São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

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SÃO PAULO ARCAICA

Eles são recrutados para jornadas de até 16 horas por dia e salários baixos ou inexistentes

Migrantes latinos também são explorados

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Em praça no Pari (centro de SP), onde acontece uma feira de artigos e comida bolivianos aos domingos, imigrante lê publicação


DA REDAÇÃO

"Oficina de costura necessita de retistas (casados). Overlorquista. Urgente. "Sábado não trabalha." Bom Retiro." Aos domingos, anúncios como esse, a maioria em espanhol, estão em um mural, à vista das cerca de 3.000 pessoas que vão à praça Kantuta, no Pari, em São Paulo.
À noite, mais ofertas de emprego. Homens em Kombis circulam pelo local convidando para trabalho. Início imediato.
A inusitada fartura de vagas na cidade com quase 20% de taxa de desemprego esconde longas jornadas de trabalho (15, 16 horas por dia), sem registro em carteira, salários baixos -quando não deixam de ser pagos-, ameaças e situações precárias de moradia e alimentação. É a versão urbana do trabalho análogo à escravidão -embora em casos encontrados em que as condições são menos rigorosas o Ministério Público do Trabalho qualifique de trabalho forçado.
O alvo dos anúncios é o imigrante ilegal latino, em sua maioria boliviano -por isso a escolha da praça onde ocorre há dois anos, em espaço regulamentado pela prefeitura, uma feira de artigos da Bolívia.
Nem a Polícia Federal nem o Ministério do Trabalho tem números sobre o problema, mas o que sai das oficinas de costura, espalhadas na região central (Pari, Bom Retiro e Canindé) e até em Guarulhos, movimenta parte do mercado de roupa na cidade. Grupo de lavanderias também integram o esquema.
Oficialmente, há 18 mil bolivianos legalmente em São Paulo, contabilizados em 1998, quando houve uma anistia aos estrangeiros ilegais no Brasil. Entidades ligadas aos bolivianos, como a Pastoral do Migrante (da Igreja Católica), estima em até 70 mil os ilegais na cidade.
O processo em São Paulo guarda semelhanças estruturais com o trabalho escravo no campo.
Há a figura do "gato" (agenciador da mão-de-obra temporária no campo), que atua no Brasil -com os ilegais que vieram por conta própria -ou ainda na Bolívia. Lá, promete emprego com bons ganhos. Banca os custos da viagem -que devem ser pagos com o trabalho: é chamado vínculo por dívida.
Já aqui, o esquema é quase de confinamento. Mora-se na própria oficina. Não há coerção armada, mas ameaças: se saírem, podem ser pegos e deportados. "Não recebia salário. A dona da lavanderia em que trabalhava me dava vales de vez em quando", conta Maria (nome fictício), que ficou dois anos trabalhando mais de 16 horas por dia. Hoje, legalizada, tem carteira assinada.
"Eu nunca saía, com medo de ser pega. A dona falava isso. Em dois anos, o que eu conhecia da cidade era o Barateiro", lembra.
Em média, uma peça de roupa produzida custa de R$ 1 a R$ 1,40. O costureiro recebe cerca de R$ 0,40 por peça -por mês, dependendo da produção, em torno de R$ 300, R$ 400.

Combate esporádico
As investidas contra o problema são esporádicas e movidas por denúncias. Por se tratar de trabalho irregular com mão-de-obra ilegal, a situação fica ainda mais complexa. "O trabalho é muito difícil. O que fazer? A gente notifica, os ilegais têm de pagar uma multa e oito dias para sair do país", descreve o delegado Márcio Lemos, da Delegacia de Imigrantes da Polícia Federal.
Como a PF não tem albergues nem dinheiro para deportá-los, os bolivianos são soltos e não raro voltam a trabalhar praticamente no mesmo esquema.
Já o Ministério do Trabalho fala da dificuldade de fiscalização, já que as oficinas funcionam em casas -onde só se pode entrar com mandado judicial.
(FLÁVIA MARREIRO)


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