulo de trabalho que é difícil entender por que as pessoas estão nos Estados.
João Paulo -
Elas auxiliam, por exemplo, em uma demanda, sei lá, de 20 prefeituras para discutir o texto da reforma da Previdência. Veja bem, eu não posso ir. Então eu peço para meu assessor. [Nas] discussões sobre o PPA em São Paulo, foi meu assessor. Meus assessores fazem contatos com vereador, prefeito etc.

Folha - O ouvidor entende que é preciso contratar mais pessoas para evitar esse problema de desvio. O sr. concorda com ele?
João Paulo -
O problema não é esse. Se você me apontasse que CNEs lotados na administração, não nos cargos políticos...

Folha - Apontaria a Mesa administrativa...
João Paulo -
Mas não é só administrativa. Você acha que minha função é só administrativa?

Folha - O ato que designa funções dos CNEs em nenhum momento fala de trabalho político.
João Paulo -
Mas fala que o presidente da Câmara terá tantos CNEs para desempenhar sua função.

Folha - Que é administrativa...
João Paulo -
O presidente só tem função administrativa?

Folha - Mas é eleito para isso.
João Paulo -
Sou eleito para isso, mas eu toco só a administração?

Folha - O ato não estabelece que os CNEs possam atuar nas bases...
João Paulo -
Mas não fala o contrário. Não é absoluto isso.

Folha - E o caso do CNE lotado nas comissões que trabalha para deputados, lideranças. Não é um cargo técnico, da administração?
João Paulo -
Não é só isso. Você tem um corpo técnico efetivo da Casa em cada comissão. O presidente da comissão tem três cargos e nomeia. O trabalho desse nomeado pode se dar aqui ou em outro lugar.

Folha - No caso de os CNEs de comissão estarem trabalhando nos gabinetes, nas lideranças...
João Paulo -
Depende da situação. Cada caso é um caso. Precisa avaliar bem.

Folha - O sr. disse que não vai tomar nenhuma atitude. Mas a médio e longo prazos, existe algum projeto para rever os gastos com CNEs?
João Paulo -
Nós estamos trabalhando uma política geral de recursos humanos, que envolve CNEs, servidores efetivos, diretoria. Estamos preparando.

Folha - Esses 1.960 CNEs não são muita gente? Cada deputado já tem a sua cota para contratar os seus assessores particulares. Além disso, mais os CNEs?
João Paulo -
Nas lideranças, devemos ter uns 300. Na hipótese de multiplicar por quatro, 1.200. Esses CNEs não prestam serviço para um deputado, mas para a liderança. Não beneficiam um deputado, beneficiam a produção completa.

Folha - O sr. não havia prometido durante a campanha para a eleição da Mesa que iria atacar a questão dos CNEs, moralizar...
João Paulo -
Não. O que eu falei é que eu não iria aumentar. Foi isso o que eu falei.

Folha - O sr. aumentou em seis (até a semana passada).
João Paulo -
Sim. Mas hoje eu diminuí nove.

Folha - Ao contrário da grande maioria dos deputados, o presidente de comissão tem CNEs em mãos e pode colocá-los no seu gabinete ou na base dele, o que o sr. disse que é lícito, de certa forma fazendo campanha para o deputado. Isso não cria um desequilíbrio?
João Paulo -
Tanto isso não cria nenhum problema na Casa que ninguém reclama. Porque você tem o bônus político de ser o presidente da comissão, é verdade. E esse bônus permite contratar até três [CNEs], que podem chegar a 12. Mas a demanda que ele tem é muito grande. Mesmo nas comissões menores, a demanda é muito grande.

Folha - Há algo que o sr. possa fazer para moralizar essa questão?
João Paulo -
Mas eu não acho que seja imoral.

Folha - Nada a ser feito?
João Paulo -
Eu não acho que seja imoral, não significa que não há nada a ser feito.

Folha - Se não é ilegal que o CNE faça campanha política, não seria mais transparente deixar isso claro?
João Paulo -
Mas aí são interpretações diferentes. Para os cargos que são caracterizados como cargos políticos na Casa, do nosso ponto de vista, não há problema. O que não pode é ter gente nomeada na Câmara que não trabalhe. Isso é que não pode.

Folha - Se é o titular do órgão que determina se a pessoa trabalha ou não, ele não pode simplesmente dizer que ela está, mas não está? Isso não preocupa a Casa?
João Paulo -
Mas eu não posso partir do princípio de que o deputado é malandro. Não vou falar que o deputado é malandro e está assinando o ponto de quem não trabalha.

Folha - O ato que libera o ponto não está errado?
João Paulo -
Não. Não está errado para essas funções.

Folha - Qual o critério adotado para decidir quantos cargos vão para tal secretaria, quantos vão para outra?
João Paulo -
Há uma tabela.

Folha - Essa tabela foi criada como, com que critério?
João Paulo -
Há... Nenhum. No caso da Mesa, eu não sei.

Folha - O sr. pretende rever isso?
João Paulo -
Não, não vou rever.

Folha - Quando o sr. assumiu, não ocorreu de rever isso?
João Paulo -
[Rindo]O que me ocorreu foi montar a comissão da reforma tributária e da Previdência para ver se a gente melhora esse negócio. Mas não me ocorreu, não. Você vê que eu nem fui atrás para descobrir a origem disso.



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