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A desvalorização do real foi uma decisão solitária
DOS ENVIADOS ESPECIAIS
O presidente Fernando Henrique Cardoso conta que decidiu
sozinho mudar a política cambial
do seu primeiro mandato. Relata
que desde o começo de 1998 pensava em desvalorizar o real forte,
objeto das maiores polêmicas dos
seus anos de governo e motivo,
segundo seus críticos, dos juros
altos, do aumento da dívida pública, do baixo crescimento e da
fragilidade externa da economia.
O presidente chama seus críticos, nessa questão, de "engenheiros de obra feita". Argumenta que
o real valorizado serviu para conter a inflação, que a mudança
cambial é um assunto muito delicado e arriscado. Diz que, quando
decidiu pela mudança, perdeu os
principais assessores que pretendia nomear para conduzir o novo
rumo da política econômica (os
economistas André Lara Resende
e José Roberto Mendonça de Barros) e que não contava com o
apoio do ministro da Fazenda,
Pedro Malan, e do presidente do
Banco Central, Gustavo Franco,
para mudar o câmbio. Malan chegou a pedir demissão, diz FHC.
Folha - O seu governo tem orgulho de ter estimulado a consciência
da responsabilidade fiscal, da prudência financeira. Mas, em especial
no primeiro mandato, a dívida pública cresceu e o controle do gasto
público foi menor
que em 1992 e
1993 e do que viria
a haver depois de
1999. Também aumentou o famoso
déficit externo.
Não houve imprudência financeira?
Isso não tornou o
país mais vulnerável às crises externas, que começaram já em 1994?
Não teria havido
erro de análise, de
perspectiva?
FHC - Vamos lá.
Primeiro, a questão relativa ao financiamento externo. Nós chegamos tarde à abundância de capitais.
O Brasil para poder crescer precisa
de capital. A poupança doméstica
não é suficiente,
não só pelo capital, também por
causa de investimento, tecnologia
etc. Mas quando
houve um momento favorável, nós estávamos
desorganizados, não pudemos
aproveitar...
Folha - A partir de 1990.
FHC - Pegamos um finalzinho
dessa abundância de capitais. Se
não pegássemos essa abundância
de capitais, não teríamos feito o
que fizemos. Mas o sinal trocou
mais adiante, é verdade, em 1998.
Mas, não obstante, até hoje o fluxo de capital do Brasil é bastante
elevado. Quando fui ministro da
Fazenda, recebíamos de US$ 1 bilhão a US$ 2 bilhões por ano. Este
ano são US$ 16 bilhões. Está havendo uma tempestade, mas o
fluxo continua muito forte, de capital direto, de investimentos, de
capital financeiro. Mas, mesmo
em janeiro de 98, havia de novo
muito dinheiro aqui.
Quando ganhei a eleição, em
1994, veio a crise do México e eu
pensei: "Meu Deus, está começando o círculo recessivo, "mala
suerte"". Bom, estava, não é? Mas
um círculo recessivo no capitalismo moderno, que não é depressivo necessariamente. E vieram
quantas crises: teve em 1995, teve
em 1997, teve 1999, teve 2001 e teve 2002. No conjunto, isso criou o
momento atual, que chamam de
"aversão ao risco": a liquidez secou e a desconfiança aumentou.
Mas, mesmo assim, o Brasil continua recebendo investimentos. A
chamada "vulnerabilidade externa" é até engraçada, porque nesse
momento é evanescente, não é?
Folha - Mas qual o balanço?
FHC - Nós chegamos a ter US$ 33
bilhões de investimentos direto
num ano. Só a China fez mais do
que nós, não é? E continua havendo esse fluxo. Se não tivéssemos
aproveitado esse fluxo, teríamos
tido muito menos capacidade de
fazer o que foi feito, o que, acho, é
pouco salientado.
No primeiro mandato, por causa do tipo de câmbio, que era o
real valorizado, isso barateou as
importações. Bom, então o reequipamento da indústria brasileira veio daí, veio daí a modernização, mas no entanto havia a crítica
do "sucateamento" da indústria.
Folha - Algumas cadeias produtivas importantes, mais avançadas,
foram quebradas.
FHC - Sei, mas em calçado, têxtil,
móveis, tudo está refeito. O capitalismo é um sistema cruel, destrói e reconstrói. Uns perdem e
outros ganham. Aqui no caso
houve uma mudança qualitativa e
positiva. Está todo mundo competindo, exportando, tem financiamento para a exportação, que
o BNDES dá. Aumentou a produtividade incessantemente da
indústria. Na
agricultura houve
uma revolução.
Nos serviços
também, por
causa de todo o
negócio de telecomunicações e
informática. Esse
é o saldo que fica
do que aconteceu
no primeiro
mandato.
Folha - Mas o déficit externo, o
real forte, reservas em dólares para mantê-lo deixaram os juros altos...
FHC - Por causa
do tipo de câmbio, exatamente.
Folha - Mas até
quando e quanto
era prudente
manter a política?
FHC - É muito
fácil ser engenheiro de obra
feita. Na época
ninguém queria
mudar. Quem era
contra [a política econômica do
primeiro mandato"? Os que sempre foram, os que têm uma visão
de economia isolada. Esses eram
contra sempre e mais ninguém.
Todo mundo era a favor da valorização, do tipo de câmbio. Em todas as tentativas de mudar isso aí,
que era conversado e tal, se dizia
que não era o momento etc.
Folha - Mas em 97 já havia uma
oposição razoável [à política do
real forte", dizia-se que tal política
levaria a um problema de insolvência, que o país teria de ir ao FMI,
que parecia imprudência financeira sustentar aquele nível de reservas e real [forte".
FHC - Acho que em 1998 chegamos a essa situação, isso é indiscutível. Você pode discutir hoje,
se eu pudesse refazer a história, se
eu teria mudado [a política cambial" no começo de 98, no comecinho, porque depois de março não
daria mais...
Folha - Por quê?
FHC - O ambiente estava tenso
demais. Muito tenso. Se fosse mexer, estragava tudo. Esse negócio
de câmbio é muito difícil. Não se
esqueça de que nós tentamos
acertar o câmbio desde sempre.
Por outro lado, houve anos de
crescimento econômico razoável
nesses oito anos, de mais de 4%,
quando não houve crise financeira internacional.
E nós estamos analisando sempre como se políticas econômicas
fossem capazes de alterar processos de acumulação [de capital",
que têm outra dinâmica. Continuo dizendo que não sou neoliberal. Processos estruturais pesam.
Folha - A situação da dívida pública foi deteriorada por causa da acumulação de reservas [juros altos" e,
ainda, devido à perspectiva de desvalorização do real, você começou
a ter a perspectiva de indexação da
dívida pública ao dólar...
FHC - A dívida pública basicamente foi a explicitação de dívidas
já existentes. Reconhecemos dívidas de Estados e municípios...
Folha - Mas essas dívidas inflaram também por causa dos juros.
FHC - Quando você aumenta a
dívida, aumentam os juros. Como
é que faz o saneamento? Não tem
jeito. Outra coisa são os esqueletos, que foram reconhecidos.
Folha - Mas existe uma controvérsia a respeito do tamanho desses
esqueletos na dívida...
FHC - Eu não tenho controvérsia,
tenho os dados do Tesouro, que
analisa. Não há controvérsia, não,
existe vontade de catar milho. Aí
você vai achar pêlo em ovo.
Folha - Mas juros altos para manter reservas e o real forte são pêlo
em ovo? Parte dos juros era devida
à manutenção de reservas.
FHC - Uma parte, mas quando
acaba isso [a política cambial do
Real, no começo de 1999", os juros
continuam altos. Por quê?
Folha - Mas há um diferencial,
não é? Na época, 98, o juro real médio devia ser uns 26%, depois caiu
para uns 14% ao ano.
FHC - Tudo bem, agora é 14%.
Folha - Esse diferencial é relevante, ao longo dos anos.
FHC - Tudo bem, não nego. Nunca nego evidências, quer dizer, isso é verdade. Agora, tudo isso você pode ver agora, ex post. No momento, eu estava segurando a inflação. "Ah, por que não mudou o
câmbio?" E a memória inflacionária? E a indexação? Não havia isso
de "populismo cambial". Ninguém estava preocupado com isso.
Folha - O senhor, em 1998, foi a
favor da mudança cambial e da saída de Gustavo Franco. O ministro
Pedro Malan era contra?
FHC - Foi.
Folha - O ministro Malan queria
continuar a política [cambial"?
FHC - As coisas sempre são mais
complicadas. Em 1998, quando
veio a crise da Rússia, a partir de
agosto, a coisa complicou muito.
Em setembro, fiz um discurso no
Itamaraty dizendo que iríamos
apertar a política fiscal e ir ao FMI,
antes da eleição. Foi o que ocorreu. O FMI deu um empréstimo
importante.
Havia muita briga no FMI nessa
ocasião. Um setor deles, que é o
setor mais ortodoxo, achava que
tínhamos de mudar, fazia várias
propostas. Uma delas, de fazer como a Argentina [adotar o câmbio
fixo e a livre conversibilidade entre moeda nacional e estrangeira".
Não falavam em flutuação de
câmbio, mas em acelerar a desvalorização. Outros achavam que
dava para fazer [a flutuação cambial". Afinal, prevaleceu esse ponto de vista que dava para ir mantendo a mecânica.
Folha - Como foi a decisão?
FHC - Quando o FMI deu a chancela e o empréstimo, o Congresso,
em dezembro, votou uma medida
que derrubou a contribuição dos
inativos, por maioria simples. Isso
foi lido lá fora como o seguinte:
"Ah, esses brasileiros estão fazendo o que os outros [países" fizeram: pegaram os nossos bilhões
de dólares, vão pegar os reais deles e mandar para fora em dólares
com o câmbio baixo".
Fomos surpreendidos pelo
Congresso. Os Congressos não
funcionam de maneira domesticada, nunca. O Congresso, o tempo todo, dá sinal da sua presença
autônoma. Então, ele vota a favor,
a favor e, de repente... Foi uma cochilada e aquilo custou caríssimo.
O efeito do empréstimo foi anulado e aí as reservas começaram a
cair. Bom, mas,
muito antes disso
eu já estava disposto a mudar a
política, já estava
disposto a provocar uma mudança
no câmbio.
Folha - O que
aconteceu?
FHC - O que dificultou muito foi a
questão do grampo [do BNDES",
em que a Folha teve papel decisivo,
além do [senador
Pedro" Simon [senador do PMDB,
oposicionista".
Nesse momento,
as pessoas que estavam favoráveis a
uma outra visão
foram embora do
governo. Era uma
situação muito delicada, mas havia a
capacidade de
operação, que não
era questão política, é questão de
operação, como é
que você move a
máquina, com
que nomes. Eu estava com poucas
cartas para jogar e ainda assim eu
insisti. Nesse momento, acho que
o Malan preferia manter o Gustavo [Franco".
Como todo mundo sabe, tenho
um enorme respeito pelo Gustavo, gosto do Gustavo. Pedi inúmeras vezes ao Gustavo que me
apresentasse propostas de uma
aceleração maior no ajuste do
câmbio. Mas ele tinha uma visão
diferente. Achava que era questão
de persistir e que os fluxos de capital voltariam. Aí eu decidi mudar. Sozinho, praticamente, porque os que podiam me ajudar na
mudança estavam longe.
Folha - O André Lara [Resende"?
FHC - André Lara, Beto [José Roberto" Mendonça [de Barros".
Folha - Pedro Malan continuaria?
FHC - Normalmente.
Folha - Como o senhor iria conciliar isso, presidente?
FHC - Ah, na política você tem
que conciliar o inconciliável.
Sempre. O tempo todo é isso. Você não pode jogar fora pessoas de
valor intelectual, político, profissional, quando o Brasil é escasso
nisso. Gente da qualidade do Malan é rara. Ficar oito anos no Ministério da Fazenda, trabalhando
sem parar, com competência,
com compostura, é muito difícil
encontrar gente assim. Gente do
brilho do André [Lara Resende"
também é muito difícil você encontrar, o peito do [Luiz Carlos"
Mendonça [ex-ministro das Comunicações", enfim, cada um tem
suas características.
Folha - Foi uma mudança radical.
O ministro Malan não pensou em...
FHC - O ministro Malan pediu
demissão. Por escrito. Eu não
concordei, porque é preciso não
esquecer de um outro lado que
nós não estamos ainda falando.
Depois da desvalorização, houve
uma corrida aos bancos em fevereiro. Como se resolve? Hoje, para
poder fazer funcionar uma economia como a brasileira, que já é
relativamente integrada aos circuitos internacionais, você tem
que ter credibilidade. É uma coisa
que custa a gente admitir, uma inversão de uma das frases do Auguste Comte [os homens são cada
vez mais dirigidos pelo passado".
Agora, é o contrário, somos dirigidos pelo futuro.
Folha - Pelas expectativas.
FHC - Pelas expectativas. Tem
que haver credibilidade. E o Malan tem muita credibilidade dentro e fora do Brasil. As pessoas me
diziam, fora do Brasil, apesar de
tudo o que aconteceu: "Esse homem é sério". Vocês imaginam o
que vale isso no mundo de hoje?
Malan tinha credibilidade e a
manteve. Não é fácil você ter gente aqui no Brasil que possa pegar o
telefone e falar com o presidente
do Banco Central de qualquer um
dos países do G-20, com os organismos internacionais. E isso é
necessário, tem que ter uma rede.
Não adianta você
dizer a coisa certa. É preciso que a
pessoa que esteja
dizendo seja ouvida.
Mas, voltando
ao tema principal. Claro que eu
podia ter mudado, em certos
momentos você
pode até mudar.
Agora, isso se vê
com clareza hoje.
Na hora em que
se queria a mudança, quem
queria, efetivamente, não é?
Quem podia fazê-la? Não basta
querer. Que forças sociais e que
expressões, até
pessoais, para poder fazer a transformação?
Acho que a
questão da política fiscal, por
exemplo, até uma
certa data -você
tem razão-, ela
foi mais frouxa.
Até porque havia uma expectativa
de fazer coisas. Quando a gente
diz que o gasto social do Brasil aumentou incessantemente, é verdade.
Folha - Mas o crescimento foi pequeno.
FHC - A capacidade que o governo tem de produzir o crescimento
da economia é relativa. O crescimento depende de muitas coisas,
depende do fluxo externo de capitais, depende da absorção de tecnologia, depende da competição,
depende de circuitos de crédito,
depende de muitas coisas, que
não é uma política econômica que
faz. No passado, se imaginava que
poderia se decidir tudo com um
"projeto nacional". Quando alguns intelectuais falam na "falta
de um projeto nacional" estão
pensando nos anos 60: um grupo
de intelectuais definia o "projeto
nacional" junto do Estado, o Estado então punha metas e facilitava
os juros, e isso e aquilo.
Folha - Mas o senhor também tem
um "projeto nacional" e seu grupo
de intelectuais.
FHC - Mas de outra natureza.
Aposto muito mais na sociedade
do que no Estado. Acho que o
mundo moderno hoje funciona
muito mais em função da capacidade que a sociedade tem de se
organizar e de avançar do que do
Estado. As pessoas com uma visão antiga pensam que é progressista acreditar mais no Estado.
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