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São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

FÁBIO KONDER COMPARATO

Professor da USP inclui Palocci entre auxiliares que o presidente substituirá ao reconhecer "erro crasso" do governo

Para advogado ligado ao PT, Lula "terá de tirar a direita"

RENATA LO PRETE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Não há outra solução." Para Fábio Konder Comparato, professor titular de direito comercial da USP e especialista em direito constitucional, chegará o momento em que o governo se dará conta de ter cometido um "erro crasso" ao eleger a inflação como principal problema do Brasil. Nessa hora, o presidente "vai ter de tirar todo esse pessoal". Chamado a nomear o pessoal, explica: "Os componentes da direita. Obviamente isso inclui o ministro da Fazenda", Antonio Palocci Filho.
Os intelectuais ligados ao PT dividem-se hoje entre poucos que já declararam o governo Lula caso perdido e muitos que preferem manter as críticas, maiores ou menores, em privado, sob o argumento de que torná-las públicas serviria à causa da oposição.
Nesse universo, Comparato é estrela solitária -em parte por jamais ter sido filiado, não obstante suas relações históricas com o partido e com Lula. Ao contrário do primeiro grupo, acha que o governo mudará, e para melhor -o que, de seu ponto de vista, significa mudar para a esquerda. À diferença do segundo, bate sem reservas no que lhe parece errado, notadamente a política econômica e a reforma previdenciária.
Bate também na imprensa, que contribuiria para formar a percepção, a seu ver errada, de agravamento das tensões sociais. Irritado, porém, o professor de 66 anos só fica quando chamado de "intelectual governista", qualificação que rejeita a todo custo. "A perda da liberdade de crítica é a desmoralização do intelectual."
Na sala de reuniões do escritório em que recebeu a Folha, no bairro paulistano de Moema, uma foto estampada em antigo calendário da Ordem dos Advogados do Brasil mostra Comparato, Evandro Lins e Silva e Sergio Servulo da Cunha protocolando o pedido de impeachment de Fernando Collor no Supremo Tribunal Federal. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
 
Folha - O sr. concorda com a percepção de que há um recrudescimento das tensões sociais no país?
Fábio Konder Comparato -
De modo geral, a tensão me parece fabricada. O noticiário não destaca que há no Brasil 150 milhões de hectares de terras inexploradas, uma violência em si. Mas basta alguém saquear um caminhão nos confins do Nordeste para que isso apareça na televisão e nas primeiras páginas dos jornais. O saque é notícia, o problema estrutural, não. Isso deforma a realidade.
Por outro lado, há inegável deterioração das condições de vida. Ela deve ser imputada, em larga medida, a governos anteriores, mas o atual também contribui ao repetir e agravar a política econômica de Fernando Henrique.
Na minha concepção -que certamente considerarão ingênua-, um órgão de comunicação deve ter compromisso com o povo. Um jornal que se manifesta exclusivamente contra ou a favor de um governo -e manifestar-se contra costuma render mais sucesso- não cumpre seu papel.
O problema não é saber se o governo atual é diferente do programa ou da tradição do partido ao qual o presidente pertence. O problema é identificar quando as políticas vão no sentido da melhoria do nível de vida da população e quando representam sua deterioração. Não acredito que o governo Lula só tenha errado.

Folha - O sr. afirma que a imprensa é do contra. Não lhe parece que ela tem sido majoritariamente favorável ao governo Lula?
Comparato -
Com certeza. Mas isso ocorre porque a imprensa não é uma entidade pairando acima do mundo. Os grandes órgãos de comunicação defendem interesses econômicos que não são, necessariamente, interesses nacionais. Quando um governo cujos integrantes foram acusados, no passado, de serem desmesuradamente esquerdistas toma medidas ultraconservadoras, oferece não apenas alívio, mas uma grata surpresa aos donos do poder. Precisaria mesmo ser elogiado.
Além disso, ninguém desconhece que a mídia brasileira enfrenta enormes dificuldades financeiras, e que a solução desse problema passa pelo BNDES. Portanto, não é neste momento que um jornal ou uma rede de televisão profundamente endividada vai criticar o presidente de maneira dura.

Folha - Quais são, em seu entender, os acertos do governo Lula?
Comparato -
O primeiro ponto é a política externa, a meu ver a mais brilhante do período republicano. Por que a imprensa não ressalta esse fato? Porque há o risco de criar constrangimento para os Estados Unidos. Fico decepcionado com os grandes órgãos de comunicação por sua posição hesitante, quando não claramente favorável, em relação à Área de Livre Comércio das Américas.

Folha - Por falar na Alca, alguns críticos consideram, a despeito de afirmações oficiais em contrário, que o governo fez excessiva concessão aos EUA nessa matéria durante a recente viagem do presidente Lula a Washington. O que o sr. pensa a esse respeito?
Comparato -
Minha opinião -que até hoje não foi aceita por nenhum governo, sobretudo pelo atual- é que a Alca é inconstitucional. A Constituição de 1988 estabelece que o Estado deve trabalhar pela formação de uma comunidade latino-americana de nações. Isso significa integração econômica, política e cultural.
Podemos discordar da decisão, mas, enquanto ela não for mudada por emenda -e não foi porque os governos anteriores e provavelmente este também consideraram que o texto não é para valer-, tem de ser cumprida. Ora, a Alca significa a diluição de todo esse ecûmeno latino-americano na área de dominação dos EUA.
De fato, a declaração conjunta dos governos norte-americano e brasileiro por ocasião da visita do presidente a Washington me pareceu contrariar reiteradas afirmações do governo Lula de que 2005 não seria aceito como prazo para o encerramento das negociações. Tive a oportunidade de manifestar isso a um ministro. Ele me disse que não teria havido concessão nenhuma.

Folha - E o sr. pensa o quê?
Comparato -
Minha impressão é que a fixação do prazo não embute um requisito prévio de sucesso nas negociações. Ou seja, os governos continuarão discutindo até 2005. Se até lá não chegarem a um acordo, a Alca estaria resolvida por falta de solução.

Folha - O sr. integra um grupo de intelectuais que tem encontros periódicos com o presidente ou membros do governo.
Comparato -
Você se refere aos "intelectuais governistas", como diz a Folha? De fato, fui cooptado para fazer parte de um grupo que discute, com a maior liberdade, as ações do governo federal.
Uma de minhas apreensões em relação ao governo Lula é o que costumo chamar de maldição do poder. Uma vez eleito, o governo passa a viver em circuito fechado. Perde contato com o povo. Não sou idiota a ponto de achar que intelectuais representam o povo, mas, de certa maneira, podemos ser o veículo de insatisfações.

Folha - Como são as reuniões?
Comparato -
Sou cético em relação ao sucesso desse grupo. Quem está no poder sofre constrangimentos grandes demais para abrir-se com os que estão cá embaixo ou aceitar sugestões. Mas essa é uma posição pessoal. Outros não são tão céticos.
O que não deixou de me irritar foi ser considerado um "intelectual governista", porque a perda da liberdade de crítica é realmente a desmoralização do intelectual.

Folha - Sua crítica tem sido dirigida à reforma da Previdência.
Comparato -
É preciso colocar a reforma no contexto da política econômica, que começou com um erro catastrófico de avaliação.
Em 1990, a inflação média mundial ficou acima de 20%. Cinco anos depois, havia caído para menos da metade. O governo Lula, recém-empossado, entronizou a inflação como principal problema do país. Há consenso, no entanto, de que o principal problema é o endividamento público.
Procurou-se combater a inflação com redução de despesas e aumento dos juros -que agrava automaticamente o endividamento público. Fez-se uma terrível hipoteca sobre todo o programa de governo. Mas eu tenho certeza de que isso vai mudar.

Folha - De onde vem sua certeza?
Comparato -
Vai chegar um momento em que o governo vai se dar conta de que cometeu um erro crasso de avaliação econômica. O presidente vai se dar conta. E não há outra solução. Ele vai ter de tirar todo esse pessoal.

Folha - Quem é esse pessoal?
Comparato -
Os componentes da direita. Obviamente isso inclui o ministro da Fazenda. Dizem as más línguas que o governo todo é refém do Ministério da Fazenda, que é refém do Banco Central.
Eles foram nomeados numa ótica defasada, que é a de considerar que se pode aplicar uma política social progressista com um política econômica ultraconservadora. Tomando a expressão do Evangelho, a mão direita não sabe o que faz a esquerda. E a atual composição do governo é destra.
É preciso acabar com essa esquizofrenia. Tenho certeza de que o governo vai se decidir pelo lado do povo. Lamento apenas que tenha sido cometido esse erro crasso e que sua redenção leve muito tempo, como realmente vai levar. Governo nenhum tem o direito de aumentar o desemprego e conduzir à ruína pequenas e médias empresas apenas para arrumar financeiramente a casa.

Folha - De volta à reforma da Previdência, quais são suas restrições?
Comparato -
Alguns pontos do texto aprovado na Câmara são perdidamente inconstitucionais. A taxação dos inativos fere o princípio elementar do respeito ao direito adquirido. O mesmo ocorre com a redução das pensões para familiares de segurados já mortos.
Mais importante, a Previdência é um direito fundamental. Não se pode mexer com isso como se faz com os juros. E a reforma, como o próprio governo acabou por reconhecer, não foi feita para melhorar a situação de quem depende da Previdência Social. Foi feita para melhorar a situação de caixa.
A tributária padece do mesmo vício. É puramente fiscalista. O Estado não tributa apenas para obter recursos, mas também para promover justiça social. Não enxergo nessa reforma nenhum aspecto relevante de política social.

Folha - Sua origem siciliana o leva a acreditar que se aplica ao governo Lula a frase famosa de Lampedusa, segundo a qual é preciso que tudo mude, se queremos que tudo continue como está?
Comparato -
Não vou negar que ele corre esse risco, mas tenho confiança de que escapará. Este governo -e principalmente o presidente- tem uma história contrária a essa forma de conluio com as forças mais escabrosas da exploração econômica. De modo que isso vai ser corrigido.

Folha - Quando viria a inflexão?
Comparato -
Vai acontecer, acredito, uma vez aprovadas as duas reformas em tramitação no Congresso. Seria uma loucura abandoná-las. O governo começou mal, mas vai ter de ir até o fim. Parece-me claro que, depois disso, a política econômica vai mudar.

Folha - E se não mudar? Até onde vai sua boa vontade?
Comparato -
Vai até eu me convencer de que não há ponto de retorno. Acho que a mesma convicção está presente em várias cabeças do governo, daí minha fundada confiança em que mude.
Há uma regra de ouro na democracia. O povo deve ser o primeiro beneficiário e o principal colaborador das políticas governamentais. Se você me permitir encerrar assim, eu queria dizer que o que se esperava e ainda se espera do governo Lula é que ele tenha mais confiança no povo.



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