São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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SINAIS DA NATUREZA

Encontro no Ceará reúne "meteorologistas naturais"

Profetas do sertão miram o horizonte para farejar chuva

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Chico Leiteiro, um dos "profetas", mostra o facão que havia sido colocado em um cupinzeiro para "prever" chuvas no sertão


FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A QUIXADÁ

"E aí, seu Chico Leiteiro, chove?" Do alto da árvore, Francisco dos Santos mostrou: "Cupim com asa, sinal de chuva".
Era domingo de céu sem nuvens -"descascado"-, pouco mais do meio-dia, e Chico Leiteiro (o apelido vem da ordenha e distribuição de leite que faz), 66, alcançara com agilidade o cupinzeiro, um dos elementos que usa para prever o "inverno" (a época das chuvas) na região de Quixadá, das mais secas do Ceará.
No dia anterior, sábado, último dia 10, mesma roupa, chinelos e meio-sorriso, apesar de menos à vontade por falar com microfone para quase cem pessoas, ele apresentou a previsão no Encontro de Profetas Populares: a reunião que une em janeiro, desde 1996, meteorologistas profissionais e amadores, geógrafos e, em média, 20 "profetas da chuva" da região no auditório da associação de lojistas da cidade.
Os "profetas", convidados pelos organizadores entre os reconhecidos por saber se vai ser ano de fartura ou seca, vieram, na edição de 2004, de quatro cidades: Quixadá, Banabuiú, Ibaretama e Camocim.
Na platéia, alguns agricultores, secretários municipais, gente da cidade e uma dúzia de repórteres de jornais, da TV e de rádios.
Ao lado dos cupins de Leiteiro, as observações do horizonte, do comportamento de animais e das pedras de sal ao ar livre (veja as "experiências" em quadro) -métodos passados de pai para filho ou desenvolvidos ao longo do tempo-, sem contar predições em sonhos e visões.

"ANO DE QUATRO"
"Digo que não é um "ano de quatro" como a gente esperava", disse, grave, outro profeta, Espedito Silva. É que a previsão poderia desmanchar a expectativa boa, tradição nos sertões, de que "ano de quatro" -os terminados em quatro- são muito bons de chuva. Era preciso ter certeza: "Pegar esse nome de profeta para quando acabar errar... É muito ruim. Peço em sonho ao meu anjo da guarda que me diga a verdade".
O meteorologista da Funceme (órgão oficial de previsão no Estado), lado a lado com os "profetas", falou de El Niño, um dos fenômenos causadores da seca. Um geógrafo professor da Universidade Estadual do Ceará fez suas ponderações. Entre os depoimentos, "profetas" que acumulavam a função de poetas recitavam. Houve cantoria de viola e um deputado federal apareceu de surpresa, ao final, para falar aos profetas em nome da bancada do Nordeste.
Como em todos os anos, não saiu ata nem parecer unificado da Babel. E nem poderia, já que o clima entre alguns profetas não é dos mais límpidos. Alguns desautorizam a previsão dos colegas -"Não tem nada a ver chuva com olhar formiga, cupim. O que importa é olhar o mês de julho anterior"- e desafiam até a Funceme (o órgão só deve apresentar sua previsão oficial de chuvas para 2004 na sexta-feira, mas antecipou que as chuvas devem ficar dentro na média histórica).
Ainda assim, as rádios da região e até os jornais, porém, acabam, ao final dos encontros, reproduzindo uma espécie de placar (ou a "profecia mais freqüente"). O de 2004 ficou assim: 18 previsões para boas chuvas, contra 2 para tempo "desmantelado" (sem regra).
Foi o gerente de concessões da Cagece (a companhia estadual de água), Helder Cortez, que teve a idéia de convidar profetas -espalhados, ainda hoje, no Nordeste rural, tradição debitada à herança indígena e, em parte, à ibérica- para a conferência inédita, quase inverossímil. Conseguiu o apoio dos lojistas da cidade, da prefeitura e, em alguns casos, meios para trazer os "profetas", que não recebem dinheiro para ir ao encontro.
Gilmar de Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará e estudioso da cultura popular, explica o termo: "Essa construção "profetas da chuva" me parece não vir deles, mas de fora. Como vivemos um processo muito doloroso de expectativa de chuva, talvez tenham passado a chamá-los de "profetas da chuva" e não algo como interlocutores da natureza. Muito em função da nossa carência, mas em função também da popularização da profecia no Nordeste brasileiro".
Foi em Quixeramobim, cidade da qual Quixadá se desmembrou, que nasceu Antonio Conselheiro (1830-1897), o profeta mais famoso do Nordeste.
Desde a época de Conselheiro que chover ou não é variável determinante em Quixadá. A região foi a primeira do país a receber obra contra a seca -o açude Cedro, construído de 1888 a 1906. É também lugar de memória dolorida das grandes secas. E é lá que 12 mil pessoas dependem, hoje, de carros-pipa para sobreviver.

A CIÊNCIA E OS PROFETAS
Nesse cenário, a repercussão e a força dos "profetas" chegam a ser mais do que curiosas. "Pela necessidade, na primeira chuva, o pequeno produtor planta. Ele precisa comer. Se a previsão tiver sido ruim, ele reza para que ela seja errada", diz o meteorologista da Funceme, Namir Mello.
As "experiências" dos profetas ainda não foram confirmadas cientificamente. Mas há indicativos, dizem meteorologistas, de que o comportamento de animais pode, sim, ajudar a previsão.
Para a Funceme, participar do encontro têm objetivo estratégico: aproximar-se dos "profetas", já que têm a simpatia popular.
A tentativa é melhorar a comunicação com seu público e aumentar a credibilidade, arranhada desde o erro histórico em 1993. Naquele ano, o órgão previu boas chuvas, mas houve seca. "A previsão deles calibra o sentimento, a esperança do sertanejo", diz o presidente da fundação, Francisco de Assis Souza.
Para o professor Carvalho, tal conduta pode ser questionável: "Há uma apropriação pela cultura oficial desse saber popular. Tem um lado interessante, de valorizar, mas às vezes parece ser forma de livrar responsabilidade de quem tem que tratar isso como uma maneira rigorosa, técnica".


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