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ENTREVISTA DA 2ª
Celso de Mello defende o
impeachment de juízes
LUÍS FRANCISCO CARVALHO Fº
da Equipe de Articulistas
Na quinta-feira, José Celso de
Mello Filho, 51, assume a Presidência do Supremo Tribunal Federal. Será o mais jovem presidente da história do STF. Foi nomeado
em 89, por José Sarney.
Pela primeira vez um ocupante
do cargo admite, com naturalidade, o controle externo da magistratura e sugere o impeachment de
juízes pelo poder político.
Ele disse que os membros do STF
já estão sujeitos ao impeachment.
"Eu não me sinto limitado em minha independência (...) pelo fato
de estar sujeito ao controle político-administrativo que a Constituição outorgou ao Senado."
Mello assume em meio a um
conflito de poderes, exemplificado
pela troca de farpas entre o atual
presidente da Corte, Sepúlveda
Pertence, e o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães.
O novo presidente do STF recebeu a Folha na quarta-feira. Afirmou ser contra a pena de morte e a
punição criminal do usuário de
drogas. Disse que a Constituição
assegura a liberdade de opção sexual e que "é chegado o momento
de o legislador estabelecer os efeitos jurídicos derivados da união
homossexual".
É contrário à idéia de que os magistrados sejam submetidos drasticamente aos efeitos da súmula
vinculante. Um projeto que tramita no Congresso obriga os juízes,
em determinadas matérias, a julgar conforme a posição adotada
pelo Supremo, sob pena de crime
de responsabilidade: "É um perigoso dirigismo estatal, que frustra
a função transformadora e criadora da jurisprudência".
Folha - Quais são suas expectativas ao assumir a presidência do
STF, diante do conflito entre Legislativo e Judiciário?
Celso de Mello - Tenho enfatizado que os chefes dos poderes da
República são pessoas responsáveis, conscientes de suas responsabilidades institucionais. Têm plena consciência de que nenhum dos
Poderes da República se situa acima da Constituição Federal. Sabem que o justo equilíbrio político
entre os poderes deriva do convívio harmonioso que deve pautar as
relações institucionais. No entanto, o Judiciário, quando intervém
para assegurar o exercício das
franquias constitucionais, não interfere na esfera de atribuições dos
demais poderes, porque essa é a
sua função política.
Folha - É a supremacia judicial?
Mello - Quando surge uma situação de alegada ofensa às franquias individuais ou coletivas, coloca-se em discussão não a supremacia deste ou daquele Poder, mas
coloca-se em causa a superioridade da Constituição. O Judiciário é
um poder eminentemente político
e se acha investido de uma notável
prerrogativa: efetuar o controle da
constitucionalidade das leis. Ele
atua como delegado do poder
constituinte e reescreve a Constituição. A Constituição passa a significar aquilo que o STF diz que ela
é. É um poder extraordinário. Por
isso mesmo, merece e justifica a
instauração de um sistema de fiscalização sobre sua atuação.
Folha - É o controle externo?
Mello - A independência do Judiciário é uma das idéias nucleares, subjacentes à própria formulação conceitual do Estado de Direito. Enfatizo que o Judiciário há
de ser independente para desempenhar com liberdade a sua atividade decisória. No entanto, sua independência não traduz um fim
em si mesmo. Existe muito mais
como um elemento instrumental.
É preciso, até mesmo para se
manter a própria legitimidade de
suas decisões, impedir que o Judiciário se projete num universo à
parte, tornando-se imune a qualquer tipo de fiscalização por parte
do corpo social.
Folha - Como seria o controle?
Mello - É preciso reconhecer
que o princípio da fiscalização do
Judiciário já existe. A Constituição
o submete à fiscalização financeira
e orçamentária do Legislativo, ao
prever a responsabilização político-administrativa dos ministros
do Supremo, submetendo-os, em
relação aos crimes de responsabilidade, ao julgamento de uma instância política situada na dimensão institucional de outro poder.
Folha - O ministro do STF está sujeito ao processo de impeachment.
Os outros juízes estão submetidos
apenas a um mecanismo de controle corporativo. Como o sr. vê essa diferença?
Mello - Eu preconizo que se discuta a possibilidade de se estender
o mecanismo do impeachment aos
demais magistrados. Não apenas
aos juízes do STF, que historicamente estão sujeitos ao processo
de responsabilização perante o Senado desde a Constituição de 1891.
A idéia da fiscalização do Poder
Judiciário revela-se imanente à
própria noção republicana. Nos
EUA, há possibilidade de se estabelecer, perante o Senado, a instauração do processo de impeachment por crime de responsabilidade contra os juízes federais.
Na Argentina, um exemplo mais
próximo ao Brasil, existe um Conselho da Magistratura -com a
participação de representantes dos
órgãos políticos eleitos por voto
popular, juízes de todas as instâncias, advogados e pessoas vinculadas à comunidade acadêmica-
investido de funções disciplinares,
correcionais e de supervisão administrativa e orçamentária. Segundo a Constituição argentina, os
juízes são suscetíveis de remoção
compulsória dos cargos por um
órgão integrado por legisladores,
magistrados e advogados. São experiências ricas.
Não me sinto, enquanto juiz do
STF, limitado em minha independência ou cerceado em minha liberdade de decidir pelo fato de estar abstratamente sujeito ao controle político-administrativo que a
Constituição outorgou ao Senado.
Folha - Mas os outros juízes são
julgados corporativamente...
Mello - Não existe lei no Brasil
definindo os crimes de responsabilidade dos magistrados estaduais e federais. Em 1986, quando
o STF tinha a competência originária para processar e julgar desembargadores nos crimes de responsabilidade, o tribunal viu-se
obrigado a extinguir um processo
por falta de legislação definidora
dos crimes de responsabilidade.
Folha - Todos os juízes seriam
julgados pelo Senado?
Mello - Não. No plano local essa
competência deveria ser deferida
ou ao órgão legislativo estadual
ou, na semelhança do modelo argentino, a um órgão de colegialidade heterogênea.
Folha - A magistratura brasileira
se arrepia com essa idéia.
Mello - Há uma reação muito
clara, não apenas a essa proposta,
mas a qualquer tipo de fiscalização
externa. A discussão dessa matéria
deve aprofundar-se porque, insisto, a idéia da fiscalização do Poder
Judiciário por órgãos a eles estranhos é uma idéia que já se acha
presente na Constituição.
Folha - O sr. é o primeiro presidente do STF a defender o controle externo.
Mello - Eu apenas estou propondo, nesse momento em que se
discute a necessidade da reforma
do Poder Judiciário, uma reflexão.
Devemos agir sem preconceito, e
quero estimular a reflexão conjunta. É uma matéria extremamente
grave e muito importante. Deve
ser discutida por todos, não apenas pelos operadores do direito.
Folha - Dentro da reforma judiciária, uma questão polêmica é a
do efeito vinculante das decisões.
Mello - A eficácia prática do
princípio da súmula vinculante é
altamente questionável. Por uma
razão muito simples: mesmo prevalecendo o princípio da súmula
vinculante, não há como inibir a
sustentação, em juízo, de teses diametralmente opostas. O juiz não
poderá ser obrigado a decidir conforme a súmula, sob pena de crime
de responsabilidade. É um perigoso dirigismo estatal, que frustra a
função transformadora e criadora
da jurisprudência.
Folha - Ministro, gostaria de saber a opinião do sr. sobre alguns
temas polêmicos.
Mello - Respostas breves?
Folha - Breves. Pena de morte.
Mello - Sou contrário à pena de
morte. Ela constitui a própria negação das funções para as quais a
pena foi instituída. Representa a
expressão cruel do Estado, um
modo de se ferir profundamente a
dignidade da pessoa. O grande argumento contra é a possibilidade,
sempre presente, do erro judiciário. Isso é intolerável.
Folha - Legalização do aborto.
Mello - Em termos absolutos,
sou contra. Mas sou favorável à
ampliação das hipóteses de aborto
consentido. Não apenas no caso de
risco eminente da vida da gestante,
mas também no caso do comprometimento de sua saúde, hipótese
não prevista legalmente. E também nos casos de processos patológicos que afetem o nascituro gerando estados de má formação fetal que suprimam qualquer expectativa de vida. O aborto não deve
ser estimulado como prática de
controle de natalidade.
Folha - Eutanásia.
Mello - Enquanto houver possibilidade de preservar a vida do paciente, a eutanásia deve ser afastada. Eventualmente, posso admiti-la como recurso extremo nos casos em que não há mais qualquer
possibilidade de preservação da vida e quando a preservação da vida
passa a ofender de modo profundamente grave a dignidade do paciente. A eutanásia, quando desejada de maneira consciente e livre
pelo próprio paciente, pode merecer eventualmente a atenção do
Estado para efeito de legitimar essa
prática. Mas é algo excepcional.
Folha - Casamento gay.
Mello - A união homossexual
traduz uma consequência inevitável de uma nova visão que devemos ter em relação a todos os grupos sociais. A Constituição assegura a qualquer pessoa o direito à livre opção sexual. É chegado o momento do legislador estabelecer os
efeitos jurídicos, especialmente no
plano pessoal e patrimonial, derivados da união homossexual.
Qualquer posição em sentido contrário acaba gerando um indevido
tratamento discriminatório.
Folha - Uso de drogas.
Mello - A punição pelo tráfico
de drogas deve ser intensa e grave.
É um delito que ofende de modo
profundo a estabilidade das relações sociais. No entanto, acho
questionável a punição penal do
consumidor. Muito mais do que
um agente criminoso, ele me parece uma vítima. O consumidor deve
merecer atenção, tratamento, não
uma reação repressiva.
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