São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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Delírio no Planalto: Nobel e ONU falseiam lista

Não deu outra. Diante da reclassificação do Brasil na lista mundial do Índice de Desenvolvimento Humano, o governo tomou o pior caminho, o da mistificação.
Até o ano passado, o Brasil estava em 62º lugar e tinha acabado de entrar para o andar de cima, no grupo dos países com "alto desenvolvimento humano". Enquanto a notícia foi boa, a metodologia era ótima e a ONU, que patrocina o estudo, foi casa de sábios. A nova lista, feita a partir de um novo cálculo, mandou-o para a 79ª colocação, no andar do meio.
Essa metodologia alterou a influência que a riqueza do país tinha na determinação do bem-estar dos seus cidadãos. Num país com a renda bem usufruída, a mudança foi pequena. Para Pindorama, grande.
O relatório deixa claro que os números brasileiros de 1997 indicam um avanço das condições do país, seja qual for a metodologia usada. O Planalto, como sempre, soube dos números com tempo suficiente para estudá-los.
Podia-se esperar que um governo presidido por um professor universitário desse à choldra a esmola da tolerância e do senso crítico.
Nada disso. Optou pela empulhação.
Primeiro veio o porta-voz do Planalto, dizendo que o novo sistema de cálculo "falseia a comparação". Se o governo acha isso, é pago para explicar onde está a falsificação. Seria um bonito debate. Abrilhantaria a programação da provável visita do prêmio Nobel de Economia Amartya Sen a Brasília. Como ele é o autor da nova fórmula, seria divertido vê-lo defendendo-se da acusação de falsário. (Não vão acusá-lo, vão bajulá-lo como se fosse o marajá de Jaipur.)
Pode-se entender que o porta-voz do Planalto diga grosserias desse tipo, pois está lá para repetir o que ouve. Mais dificil é entender a adesão à marquetagem do professor Roberto Borges Martins, presidente do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada, o Ipea.
Ele saiu-se com a seguinte:
"Suponha que você esteja medindo crianças em centímetros e determine que serão consideradas altas aquelas que, aos 14 anos, tenham 160 cm; aí, você muda o critério de aferição e passa a medi-las em polegadas, mas considera altas só as crianças que tenham, na mesma idade, 160 polegadas. A criança de 160 cm teria que passar a medir 400 cm para ser considerada alta".
Empulhação, da braba.
Para ficar no grau de sofisticação intelectual do doutor Borges Martins, aconteceu mais ou menos o seguinte:
Suponha que você esteja medindo pessoas em centímetros e determine que serão consideradas saudáveis aquelas que, aos 18 anos, tenham mais de 160 cm de altura, R$ 5 mil no banco e 60 quilos de peso. Pelo critério antigo, uma pessoa com 165 centímetros, R$ 7 mil no banco e 30 quilos de peso era considerada saudável. Pelo novo, foi mandada para o hospital, por desnutrida.
Num exemplo concreto: brasileiros e costarriquenhos têm, na média, praticamente o mesmo poder de compra. Na Costa Rica a expectativa de vida é de 76 anos. No Brasil, 66,8. Na Costa Rica há apenas 5% de adultos analfabetos e, no Brasil, 16%. A taxa de mortalidade infantil brasileira é três vezes maior que a costarriquenha. Na metodologia antiga a Costa Rica estava em 56º lugar e o Brasil, em 62º. Na nova, um subiu para 45º (no andar de cima) e o outro caiu para 79º.
O Ipea não devia se meter a bumbo do Planalto. Ele é o maior depósito de talentos em pesquisas econômicas do país. No segundo semestre de 1995 tomou uma prensa política. Mandaram-no parar de divulgar previsões pessimistas. Sem influir na honestidade intelectual de seus pesquisadores (cada um manteve a que tinha), criou-se por lá uma ala de otimismo. Suas projeções de crescimento do PIB ficaram a serviço do lado "candomblé" do cartesianismo tucano. Em 1995 houve uma estimativa de crescimento econômico de 6,4%. Deu 4,2%. Para 97, chegaram a anunciar um crescimento entre 4 e 5%. Deu 0,8%. No ano passado, projetaram 1,9%. Fechou em 0,5%. Ou seja, os xamãs estão devendo ao país um crescimento acumulado de pelo menos 7%.
Não se deve fazer uma maldade dessas com o Ipea. Lá trabalhou o professor Pedro Malan. Nenhum governo pediu-lhe coisas desse tipo.
Se FFHH quer realmente mudar o rumo de seu governo, precisa fechar a torneira da empulhação.
Ou faz isso, ou vai confirmar o receio que Amartya Sen teve quando um colega lhe explicou a idéia de se criar o índice de desenvolvimento humano. Veio-lhe à cabeça um pedaço do seguinte poema de T.S. Eliot:
"A humanidade
Não aguenta muita realidade."

O fato e o evento

Na quinta-feira aconteceram duas coisas.
Uma foi um evento, também denominado de reforma ministerial. Resumiu-se à ida do advogado José Carlos Dias para o Ministério da Justiça e ao defenestramento do doutor Clóvis Carvalho da chefia do Gabinete Civil. Foi para o ministério da Produção, ex-Desenvolvimento, ex-Coisa-Nenhuma.
O outra foi o saque de um supermercado em Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, no Rio de Janeiro.
Um dos dois foi relevante. Quem acertar corre o risco de ser convidado para o Ministério da Produção no próximo evento.

A voz dos números do crime

Está no Brasil o professor de economia Steven Levitt, da Universidade de Chicago. Veio participar de um seminário da Faculdade do IBMEC, em São Paulo. Ele carrega na pasta duas reveladoras transparências sobre a questão da segurança pública no Brasil. Nos Estados Unidos, o crime custa à sociedade o equivalente a US$ 330 bilhões (4% do PIB). No Brasil, o custo fica em US$ 50 bilhões (10% do PIB, ou o total dos investimentos estrangeiros diretos de 1996 a 1998).
Essas cifras incluem o custo do aparelho de segurança, da justiça criminal, do sistema carcerário e das propriedades perdidas, bem como o valor econômico das vidas e da desorganização familiar das vítimas.
Para quem acha que uma situação dessas pode ser resolvida com mais tiros, outra estatística:
No Rio de Janeiro, a polícia mata 6,5 pessoas para cada 100 mil habitantes. São cerca de 358 pessoas por ano. Esse total aproxima-se do número de pessoas mortas por todas as polícias de todos os Estados Unidos (380). Lá, o índice está em 0,15.

Acenderam uma vela no lixão

Em junho, a Unicef e outras 31 instituições lançaram a campanha "Criança no Lixo, Nunca Mais". Estima-se que haja no Brasil 50 mil crianças catando comida e xepas nos depósitos de lixos das grandes cidades.
Como parte dessa campanha, remeteram a 5.500 prefeituras uma carta, acompanhada de um questionário sobre as condições dos catadores de lixo em suas cidades.
Os prefeitos que se interessassem, poderiam receber um pacote com cinco manuais. Num, o Manual do Financiamento, preparado pelo Ministério do Meio Ambiente, ensinam os prefeitos a buscar recursos e empréstimos para programas relacionados com o lixo. Noutro, o Manual do Promotor, fornecem um termo de compromisso para ser assinado entre a prefeitura e o Ministério Público.
Em vez de se reclamar da escuridão, acendeu-se uma vela.
Em apenas duas semanas, chegaram as respostas de 400 prefeituras, interessadas em participar do programa.
Seria muito bom se daqui a uns meses a Unicef divulgasse a lista das prefeituras que tiveram a curiosidade de saber como se pode resolver o problema das crianças dos lixões. Essa lista mostrará quem são os prefeitos incapazes de ter até mesmo a curiosidade. Como no ano que vem haverá eleições, a escumalha poderá conferir em que mãos caiu.
Um grande homem

Franco Montoro foi o melhor governador da história de São Paulo (empatado com Carvalho Pinto). Profeta do trivial variado, formou, à sua sombra uma geração de políticos que sempre tiveram a certeza de serem muito superiores a ele. Essa era uma das suas maiores virtudes. Dava aos outros a sensação de serem grandes.

Copo cheio

É quase certo que, ao fim do ano, a AmBev seja capaz de provar que, com a fusão de Brahma e da Antarctica, o preço real da cerveja terá caído. Comparada mês a mês, ela deverá ficar mais barata.

O maleiro do Galeão deu uma aula ao andar de cima

O Brasil está salvo. A mão forte e ágil da Justiça abateu-se sobre a especulação feita em janeiro contra o real. Ela custou pelo menos R$ 3 bilhões à Viúva. Levantada a tampa da panela, descobriu-se que o Banco Central socorreu duas casas quebradas e que seu presidente guardava em casa uma confissão de dívida alheia no valor de US$ 1,5 milhão. Instalou-se uma CPI, congelaram-se (e descongelaram-se) patrimônios. Postas a funcionar, as instituições confirmaram a tradição nacional. São rápidas quando batem para baixo e paralíticas na hora de bater para cima.
O carregador de malas Carlos Hang de Santana, preso pela Polícia Federal em janeiro, no aeroporto do Galeão, comprando US$ 50 a um comissário de bordo, foi denunciado pelo procurador Mauricio Ribeiro Manso. No dia 14 de maio, o juiz Emílio Abranches Mansur, da 1ª Vara Federal Criminal, aceitou a denúncia e nas próximas semanas deverá realizar a primeira audiência. Hang está denunciado com base na lei do colarinho branco (coisa que carregador de malas só usa, com certeza, no próprio enterro).
Está salvo o Brasil. O maleiro que ameaçou a estabilidade das finanças nacionais cotava a moeda americana a R$ 1,60 enquanto a banca da avenida Paulista a negociava a R$ 2,10. A polícia apreendeu a cesta de moedas que carregava (R$ 7.465, US$ 420, mais 20 libras inglesas, 100 marcos alemães e alguns tíquetes-refeição.) Passou seis dias e cinco noite na cadeia.
Nenhum burocrata do Banco Central foi punido. Nenhum vazamento foi identificado. Nenhum larápio dormiu na cadeia. O doutor Salvatore Cacciola, que recebeu um regalo do BC, saiu da CPI como herói da turma do papelório. A Justica só foi rápida e severa com o carregador de malas.
A denúncia apresentada contra Hang pode levá-lo a uma condenação de um a dois anos de prisão. O juiz ofereceu-lhe o direito de se beneficiar com a suspensão temporária do processo. Continuaria solto (e maculado), desde que se comportasse bem. Se Hang aceitasse esse caminho, ficariam assim as coisas:
1) a Polícia Federal agiu certo prendendo-o.
2) o promotor fez a sua parte denunciando-o.
3) O juiz aceitou a denúncia porque esse era o direito.
4) Hang seria beneficiado pela magnanimidade do andar de cima.
O maleiro decidiu dar um exemplo de exercício da cidadania. Seu advogado, Michel Assef, informa que ele recusará o oferecimento. Vai à luta pelos seus direitos, amparado na convicção de que não fez nada de errado.
Caberá ao juiz decidir, mas são muitos os advogados capazes de jurar que a lei do colarinho branco não tem nada a ver com um maleiro trocando dólares num saguão. Mais: trocar dólar não é crime.
Hang vai processar a União pelos danos morais que sofreu.
Apesar de ter havido uma imensa discussão em torno do bloqueio dos bens dos maganos do andar de cima, ainda não devolveram ao carregador de malas dos outros a cesta de moedas que lhe confiscaram em janeiro. Quanto ao juiz Lau Lau, vai bem obrigado, carregando sua própria mala.


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