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LANTERNA NA POPA
O Estado essencial
ROBERTO CAMPOS
Duas questões estão sendo objeto de alguma confusão na cabeça do público, e talvez na mídia. É a confusão entre a necessidade de desinchar o Estado e o
aumento da sua eficiência.
Considero-me insuspeito para
falar, por ter sido sempre severo
crítico da ineficiência endêmica,
do clientelismo e do corporativismo do setor público brasileiro, e por minha preferência pela
racionalidade do mercado como
mecanismo de alocação dos recursos produtivos.
Mas a ótica liberal é o oposto
da opção preferencial pela desordem. O que o pensamento liberal e humanista quer é o máximo de respeito pela liberdade
do indivíduo. A destruição da
ordem e das referências de valores faz exatamente o contrário.
Reduz irremediavelmente o espaço da liberdade. A necessidade de ordem não é uma "invenção da direita". É condição "sine
qua non" da vida civilizada e do
desenvolvimento máximo do
potencial humano.
Liberdade, como Hegel certa
vez notou, é a consciência da necessidade. Não pode existir no
vazio, como mera indeterminação. Requer um sistema de regras eficazes -isto é, regras que
sejam cumpridas. E, para que
exista o Estado de Direito (uma
inovação do pensamento liberal) e, por conseguinte, uma
condição democrática, requer-se legitimidade. O que, nas sociedades avançadas modernas,
se estabelece através de um complexo processo político, cujos sucessivos degraus devem ser sancionados pela maioria dos cidadãos, sem que a essa maioria,
contudo, pela mera expressão
dos números apurados a cada
momento, seja lícito arrogar-se
o poder de oprimir a minoria.
Temo que estejamos chegando
a um ponto em que começa a
configurar-se algum risco de desagregação da racionalidade do
sistema. Não se trata de "culpar
o governo". As "causas" são
muitas, antigas, complexas e,
em certos aspectos, chegam a parecer quase intratáveis.
O Estado é o aparelho formal
da sociedade em que se concentra, como última "ratio", o poder de coerção. Depois dos brutais choques tectônicos da Primeira Guerra e da Grande Depressão, em quase todo o mundo
o Estado se expandiu, ocupando
boa parte do espaço em que vigorava a auto-regulação preferida pelos regimes liberais. Até
certo ponto, era inevitável, porque o enorme aumento do tamanho e da complexidade da
economia e do sistema internacional, a urbanização acelerada
e o potencial desestabilizante da
revolução tecnológica tornam
necessário conter-se a violência
das ondas e regular os novos fatores potenciais de perturbação.
O movimento do pêndulo foi
longe demais, no entanto, e a
crise mundial dos anos 68-82 demonstraria que se havia tornado inviável lidar com os excessos
do Estado.
O Estado brasileiro foi inchando e se deformando, ao longo do
tempo, por conta da natureza
do processo político do país. Isso
acontece com frequência nos
países menos desenvolvidos, e
não raro, nos "emergentes" e
"em transição", como é fácil de
entender. Neles as carências são
proporcionalmente mais intensas, e o poder da máquina pública se torna especialmente importante, tanto para distribuir
benesses como para arbitrar disputas distributivas. No caso brasileiro, as dimensões do aparelho federal não são grandes, por
comparação com o que existe
em outras partes. Claro que havia o que podar e, ainda mais, o
que rearrumar. Não é essa, porém, a "causa causarum" dos
desequilíbrios das contas públicas. O grande fator negativo foram as estatais, e têm continuado a ser Estados e municípios,
com os respectivos Legislativos e
Judiciários. Sem falar, naturalmente, na Previdência pública,
cujo déficit se tornou muito grave devido à incrível prodigalidade e imprevidência por parte de
gerações de clientelismo político,
coroado pelo carnaval de benesses da Constituição de 1988. Isso
num tempo em que o alongamento da vida média e a expansão de benefícios aumentavam a
carga de compromissos futuros.
A reforma da Previdência é assim assunto urgentíssimo, não
só sob o aspecto fiscal, como sob
o de justiça social, pois é um sistema de solidariedade invertida.
Mas temos de conviver com esse
passado -sem fazer tábula rasa
do Estado de Direito.
Por falar nisso, é surpreendente que nenhuma ação séria tenha sido tomada a respeito do
problema dos marajás. É verdade que esse não é do âmbito federal e que, em geral, as malandragens se fizeram através de
leis, e têm sido sustentadas na
Justiça. Talvez um excesso de
formalismo jurídico tenha impedido o saneamento da situação. Há grandes queixas a respeito da aparente impotência
dos tribunais diante dos múltiplos abusos (entre os quais, a indústria de indenizações) perpetrados por vias que têm aspecto
externo de legalidade, como os
famosos "direitos adquiridos".
Esses são frequentemente "abusos consentidos".
Não são os brasileiros os únicos a ter problemas com o serviço público. Nos Estados Unidos,
onde é limitada a estabilidade
dos servidores, de vez em quando um presidente fala em "reinventar o governo".
Aqui coisas graves começam a
acontecer devido ao esboroamento da credibilidade do Estado. O MST invade, saqueia, rouba e mata, desencorajando os
produtores dos quais dependemos para alcançar a meta de 100
milhões de toneladas de grãos.
Sentenças não se cumprem. A lei
torna-se ficção. Guerras de traficantes, a juventude empurrada
para o crime e a perversão, pela
fantasia sinistra da legislação do
menor, contra a qual a única
iniciativa oficial é propor o desarmamento das vítimas... Caminhoneiros param o país e bloqueiam estradas, castigando a
população inocente. O governo
pigarreia, para engrossar a voz.
E daí?
Conto-me entre as pessoas que
realmente apreciam Fernando
Henrique e respeitam seus esforços para modernizar o país. Ele
recebeu uma herança dificílima.
Suspeito, porém, que ele tenha
ficado, sem se dar conta, subliminarmente influenciado pelas
fantasias emocionais da geração
de 68, do "é proibido proibir" de
uma ingênua meia-esquerda
que confundiu o repúdio à ilegitimidade do regime militar com
a sabotagem à autoridade do
Estado.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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