São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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LANTERNA NA POPA

O Estado essencial

ROBERTO CAMPOS

Duas questões estão sendo objeto de alguma confusão na cabeça do público, e talvez na mídia. É a confusão entre a necessidade de desinchar o Estado e o aumento da sua eficiência.
Considero-me insuspeito para falar, por ter sido sempre severo crítico da ineficiência endêmica, do clientelismo e do corporativismo do setor público brasileiro, e por minha preferência pela racionalidade do mercado como mecanismo de alocação dos recursos produtivos.
Mas a ótica liberal é o oposto da opção preferencial pela desordem. O que o pensamento liberal e humanista quer é o máximo de respeito pela liberdade do indivíduo. A destruição da ordem e das referências de valores faz exatamente o contrário. Reduz irremediavelmente o espaço da liberdade. A necessidade de ordem não é uma "invenção da direita". É condição "sine qua non" da vida civilizada e do desenvolvimento máximo do potencial humano.
Liberdade, como Hegel certa vez notou, é a consciência da necessidade. Não pode existir no vazio, como mera indeterminação. Requer um sistema de regras eficazes -isto é, regras que sejam cumpridas. E, para que exista o Estado de Direito (uma inovação do pensamento liberal) e, por conseguinte, uma condição democrática, requer-se legitimidade. O que, nas sociedades avançadas modernas, se estabelece através de um complexo processo político, cujos sucessivos degraus devem ser sancionados pela maioria dos cidadãos, sem que a essa maioria, contudo, pela mera expressão dos números apurados a cada momento, seja lícito arrogar-se o poder de oprimir a minoria.
Temo que estejamos chegando a um ponto em que começa a configurar-se algum risco de desagregação da racionalidade do sistema. Não se trata de "culpar o governo". As "causas" são muitas, antigas, complexas e, em certos aspectos, chegam a parecer quase intratáveis.
O Estado é o aparelho formal da sociedade em que se concentra, como última "ratio", o poder de coerção. Depois dos brutais choques tectônicos da Primeira Guerra e da Grande Depressão, em quase todo o mundo o Estado se expandiu, ocupando boa parte do espaço em que vigorava a auto-regulação preferida pelos regimes liberais. Até certo ponto, era inevitável, porque o enorme aumento do tamanho e da complexidade da economia e do sistema internacional, a urbanização acelerada e o potencial desestabilizante da revolução tecnológica tornam necessário conter-se a violência das ondas e regular os novos fatores potenciais de perturbação. O movimento do pêndulo foi longe demais, no entanto, e a crise mundial dos anos 68-82 demonstraria que se havia tornado inviável lidar com os excessos do Estado.
O Estado brasileiro foi inchando e se deformando, ao longo do tempo, por conta da natureza do processo político do país. Isso acontece com frequência nos países menos desenvolvidos, e não raro, nos "emergentes" e "em transição", como é fácil de entender. Neles as carências são proporcionalmente mais intensas, e o poder da máquina pública se torna especialmente importante, tanto para distribuir benesses como para arbitrar disputas distributivas. No caso brasileiro, as dimensões do aparelho federal não são grandes, por comparação com o que existe em outras partes. Claro que havia o que podar e, ainda mais, o que rearrumar. Não é essa, porém, a "causa causarum" dos desequilíbrios das contas públicas. O grande fator negativo foram as estatais, e têm continuado a ser Estados e municípios, com os respectivos Legislativos e Judiciários. Sem falar, naturalmente, na Previdência pública, cujo déficit se tornou muito grave devido à incrível prodigalidade e imprevidência por parte de gerações de clientelismo político, coroado pelo carnaval de benesses da Constituição de 1988. Isso num tempo em que o alongamento da vida média e a expansão de benefícios aumentavam a carga de compromissos futuros.
A reforma da Previdência é assim assunto urgentíssimo, não só sob o aspecto fiscal, como sob o de justiça social, pois é um sistema de solidariedade invertida. Mas temos de conviver com esse passado -sem fazer tábula rasa do Estado de Direito.
Por falar nisso, é surpreendente que nenhuma ação séria tenha sido tomada a respeito do problema dos marajás. É verdade que esse não é do âmbito federal e que, em geral, as malandragens se fizeram através de leis, e têm sido sustentadas na Justiça. Talvez um excesso de formalismo jurídico tenha impedido o saneamento da situação. Há grandes queixas a respeito da aparente impotência dos tribunais diante dos múltiplos abusos (entre os quais, a indústria de indenizações) perpetrados por vias que têm aspecto externo de legalidade, como os famosos "direitos adquiridos". Esses são frequentemente "abusos consentidos".
Não são os brasileiros os únicos a ter problemas com o serviço público. Nos Estados Unidos, onde é limitada a estabilidade dos servidores, de vez em quando um presidente fala em "reinventar o governo".
Aqui coisas graves começam a acontecer devido ao esboroamento da credibilidade do Estado. O MST invade, saqueia, rouba e mata, desencorajando os produtores dos quais dependemos para alcançar a meta de 100 milhões de toneladas de grãos. Sentenças não se cumprem. A lei torna-se ficção. Guerras de traficantes, a juventude empurrada para o crime e a perversão, pela fantasia sinistra da legislação do menor, contra a qual a única iniciativa oficial é propor o desarmamento das vítimas... Caminhoneiros param o país e bloqueiam estradas, castigando a população inocente. O governo pigarreia, para engrossar a voz. E daí?
Conto-me entre as pessoas que realmente apreciam Fernando Henrique e respeitam seus esforços para modernizar o país. Ele recebeu uma herança dificílima. Suspeito, porém, que ele tenha ficado, sem se dar conta, subliminarmente influenciado pelas fantasias emocionais da geração de 68, do "é proibido proibir" de uma ingênua meia-esquerda que confundiu o repúdio à ilegitimidade do regime militar com a sabotagem à autoridade do Estado.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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