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ENTREVISTA DA 2ª
FÁBIO KONDER COMPARATO
Professor da USP inclui Palocci entre auxiliares que o presidente substituirá ao reconhecer "erro crasso" do governo
Para advogado ligado ao PT, Lula "terá de tirar a direita"
RENATA LO PRETE
DA REPORTAGEM LOCAL
"Não há outra solução." Para
Fábio Konder Comparato, professor titular de direito comercial
da USP e especialista em direito
constitucional, chegará o momento em que o governo se dará
conta de ter cometido um "erro
crasso" ao eleger a inflação como
principal problema do Brasil.
Nessa hora, o presidente "vai ter
de tirar todo esse pessoal". Chamado a nomear o pessoal, explica:
"Os componentes da direita. Obviamente isso inclui o ministro da
Fazenda", Antonio Palocci Filho.
Os intelectuais ligados ao PT dividem-se hoje entre poucos que já
declararam o governo Lula caso
perdido e muitos que preferem
manter as críticas, maiores ou
menores, em privado, sob o argumento de que torná-las públicas
serviria à causa da oposição.
Nesse universo, Comparato é
estrela solitária -em parte por jamais ter sido filiado, não obstante
suas relações históricas com o
partido e com Lula. Ao contrário
do primeiro grupo, acha que o governo mudará, e para melhor -o
que, de seu ponto de vista, significa mudar para a esquerda. À diferença do segundo, bate sem reservas no que lhe parece errado, notadamente a política econômica e
a reforma previdenciária.
Bate também na imprensa, que
contribuiria para formar a percepção, a seu ver errada, de agravamento das tensões sociais. Irritado, porém, o professor de 66
anos só fica quando chamado de
"intelectual governista", qualificação que rejeita a todo custo. "A
perda da liberdade de crítica é a
desmoralização do intelectual."
Na sala de reuniões do escritório em que recebeu a Folha, no
bairro paulistano de Moema, uma
foto estampada em antigo calendário da Ordem dos Advogados
do Brasil mostra Comparato,
Evandro Lins e Silva e Sergio Servulo da Cunha protocolando o
pedido de impeachment de Fernando Collor no Supremo Tribunal Federal. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Folha - O sr. concorda com a percepção de que há um recrudescimento das tensões sociais no país?
Fábio Konder Comparato - De
modo geral, a tensão me parece
fabricada. O noticiário não destaca que há no Brasil 150 milhões de
hectares de terras inexploradas,
uma violência em si. Mas basta alguém saquear um caminhão nos
confins do Nordeste para que isso
apareça na televisão e nas primeiras páginas dos jornais. O saque é
notícia, o problema estrutural,
não. Isso deforma a realidade.
Por outro lado, há inegável deterioração das condições de vida.
Ela deve ser imputada, em larga
medida, a governos anteriores,
mas o atual também contribui ao
repetir e agravar a política econômica de Fernando Henrique.
Na minha
concepção
-que certamente considerarão ingênua-, um órgão de comunicação deve
ter compromisso com o
povo. Um jornal que se manifesta exclusivamente contra ou a favor
de um governo
-e manifestar-se contra
costuma render mais sucesso- não cumpre seu papel.
O problema
não é saber se o
governo atual é
diferente do programa ou da tradição do partido ao qual o presidente pertence. O problema é
identificar quando as políticas
vão no sentido da melhoria do nível de vida da população e quando representam sua deterioração.
Não acredito que o governo Lula
só tenha errado.
Folha - O sr. afirma que a imprensa é do contra. Não lhe parece que
ela tem sido majoritariamente favorável ao governo Lula?
Comparato - Com certeza. Mas
isso ocorre porque a imprensa
não é uma entidade pairando acima do mundo. Os grandes órgãos
de comunicação defendem interesses econômicos que não são,
necessariamente, interesses nacionais. Quando um governo cujos integrantes foram acusados,
no passado, de
serem desmesuradamente
esquerdistas
toma medidas
ultraconservadoras, oferece
não apenas alívio, mas uma
grata surpresa
aos donos do
poder. Precisaria mesmo ser
elogiado.
Além disso,
ninguém desconhece que a
mídia brasileira enfrenta
enormes dificuldades financeiras, e
que a solução
desse problema passa pelo
BNDES. Portanto, não é
neste momento que um jornal ou uma rede de
televisão profundamente endividada vai criticar o presidente de
maneira dura.
Folha - Quais são, em seu entender, os acertos do governo Lula?
Comparato - O primeiro ponto é
a política externa, a meu ver a
mais brilhante do período republicano. Por que a imprensa não
ressalta esse fato? Porque há o risco de criar constrangimento para
os Estados Unidos. Fico decepcionado com os grandes órgãos de
comunicação por sua posição hesitante, quando não claramente
favorável, em relação à Área de Livre Comércio das Américas.
Folha - Por falar na Alca, alguns
críticos consideram, a despeito de
afirmações oficiais em contrário,
que o governo fez excessiva concessão aos EUA nessa matéria durante a recente viagem do presidente Lula a Washington. O que o
sr. pensa a esse respeito?
Comparato - Minha opinião
-que até hoje não foi aceita por
nenhum governo, sobretudo pelo
atual- é que a Alca é inconstitucional. A Constituição de 1988 estabelece que o Estado deve trabalhar pela formação de uma comunidade latino-americana de nações. Isso significa integração econômica, política e cultural.
Podemos discordar da decisão,
mas, enquanto ela não for mudada por emenda -e não foi porque os governos anteriores e provavelmente este também consideraram que o texto não é para valer-, tem de ser cumprida. Ora, a
Alca significa a diluição de todo
esse ecûmeno latino-americano
na área de dominação dos EUA.
De fato, a declaração conjunta
dos governos norte-americano e
brasileiro por ocasião da visita do
presidente a Washington me pareceu contrariar reiteradas afirmações do governo Lula de que
2005 não seria aceito como prazo
para o encerramento das negociações. Tive a oportunidade de manifestar isso a um ministro. Ele
me disse que não teria havido
concessão nenhuma.
Folha - E o sr. pensa o quê?
Comparato - Minha impressão é
que a fixação do prazo não embute um requisito prévio de sucesso
nas negociações. Ou seja, os governos continuarão discutindo
até 2005. Se até lá não chegarem a
um acordo, a Alca estaria resolvida por falta de solução.
Folha - O sr. integra um grupo de
intelectuais que tem encontros periódicos com o presidente ou membros do governo.
Comparato - Você se refere aos
"intelectuais
governistas",
como diz a Folha? De fato, fui
cooptado para
fazer parte de
um grupo que
discute, com a
maior liberdade, as ações do
governo federal.
Uma de minhas apreensões em relação ao governo
Lula é o que
costumo chamar de maldição do poder.
Uma vez eleito,
o governo passa a viver em
circuito fechado. Perde contato com o povo. Não sou
idiota a ponto
de achar que intelectuais representam o povo, mas, de certa maneira, podemos ser o veículo de
insatisfações.
Folha - Como são as reuniões?
Comparato - Sou cético em relação ao sucesso desse grupo.
Quem está no poder sofre constrangimentos grandes demais para abrir-se com os que estão cá
embaixo ou aceitar sugestões.
Mas essa é uma posição pessoal.
Outros não são tão céticos.
O que não deixou de me irritar
foi ser considerado um "intelectual governista", porque a perda
da liberdade de crítica é realmente
a desmoralização do intelectual.
Folha - Sua crítica tem sido dirigida à reforma da Previdência.
Comparato - É preciso colocar a
reforma no contexto da política
econômica, que começou com
um erro catastrófico de avaliação.
Em 1990, a inflação média mundial ficou acima de 20%.
Cinco anos depois, havia caído para menos
da metade. O
governo Lula,
recém-empossado, entronizou a inflação
como principal
problema do
país. Há consenso, no entanto, de que o
principal problema é o endividamento público.
Procurou-se
combater a inflação com redução de despesas e aumento dos juros
-que agrava
automaticamente o endividamento público. Fez-se uma
terrível hipoteca sobre todo o programa de governo. Mas eu tenho
certeza de que isso vai mudar.
Folha - De onde vem sua certeza?
Comparato - Vai chegar um momento em que o governo vai se
dar conta de que cometeu um erro crasso de avaliação econômica.
O presidente
vai se dar conta. E não há outra solução. Ele
vai ter de tirar
todo esse pessoal.
Folha - Quem
é esse pessoal?
Comparato -
Os componentes da direita.
Obviamente isso inclui o ministro da Fazenda. Dizem
as más línguas
que o governo
todo é refém
do Ministério
da Fazenda,
que é refém do
Banco Central.
Eles foram
nomeados numa ótica defasada, que é a de
considerar que
se pode aplicar uma política social
progressista com um política econômica ultraconservadora. Tomando a expressão do Evangelho,
a mão direita não sabe o que faz a
esquerda. E a atual composição
do governo é destra.
É preciso acabar com essa esquizofrenia. Tenho certeza de que
o governo vai se decidir pelo lado
do povo. Lamento apenas que tenha sido cometido esse erro crasso e que sua redenção leve muito
tempo, como realmente vai levar.
Governo nenhum tem o direito de
aumentar o desemprego e conduzir à ruína pequenas e médias empresas apenas para arrumar financeiramente a casa.
Folha - De volta à reforma da Previdência, quais são suas restrições?
Comparato - Alguns pontos do
texto aprovado na Câmara são
perdidamente inconstitucionais.
A taxação dos inativos fere o princípio elementar do respeito
ao direito adquirido. O
mesmo ocorre
com a redução
das pensões
para familiares
de segurados já
mortos.
Mais importante, a Previdência é um direito fundamental. Não se
pode mexer
com isso como
se faz com os
juros. E a reforma, como o
próprio governo acabou por
reconhecer,
não foi feita para melhorar a
situação de
quem depende
da Previdência
Social. Foi feita para melhorar a
situação de caixa.
A tributária padece do mesmo
vício. É puramente fiscalista. O
Estado não tributa apenas para
obter recursos, mas também para
promover justiça social. Não enxergo nessa reforma nenhum aspecto relevante de política social.
Folha - Sua origem siciliana o leva
a acreditar que se aplica ao governo Lula a frase famosa de Lampedusa, segundo a qual é preciso que
tudo mude, se queremos que tudo
continue como está?
Comparato - Não vou negar que
ele corre esse risco, mas tenho
confiança de que escapará. Este
governo -e principalmente o
presidente- tem uma história
contrária a essa forma de conluio
com as forças mais escabrosas da
exploração econômica. De modo
que isso vai ser corrigido.
Folha - Quando viria a inflexão?
Comparato - Vai acontecer, acredito, uma vez aprovadas as duas
reformas em tramitação no Congresso. Seria uma loucura abandoná-las. O governo começou
mal, mas vai ter de ir até o fim. Parece-me claro que, depois disso, a
política econômica vai mudar.
Folha - E se não mudar? Até onde
vai sua boa vontade?
Comparato - Vai até eu me convencer de que não há ponto de retorno. Acho que a mesma convicção está presente em várias cabeças do governo, daí minha fundada confiança em que mude.
Há uma regra de ouro na democracia. O povo deve ser o primeiro
beneficiário e o principal colaborador das políticas governamentais. Se você me permitir encerrar
assim, eu queria dizer que o que se
esperava e ainda se espera do governo Lula é que ele tenha mais
confiança no povo.
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