São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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ELIO GASPARI

A injustiça brasileira é o homem quem faz

Toda vez que a ONU divulga seus índices de desenvolvimento humano, bate a culpa no andar de cima de Pindorama. Somos um dos países mais injustos do mundo, mas o que se há de fazer? Talvez a bolsa Vuitton tenha sido um exagero, mas uma andorinha não faz verão. (A bolsa era falsa, mas deixa pra lá.)
Aqui vão duas vinhetas ilustrativas da má vontade do andar de cima em relação a tudo o que possa ajudar a turma de baixo e da serenidade com que se convive com as tungas impostas aos pobres. O primeiro caso refere-se ao estabelecimento do Bilhete Único nos ônibus municipais de São Paulo. O segundo é seu oposto. Refere-se ao custo do ICMS cobrado em cima do consumo de energia elétrica dos trens que transportam os passageiros do metrô do Rio e da Central do Brasil.
Desde junho, os paulistanos pagam R$ 1,70 por duas horas de uso dos ônibus municipais. O preço independe do número de ônibus que o cidadão toma. Essa modalidade de integração melhora a renda do andar de baixo e a qualidade de vida dos trabalhadores. É uma política que beneficia os pobres e, quanto mais pobre for a pessoa, maior será o benefício. Pelo seguinte:
Se o trabalhador tomava dois ônibus para ir trabalhar, pagava quatro bilhetes, R$ 3,40 na ida e R$ 3,40 na volta. Agora economiza R$ 68 por mês. Mais: no início deste ano havia em São Paulo 300 mil pessoas fazendo a pé percursos de mais de uma hora por dia. As pessoas que caminhavam para não pagar o segundo bilhete estão viajando de ônibus, sem pagar mais.
Faz muito tempo que não se toma no Brasil uma providência de tamanho alcance social. Em um mês, queimando capacidade ociosa, conseguiu-se aumentar em 9,5% a utilização do sistema de ônibus municipal e em 1,8% a arrecadação. Em vez de se falar em copiá-la, começou um muxoxo tucano: "Isso tem subsídio".
Um dos críticos do programa chegou a dizer que "quanto mais der certo, maior o problema". Bingo: se a choldra usar o sistema público de transportes, ele entra em colapso.
Não se reclama do fato de o doutor Anthony Garotinho cobrar uma alíquota de 30% de ICMS sobre o preço da energia consumida pelos trens do metrô e da Central do Brasil que transportam os trabalhadores cariocas. É o mesmo imposto que se cobra ao uísque. Trata-se de uma mordida no orçamento de 800 mil passageiros/dia. Os 370 mil trabalhadores que usam diariamente os trens da Central do Brasil têm o primário ou o curso secundário incompleto, 80% deles têm menos de 40 anos e ganham até dois salários mínimos.
O ICMS da energia dos trens cariocas sai por R$ 0,05 ou R$ 0,07 por viagem ao trabalhador. O equivalente a uma refeição por mês. Se o cidadão usa o trem e o metrô na mesma rotina, ele paga de ICMS mais de R$ 8 por mês, ou três refeições. Graças a Mário Covas, em São Paulo a alíquota é de 12%. Se Garotinho reduzir sua mordida para o nível paulista, o número de refeições pagas pela diferença devolvida à patuléia superará, de muito, as que são feitas em seus restaurantes populares.
Por que o Brasil é um dos países mais injustos do mundo?
Porque, quando a Prefeitura de São Paulo toma uma providência que beneficia os pobres, parece que a cidade está diante do retorno da febre amarela. Quando Garotinho morde os passageiros do metrô e dos trens dos trabalhadores, ninguém estranha.
Nunca é demais relembrar um trecho do magnífico livro "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro 1808-1850", da professora americana Mary Karasch, referindo-se aos padecimentos dos negros:
"Eu diria que o simples descaso desempenhava um papel mais significativo do que a crueldade direta. (...) Em 1830, a Santa Casa teve de pedir aos senhores que não mandassem escravos vivos para o cemitério".

A PPP do general Pinochet pifou

Já que o general chileno Augusto Pinochet entrou na galeria dos ditadores de malas milionárias (entre US$ 4 milhões e US$ 8 milhões no Riggs Bank de Washington) e o Brasil discute as Parcerias Público-Privadas, as PPPs, vale contar a história de dois servidores públicos que desbarataram uma maracutaia de alto nível. Seus nomes: Raul de Vincenzi e Ramiro Guerreiro. A época: 1980. Seus cargos: embaixador do Brasil em Santiago e ministro das Relações Exteriores. Suas histórias:
Em janeiro de 1980, De Vincenzi esteve com o chanceler chileno e ele lhe contou, reservadamente, que o então presidente brasileiro, João Figueiredo, "teria manifestado interesse especial" na entrega da obra de duas hidrelétricas chilenas a um consórcio de empresas brasileiras (Odebrecht-Engesa).
De Vincenzi apressou-se em perguntar ao governo brasileiro, por escrito, se o interesse de Figueiredo era verdadeiro, lembrando que, para o tipo de obra que os chilenos queriam, qualquer grande empresa brasileira poderia fazer a obra.
O ministro Guerreiro, entrou em campo, sempre por escrito, com novas informações a Figueiredo:
"O coronel Sergio Arredondo (assistente de Pinochet e um dos mais famosos assassinos da ditadura chilena), ex-adido militar do Chile em Brasília, teria aludido que a preferência de Vossa Excelência recairia sobre o consórcio Engesa-Norberto Odebrecht, dada a tradição mantida no Chile e o estrito relacionamento da primeira empresa com as autoridades militares chilenas".
A conduta dos dois diplomatas criou um clima de barata-voa no Planalto, e um assessor de Figueiredo apressou-se em esclarecer:
"O Arredondo efetivamente tratou com o presidente da República do assunto Odebrecht-Engesa. Foi consultado sobre se tinha alguma restrição. Respondeu negativamente, dizendo que a Odebrecht era uma empresa de confiança. (...) Não me recordo de que o presidente da República tivesse feito qualquer manifestação de preferência pela Odebrecht. Apenas disse que veria com bons olhos a adjudicação da obra a uma empresa brasileira".
À primeira vista, De Vincenzi e Guerreiro poderiam parecer ingênuos. À segunda vista, representavam o que há de melhor na burocracia brasileira: o hábito de tratar dos assuntos do Estado por escrito, dando nome às boiadas e aos boiadeiros. As negociações prosseguiram, noutros termos.

O Idec persegue a tunga de 1989

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) é uma daquelas instituições que fazem parte do imaginário cosmopolita da banca brasileira. Coisa de país civilizado, portanto, nada mais antinatural do que pretender que uma coisa dessas funcione no Brasil. Pena, o Idec funciona, pega no pé dos bancos desde 1990 e está convocando os cidadãos lesados em 1989 numa tunga embutida no chamado Plano Verão.
A ekipekonômica da época decidiu que no mês de fevereiro de 1989 as cadernetas de poupança não teriam seu saldo corrigido pela inflação (42,72%). Elas seriam remuneradas por outro índice, valendo 23,35%. Deu-se um mimo aos bancos no valor de 20,46% dos depósitos. Em dinheiro da época, um ervanário de quase US$ 1,5 bilhão.
Desde 1990, o Idec briga pelos tungados. Conseguiu 28 decisões favoráveis na Justiça, beneficiando 500 consumidores cujas cadernetas estavam principalmente no Itaú e na Nossa Caixa. A banca brigou bonito. Só o Itaú interpôs seis recursos e ajuizou duas ações paralelas. Nas próximas semanas, o Idec vai executar o Banco do Brasil.
Toda pessoa que tinha caderneta de poupança em janeiro de 1989, com aniversário entre 1º e 15 de fevereiro daquele ano, tem direito a ir buscar o seu, com todas as correções legais. Quem tinha Cr$ 10 mil perdeu Cr$ 2 mil. Em dinheiro de hoje, isso vale R$ 40 mil. Os consumidores habilitam-se depois a conseguir um extrato de suas contas. O instituto ensina o que pode no endereço www.idec.org.br ou pelo telefone (0xx11) 3874-2152. Pode-se ir buscar a tunga sofrida por pessoas que já morreram.
Os interessados podem cuidar de seus interesses sem recorrer aos serviços do Idec. Eles custam, de saída, R$ 280, e a batalha pode durar uns cinco anos. Portanto, parece que a briga será antieconômica para quem pretende ir buscar menos de R$ 1 mil.

Patrimônio
Aberto o testamento de um destacado homem público brasileiro falecido recentemente, resultou um patrimônio financeiro e, sobretudo, imobiliário, de algo como US$ 20 milhões, partilhado entre três herdeiros.

Vôo tucano
O PFL já tem candidato a presidente. É o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Falta combinar com um pedaço do PSDB.

Hospital ocioso
Desde a posse de Lula, o comissariado petista viveu na ilusão de que teria a imprensa à sua porta, de pires na mão. Mais precisamente, de teclado na mão à porta do velho e bom BNDES.
Os comissários e o doutor Carlos Lessa, presidente do banco, foram para a porta do BNDES, apregoaram seus empréstimos, mas não conseguiram clientes. Na semana passada, as empresas jornalísticas mandaram o BNDES passear.
O doutor Lessa divertia-se lembrando aos empresários que seu banco era freqüentemente chamado de "hospital", o que o honrava, pois teve parentes médicos.
À diferença dos parentes, ficou sem pacientes.

ANS sem S
Ou a Agência de Saúde Suplementar não acredita nos planos de saúde que fiscaliza ou não acredita que os cidadãos precisem deles. Ela não dá cobertura de saúde aos seus mil funcionários. Salvo alguns exames periódicos, a turma da ANSS está na fila do SUS.

PetroAbolição
A Petrobras informa que suspendeu a compra de álcool da Usina Santa Cruz, de Campos. Ela teve seus bens tornados indisponíveis pela Justiça Federal, para garantir o pagamento de indenização de R$ 5 milhões por danos morais coletivos a 186 trabalhadores aliciados em condições degradantes de trabalho.
A usina, como sempre sucede, diz que não foi ela quem contratou os escravos. Foi Gollum.
Agora, terá de se explicar à Petrobras.

Mantega viajou
Nos primeiros meses do governo Lula, o ministro do Planejamento, Guido Mantega, disse ao Congresso que o ajuste fiscal da ekipekonômica poderia ser conseguido pela simples economia de despesas. Início de governo é assim mesmo. Todo mundo acha que o antecessor gastou demais e que conseguirá gastar muito menos. Mantega prometia uma economia de 10% a 30% e disse o seguinte:
"Só para dar uma idéia, em geral, quando o governo federal adquire uma passagem aérea, ela acaba saindo sem desconto, temos observado que compramos a passagem pelo valor cheio. Então, evidentemente, poderemos fazer gestões junto às empresas aéreas. Com o gasto de R$ 309 milhões, quase poderemos constituir uma empresa aérea do governo federal e, evidentemente, deveremos obter descontos para a aquisição de passagens aéreas".
Noves fora um avião importado de R$ 172 milhões (com chuveiro) para o companheiro Lula, o planejamento de Mantega não aconteceu, ou não funcionou. Em 2002, o governo gastou R$ 514 milhões com passagens aéreas, apenas R$ 5 milhões a menos que o tucanato no seu último ano de poder.
Felizmente, o doutor Mantega não criou sua aeroestatal.


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