São Paulo, segunda, 19 de maio de 1997.



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ENTREVISTA DA 2ª
Celso de Mello defende o impeachment de juízes

LUÍS FRANCISCO CARVALHO Fº
da Equipe de Articulistas

Na quinta-feira, José Celso de Mello Filho, 51, assume a Presidência do Supremo Tribunal Federal. Será o mais jovem presidente da história do STF. Foi nomeado em 89, por José Sarney.
Pela primeira vez um ocupante do cargo admite, com naturalidade, o controle externo da magistratura e sugere o impeachment de juízes pelo poder político.
Ele disse que os membros do STF já estão sujeitos ao impeachment. "Eu não me sinto limitado em minha independência (...) pelo fato de estar sujeito ao controle político-administrativo que a Constituição outorgou ao Senado."
Mello assume em meio a um conflito de poderes, exemplificado pela troca de farpas entre o atual presidente da Corte, Sepúlveda Pertence, e o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães.
O novo presidente do STF recebeu a Folha na quarta-feira. Afirmou ser contra a pena de morte e a punição criminal do usuário de drogas. Disse que a Constituição assegura a liberdade de opção sexual e que "é chegado o momento de o legislador estabelecer os efeitos jurídicos derivados da união homossexual".
É contrário à idéia de que os magistrados sejam submetidos drasticamente aos efeitos da súmula vinculante. Um projeto que tramita no Congresso obriga os juízes, em determinadas matérias, a julgar conforme a posição adotada pelo Supremo, sob pena de crime de responsabilidade: "É um perigoso dirigismo estatal, que frustra a função transformadora e criadora da jurisprudência".


Folha - Quais são suas expectativas ao assumir a presidência do STF, diante do conflito entre Legislativo e Judiciário?
Celso de Mello -
Tenho enfatizado que os chefes dos poderes da República são pessoas responsáveis, conscientes de suas responsabilidades institucionais. Têm plena consciência de que nenhum dos Poderes da República se situa acima da Constituição Federal. Sabem que o justo equilíbrio político entre os poderes deriva do convívio harmonioso que deve pautar as relações institucionais. No entanto, o Judiciário, quando intervém para assegurar o exercício das franquias constitucionais, não interfere na esfera de atribuições dos demais poderes, porque essa é a sua função política.
Folha - É a supremacia judicial?
Mello -
Quando surge uma situação de alegada ofensa às franquias individuais ou coletivas, coloca-se em discussão não a supremacia deste ou daquele Poder, mas coloca-se em causa a superioridade da Constituição. O Judiciário é um poder eminentemente político e se acha investido de uma notável prerrogativa: efetuar o controle da constitucionalidade das leis. Ele atua como delegado do poder constituinte e reescreve a Constituição. A Constituição passa a significar aquilo que o STF diz que ela é. É um poder extraordinário. Por isso mesmo, merece e justifica a instauração de um sistema de fiscalização sobre sua atuação.
Folha - É o controle externo?
Mello -
A independência do Judiciário é uma das idéias nucleares, subjacentes à própria formulação conceitual do Estado de Direito. Enfatizo que o Judiciário há de ser independente para desempenhar com liberdade a sua atividade decisória. No entanto, sua independência não traduz um fim em si mesmo. Existe muito mais como um elemento instrumental.
É preciso, até mesmo para se manter a própria legitimidade de suas decisões, impedir que o Judiciário se projete num universo à parte, tornando-se imune a qualquer tipo de fiscalização por parte do corpo social.
Folha - Como seria o controle?
Mello -
É preciso reconhecer que o princípio da fiscalização do Judiciário já existe. A Constituição o submete à fiscalização financeira e orçamentária do Legislativo, ao prever a responsabilização político-administrativa dos ministros do Supremo, submetendo-os, em relação aos crimes de responsabilidade, ao julgamento de uma instância política situada na dimensão institucional de outro poder.
Folha - O ministro do STF está sujeito ao processo de impeachment. Os outros juízes estão submetidos apenas a um mecanismo de controle corporativo. Como o sr. vê essa diferença?
Mello -
Eu preconizo que se discuta a possibilidade de se estender o mecanismo do impeachment aos demais magistrados. Não apenas aos juízes do STF, que historicamente estão sujeitos ao processo de responsabilização perante o Senado desde a Constituição de 1891.
A idéia da fiscalização do Poder Judiciário revela-se imanente à própria noção republicana. Nos EUA, há possibilidade de se estabelecer, perante o Senado, a instauração do processo de impeachment por crime de responsabilidade contra os juízes federais.
Na Argentina, um exemplo mais próximo ao Brasil, existe um Conselho da Magistratura -com a participação de representantes dos órgãos políticos eleitos por voto popular, juízes de todas as instâncias, advogados e pessoas vinculadas à comunidade acadêmica- investido de funções disciplinares, correcionais e de supervisão administrativa e orçamentária. Segundo a Constituição argentina, os juízes são suscetíveis de remoção compulsória dos cargos por um órgão integrado por legisladores, magistrados e advogados. São experiências ricas.
Não me sinto, enquanto juiz do STF, limitado em minha independência ou cerceado em minha liberdade de decidir pelo fato de estar abstratamente sujeito ao controle político-administrativo que a Constituição outorgou ao Senado.
Folha - Mas os outros juízes são julgados corporativamente...
Mello -
Não existe lei no Brasil definindo os crimes de responsabilidade dos magistrados estaduais e federais. Em 1986, quando o STF tinha a competência originária para processar e julgar desembargadores nos crimes de responsabilidade, o tribunal viu-se obrigado a extinguir um processo por falta de legislação definidora dos crimes de responsabilidade.
Folha - Todos os juízes seriam julgados pelo Senado?
Mello -
Não. No plano local essa competência deveria ser deferida ou ao órgão legislativo estadual ou, na semelhança do modelo argentino, a um órgão de colegialidade heterogênea.
Folha - A magistratura brasileira se arrepia com essa idéia.
Mello -
Há uma reação muito clara, não apenas a essa proposta, mas a qualquer tipo de fiscalização externa. A discussão dessa matéria deve aprofundar-se porque, insisto, a idéia da fiscalização do Poder Judiciário por órgãos a eles estranhos é uma idéia que já se acha presente na Constituição.
Folha - O sr. é o primeiro presidente do STF a defender o controle externo.
Mello -
Eu apenas estou propondo, nesse momento em que se discute a necessidade da reforma do Poder Judiciário, uma reflexão. Devemos agir sem preconceito, e quero estimular a reflexão conjunta. É uma matéria extremamente grave e muito importante. Deve ser discutida por todos, não apenas pelos operadores do direito.
Folha - Dentro da reforma judiciária, uma questão polêmica é a do efeito vinculante das decisões.
Mello -
A eficácia prática do princípio da súmula vinculante é altamente questionável. Por uma razão muito simples: mesmo prevalecendo o princípio da súmula vinculante, não há como inibir a sustentação, em juízo, de teses diametralmente opostas. O juiz não poderá ser obrigado a decidir conforme a súmula, sob pena de crime de responsabilidade. É um perigoso dirigismo estatal, que frustra a função transformadora e criadora da jurisprudência.
Folha - Ministro, gostaria de saber a opinião do sr. sobre alguns temas polêmicos.
Mello -
Respostas breves?
Folha - Breves. Pena de morte.
Mello -
Sou contrário à pena de morte. Ela constitui a própria negação das funções para as quais a pena foi instituída. Representa a expressão cruel do Estado, um modo de se ferir profundamente a dignidade da pessoa. O grande argumento contra é a possibilidade, sempre presente, do erro judiciário. Isso é intolerável.
Folha - Legalização do aborto.
Mello -
Em termos absolutos, sou contra. Mas sou favorável à ampliação das hipóteses de aborto consentido. Não apenas no caso de risco eminente da vida da gestante, mas também no caso do comprometimento de sua saúde, hipótese não prevista legalmente. E também nos casos de processos patológicos que afetem o nascituro gerando estados de má formação fetal que suprimam qualquer expectativa de vida. O aborto não deve ser estimulado como prática de controle de natalidade.
Folha - Eutanásia.
Mello -
Enquanto houver possibilidade de preservar a vida do paciente, a eutanásia deve ser afastada. Eventualmente, posso admiti-la como recurso extremo nos casos em que não há mais qualquer possibilidade de preservação da vida e quando a preservação da vida passa a ofender de modo profundamente grave a dignidade do paciente. A eutanásia, quando desejada de maneira consciente e livre pelo próprio paciente, pode merecer eventualmente a atenção do Estado para efeito de legitimar essa prática. Mas é algo excepcional.
Folha - Casamento gay.
Mello -
A união homossexual traduz uma consequência inevitável de uma nova visão que devemos ter em relação a todos os grupos sociais. A Constituição assegura a qualquer pessoa o direito à livre opção sexual. É chegado o momento do legislador estabelecer os efeitos jurídicos, especialmente no plano pessoal e patrimonial, derivados da união homossexual. Qualquer posição em sentido contrário acaba gerando um indevido tratamento discriminatório.
Folha - Uso de drogas.
Mello -
A punição pelo tráfico de drogas deve ser intensa e grave. É um delito que ofende de modo profundo a estabilidade das relações sociais. No entanto, acho questionável a punição penal do consumidor. Muito mais do que um agente criminoso, ele me parece uma vítima. O consumidor deve merecer atenção, tratamento, não uma reação repressiva.



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