São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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OS CANDIDATOS
Petista reconhece valor da estabilidade, mas critica falta de estrutura social e vulnerabilidade da economia
Lula muda avaliação do Real após ser derrotado pelo plano


Para ele, "quem viveu com a inflação a 80% ao mês e agora está vivendo com a inflação de 5% ao ano sabe que isso faz uma diferença desgraçada no poder aquisitivo"


CLÓVIS ROSSI
do Conselho Editorial

20 de junho de 1994: Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT à Presidência da República, embarca para a África do Sul para ir ao encontro do mitológico Nelson Mandela, montado em mais de 40% das preferências do eleitor em todas as pesquisas.
Ambos de pé, ainda no corredor do avião, o repórter da Folha pergunta se ele não teme que o lançamento do Real, que se daria dez dias mais, atropele a sua liderança.
"Vai apenas congelar a miséria", fulmina Lula, enquanto se ajeita na poltrona.
29 de maio de 1998: Luiz Inácio Lula da Silva, de novo candidato do PT à Presidência da República, tem então, segundo pesquisa do Datafolha, 30% das intenções de voto contra 34% para o presidente Fernando Henrique Cardoso, cujo Real atropelara de fato a candidatura Lula quatro anos antes.
De novo, a Folha pergunta sobre o plano, mas, desta vez, a resposta é mais elaborada:
"A estabilidade é de fato um valor", começa. Só depois acrescenta as críticas: "Mas só temos uma estabilização monetária, sem nenhuma estrutura social e com a economia fortemente vulnerável. Os pilares da estabilidade são o câmbio e os juros. Mas não temos política industrial, política social. A dependência do mercado internacional é tanta que, toda vez que o banco central americano se reúne, os economistas do governo ficam com dor de barriga, de medo de um aumento de zero alguma coisa por cento nos juros americanos".
Antes de assumir definitivamente a candidatura, Lula era ainda mais explícito no elogio à estabilidade econômica: "Quem viveu com a inflação a 80% ao mês e agora está vivendo com a inflação de 5% ao ano sabe que isso faz uma diferença desgraçada no poder aquisitivo", comentou, em novembro, durante debate em Brasília com sindicalistas ligados à CUT (Central Única dos Trabalhadores).
A mera comparação entre as frases de 94 e 98 basta para mostrar que a posição diante do Plano Real é a maior mudança ocorrida no candidato do PT de uma eleição para a outra.
Mudança de resto fácil de entender, e pela boca do próprio Lula: "Se o PT se apresentar dizendo que é contra a estabilidade, qualquer candidato vai quebrar a cara, porque o povo e todos nós somos favoráveis à estabilidade", disse ainda Lula, no encontro com o pessoal da CUT em Brasília.
Esse tipo de avaliação, embora voltado para 1998, poderia ter sido feito quatro anos antes, porque Lula sentiu na carne (e nas urnas), em 1994, o efeito de parecer um inimigo do Real, conforme o relato que faz agora de sua derrota.
"Em 94, tivemos que enfrentar muito mais que um candidato e a máquina do governo. Tivemos que enfrentar um plano de estabilização que teve efeito avassalador na cabeça da sociedade", afirma o candidato do PT.
Mais: "Hoje tenho a convicção de que a defesa do Plano Real, fora do horário gratuito, era mais forte do que a própria propaganda do Fernando Henrique".
A mudança no enfoque sobre o Real é a principal, mas não a única, no Lula versão 1998.
Depõe, por exemplo, seu amigo frei Betto: "Ele ficou mais pragmático e menos ideológico. Quase não fala mais em socialismo ou luta de classes. Já descobriu que qualquer mudança tem que ser lenta e que medidas sociais contundentes têm que ser tomadas sem colocar a oligarquia como o inimigo, embora mantendo um compromisso visceral com os excluídos, com a idéia de que é fundamental que todo brasileiro tenha direito a, pelo menos, um prato de comida por dia".
Esse "compromisso visceral" é igualmente apontado por outro amigo, José Dirceu, presidente nacional do PT:
"Não acredito que haja uma mudança na radicalidade do Lula", diz Dirceu.
É razoável deduzir que o relativo pragmatismo do Lula-98 também tenha sido resultado das lições aprendidas com a derrota de 1994.
Durante todo o longo debate, no partido e na própria cabeça de Lula, sobre ser ou não candidato, ele chegou a dizer a seu círculo de amigos mais próximos:
"Pensei que íamos ganhar a eleição para mudar o país, mas descobri que precisamos mudar o país para ganharmos a eleição."
Frase que é traduzida assim por José Dirceu:
"Lula tem hoje uma análise muito mais realista do que é a esquerda, o PT, o povo, FHC."
Decodificando a frase de Dirceu, ponto por ponto:
Esquerda - Lula aceitou, por exemplo, que Leonel Brizola, o líder histórico do PDT, é de esquerda, quando antes achava que não passava de um herdeiro do paternalismo varguista, combatido na prática pelo sindicalismo do ABC, berço político de Lula.
PT - Lula cansou-se, diz Dirceu, de "um PT que mais parecia um partido em congresso permanente, em que toda decisão antes tomada era rediscutida a cada nova reunião". Cansou-se, acima de tudo, da interminável guerrilha das tendências internas.
Chegou a dizer, no ano passado, que "a lógica das tendências predominava sobre a lógica dos fundadores do partido".
Por isso mesmo, estava à vontade para dar o xeque-mate no jogo de tendências, na forma do "a candidatura Lula (ao Planalto) ou a candidatura Vladimir Palmeira (ao governo do Rio de Janeiro)".
Mas, antes mesmo do episódio Vladimir Palmeira, Lula já havia dado, ao menos na visão de José Dirceu, um sinal evidente de que mudara. Foi quando convidou o empresário Antonio Ermírio de Moraes para subir a seu palanque, desafiando as tendências mais à esquerda do partido, que vêem em Ermírio a encarnação das odiadas elites.
"O episódio Antonio Ermírio de Moraes é uma ruptura com o Lula que acomodava, que conciliava", interpreta José Dirceu.
O povo - Lula está cada vez mais convencido de que não basta ter origem mais popular do que qualquer adversário que já enfrentou em eleições e de que não basta dizer-se representante dos excluídos para ser aceito (e votado) por eles.
FHC - Durante algum tempo, "acreditava-se no PT que Fernando Henrique poderia fazer um governo que avançasse muito no plano político e social", depõe outro amigo de Lula, o historiador Marco Aurélio Garcia, secretário de Relações Internacionais do partido e coordenador do plano de governo para 1998.
O próprio Lula conta que imaginava que FHC "fosse fazer uma inflexão profunda e respeitar a sua biografia".
Acrescenta: "Depois, comecei a perceber que ele não era refém do PFL e, sim, que a cabeça dele é que havia mudado".
Desaparecia por completo, a prevalecer essa avaliação, a proximidade entre Lula e FHC, por quem o então dirigente sindical Luiz Inácio, que ainda não incorporara o Lula ao nome, chegou a fazer campanha, na eleição de 1978 para o Senado.
Desaparecia também o respeito que os dois demonstraram um para com o outro, durante a campanha de 1994, ainda que trocassem farpas, inevitáveis em um pleito polarizado entre eles.
FHC passou a ser a personificação do inimigo, a ponto de Lula já não poupar nem sequer a capacidade analítica do presidente, um sociólogo que ele antes respeitava.
Comentando a entrevista coletiva que FHC concedeu no final de maio, nos jardins do Palácio da Alvorada, diz Lula, a respeito do trecho em que o presidente falou sobre a seca e sobre o semi-árido nordestino:
"Se fosse uma defesa de tese e o Paulo Renato estivesse na banca examinadora, o Fernando Henrique seria reprovado", ironiza, em alusão ao ministro da Educação, Paulo Renato Souza.
Em muitos momentos, Lula parece encarnar, em relação a Fernando Henrique, a tese de Leonel Brizola sobre uma suposta "raiva" da sociedade brasileira em relação ao governo.
Tanto que chega a ser mais ameno com os inimigos de sempre ao compará-los ao inimigo de agora.
"Ao contrário da elite conservadora, que ao menos conhece o país, ele conhece muito o mundo, a filosofia, mas não conhece o chão do país que governa", dispara Lula.
Lula emite sinais de que não teme mais o "efeito avassalador" que enxergou, em 1994, no Plano Real (ou, como ele prefere, na maciça propaganda do plano).
"O Fernando Henrique está vulnerável porque, por mais que faça no que lhe resta de mandato, não vai conseguir superar o que não fez", aposta Lula. Agora, ao contrário de 1994, em que se bateu contra um plano, Lula acha que vai enfrentar um presidente em situação de orfandade.
"Com as mortes do Luís Eduardo (Magalhães) e do Sérgio Motta, o governo perdeu o conservador que respeitava o fato de o Fernando Henrique ser do PSDB e quem, como o Serjão, batia no PFL para reafirmar que FHC era do PSDB", analisa Lula.
Ficou, completa, "prisioneiro da burocracia e dos tecnocratas".
Se o próprio Lula mudou em relação a 1994, ele parece achar que a maior mudança se deu no campo do adversário. Em vez da sedução de um plano que derrotou a inflação, vai enfrentar desta vez, supõe, um presidente "vulnerável", "órfão" e "prisioneiro" da tecnoburocracia.
Se verdadeiras as premissas, só as urnas de outubro dirão. Mas é o suficiente para que o Lula deste início de campanha pareça ter tomado uma ou mais pílulas de um Viagra político, depois da derrota de 1994 que Marco Aurélio García define como "um nocaute tão violento que a gente ficou meio sem perspectiva".



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