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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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ELIO GASPARI

A Abin e o PT-Federal reclamam: a lei atrapalha

O PT-Federal fez mais uma descoberta na série Delícias de Brasília: precisa de um serviço de informações e, para isso, quer ampliar o quadro e os poderes da Agência Brasileira de Inteligência. Segundo o general Jorge Armando Felix, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, a Abin desempenha uma atividade de Estado e merece apoio. Para isso, os doutores do Planalto iniciaram uma operação de esclarecimento público. No barato, querem uma Superabin, capaz de solicitar grampos telefônicos, gravar o que se diz na casa dos outros e interceptar correspondência (leia-se e-mail). Hoje, a Abin só grampeia alguém se a Polícia Federal patrocinar o pedido à Justiça.
Num encontro com jornalistas, durante o qual o general Felix expôs seu pleito, o secretário de Planejamento e Coordenação da Agência, Athos Irigaray, mostrou o miolo da picanha: "Nosso trabalho é muito legalista. Isso dificulta a atividade da agência e nos cria problemas em relação à velocidade de obtenção de informações". Deve-se ao repórter Cristiano Romero o registro desse momento de sinceridade do governo petista. Irigaray disse também: "A agência tem sido ineficiente por agir dentro dos parâmetros legais".
São muitos os trabalhos que a lei dificulta e existem duas palavras para designar todos eles: atos ilegais. O que o pessoal quer da República é a velha manha: conceder aos agentes e hierarcas da Abin (e aos poderosos do momento, que os colocam a seu serviço) a proteção da inimputabilidade. Querem fazer o que a lei não permite e não querem ser responsabilizados pelas ilegalidades e trapalhadas em que vierem a se meter.
O PT-Federal quer turbinar a Abin ao mesmo tempo em que Lula criou uma comissão ministerial que leve "à localização dos restos mortais de participantes da guerrilha do Araguaia". O decreto que criou a comissão é claro: trata-se apenas de procurar os restos mortais de cerca de 50 guerrilheiros. De que morreram esses cidadãos? Epidemia? Desgosto? Comida estragada? É bom lembrar que persiste a versão oficial segundo a qual Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho se enforcaram em suas celas, na central de torturas de São Paulo, em 1975 e 1976. Com esse precedente, é possível que Lula venha a anunciar que no Araguaia deu-se um suicídio coletivo.
O general Felix disse na quinta-feira que, a seu juízo, nada há nos arquivos da Abin que possa ajudar a elucidar o que aconteceu no Araguaia. Se a Abin não consegue achar coisas que estão nos seus arquivos, como será possível qualificá-la para a busca de informações que estão nos arquivos dos outros? Existem documentos com informações sobre o Araguaia no arquivo da Abin. É só ir buscá-los.
Se o general tem interesse no assunto, pode fazer o seguinte: manda pedir os relatórios encaminhados pelo Serviço Nacional de Informações ao presidente da República entre 1972 e 1974, sobretudo as "Apreciações" remetidas quinzenalmente ao "PR". Cada uma delas tem cerca de dez páginas. Esses papéis não podem ter sido destruídos, pois são documentos de Estado e tratam de diversos assuntos. Deveriam existir pelo menos duas cópias de cada conjunto.
Quem tiver curiosidade em saber o que dizia um desses documentos encaminhados ao presidente pode ler o quadro ao lado. Quem quiser uma xerox do original pode solicitá-la, pela internet, ao Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas. Lá a história do Brasil é tratada como merece. Se as pessoas que dizem ao general Felix que a Abin não guarda papéis do Araguaia ao menos lessem a bibliografia do SNI, ele ficaria mais bem informado. A existência desse documento foi revelada há dois anos pelo pesquisador Celso Castro, do Cpdoc, no livro "Dossiê Geisel", no qual nove historiadores analisaram o acervo deixado pelo presidente e entregue por sua filha, Amália Lucy, à guarda do Cpdoc.
Quando os guerrilheiros rendidos e presos eram assassinados, por ordem dos comandantes militares e dos governantes da ocasião, o ministro Márcio Thomaz Bastos (o coordenador da comissão dos restos mortais) estava defendendo a vida de presos. Não é justo que varram um pedaço de sua biografia para dentro do Araguaia.

CONFIDENCIAL

O SNI fala do Araguaia

(Trecho de um documento do SNI, marcado "Confidencial", de março de 1974.)

"As operações que se desenvolvem na área sudeste do Estado do Pará tiveram seu ritmo diminuído em consequência das fortes chuvas que vêm caindo sobre toda a região, estando, no momento, praticamente paralisadas. Contudo, os resultados obtidos até agora pela "Operação Marajoara" são bastante animadores. De um efetivo inicial levantado da ordem de 90 terroristas (os guerrilheiros eram 70), restam na área cerca de 20, tendo sido destruídos 54 depósitos de suprimentos de vários tipos e neutralizada ou destruída a rede de apoio que utilizavam.
Sem contar, agora, com o apoio dos habitantes locais, os remanescentes permanecem espalhados pela área; segundo os últimos dados colhidos, sua moral é baixa, e sofrem, ressentindo-se da falta de suprimentos e equipamentos.
Aguarda-se a melhoria das condições meteorológicas para reinício das operações visando à destruição dos elementos que ainda se encontram na região."
(Nos meses seguintes, os guerrilheiros foram sistematicamente destruídos, inclusive os que foram presos ou se renderam a partir outubro de 1973. A última guerrilheira destruída foi Valquíria Afonso Costa. Tinha 25 anos e estudara pedagogia na UFMG. Presa no mato, foi vista viva na prisão militar de Xambioá, em outubro de 1974.)

Um grande livro sobre o racismo (in)existente

Vem aí um livraço. É "Racismo à Brasileira", do professor americano Edward Telles, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Será um demarcador no debate do período pós-blablablá da questão racial brasileira. Ele trata do puro, velho e verdadeiro racismo nacional. Aquele que se disfarçou de "branqueamento" e "democracia racial". Telles localiza na década de 90 o colapso dessas teorias de conveniência e saúda a entrada dos negros no debate. O livro deixa a impressão de que o andar de cima gosta de transformar a questão racial brasileira num eterno seminário em torno da obra de Gilberto Freyre ou de quem quer que seja, desde que os negros fiquem calados. Coisa assim: em 1998, num debate sobre as questões sociais da América Latina realizado em Nova York, um representante do movimento negro nacional disse que o Banco Interamericano de Desenvolvimento deveria investir mais nos afro-brasileiros. Foi repreendido pelo representante oficial de Pindorama na reunião: "Eu acho que você não deveria levantar essa questão. Esse é um problema dos Estados Unidos, que não existe no Brasil". Telles mostra como o andar de cima do Itamaraty ajudou a propagar a idéia da harmonia celestial. Cita o embaixador Celso Amorim, numa reunião em Genebra, em março de 2000: "A essência [do Brasil] como nação se expressa através da afirmativa da mistura étnica e da tolerância". (Em 1999, havia 1.060 diplomatas e, no máximo, oito negros misturados ao grupo.)
Telles leu os livros, conheceu as pessoas (foi representante da Fundação Ford no Brasil) e é uma fera em demografia. Seu livro chega a machucar: "O caso brasileiro demonstra que a industrialização pode, na realidade, aumentar a desigualdade no topo da estrutura de classes".
O progresso não diminuiu a disparidade de renda entre brancos e negros. Pelo contrário. Em 1960, a renda de um homem negro equivalia a 60% da renda do branco. Em 1976, no auge do milagre econômico, caíra para 36%. Em 1999, estava em 46%. Entre 1960 e 1999, a diferença absoluta na escolaridade dos jovens brancos em relação aos negros passou de 1,6 para 2,2 anos.
Telles tirou do Censo de 1991 uma chocante relação estatística: tomando-se negros e negras que têm irmãos ou irmãs brancas (com pais ou mães diferentes, entenda-se), vê-se que entre os 9 e os 16 anos a percentagem de jovens brancos que estavam nas séries escolares adequadas era superior à dos irmãos negros. A evasão escolar era maior entre os irmãos negros, e o aproveitamento era maior entre os irmãos brancos. Telles chega ao seu melhor momento num brilhante capítulo sobre as políticas de ação afirmativa. Ele defende um sistema de cotas para o acesso às universidades públicas. O professor compara números brasileiros e americanos de 1960 (quando começaram as cotas nos EUA) e 1996. Em 1960, um branco americano tinha 3,1 vezes mais chances de se tornar um profissional liberal do que um negro. Passados 36 anos, suas chances caíram para 1,6. Em Pindorama, as chances do branco eram de 3,1 em 1960. Trinta e seis anos depois, elas aumentaram para 4 (4,8 para mulheres).
O argumento de Telles é simples: é lorota a história segundo a qual no Brasil há uma base de desigualdade social, mas não há racismo. É o racismo que desenha a base da desigualdade.
"Racismo à Brasileira" tem a marca das grandes obras: merece ser lido sobretudo por quem se dispõe a contrariá-lo.

Duro como a fé

Com quase 40 anos de militância esquerdista, Frei Betto marcou sua linha de conduta nas estrelas. Defende o socialismo cubano, Fidel Castro, o MST e seus militantes presos. Quanto mais esses quatro totens estiverem debaixo de bala, mais ele os apoiará. Betto informa: "Para mim, esquerdista é elogio".

Expresso Destaque

A máquina de propaganda do governador Geraldo Alckmin produziu o bingo-avaliação. No final de setembro, ela resolveu fabricar um evento festejando 89 mestres da rede pública no Dia do Professor. Era necessário selecionar os homenageados. Cada diretora de escola teve uma semana para indicar o seu destaque. Os nomes foram para as direções estaduais e, em pelo menos uma delas, a segunda etapa da seleção deu-se por sorteio.
Os alunos pedem isonomia.

Boa notícia

O financiamento popular que Lula conseguiu impor à burocracia do crédito estatal já deu resultado: uma indústria paulista que fabrica os moldes de plástico do interior de geladeiras teve sua produção aumentada em 40% nos meses de setembro e outubro.

Ano gordo

O historiador Marco Villa avisa aos organizadores de seminários que 2004 será um ano com inédita concentração de grandes aniversários. A saber:
- 50 anos do suicídio de Vargas
- 40 anos da queda de Jango
- 30 anos da derrota eleitoral da ditadura
- 20 anos da campanha das Diretas-Já
- dez anos do Plano Real
Resta saber se 2004 produzirá sua própria efeméride.

Diárias do poder

Em dez meses de governo, as diárias dos companheiros que acompanham Lula em suas viagens pelo mundo custarão à Viúva um pouco mais de US$ 1 milhão. As diárias variam de US$ 220 a US$ 460 para cada companheiro.
O anarcoliberalismo de Lula comprometeu U$ 1 milhão da bolsa da Viúva, mas só pagou metade disso. O beiço presidencial inclui fornecedores paraguaios e portugueses.


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