São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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Cortar mais os gastos significa matar crianças

DOS ENVIADOS ESPECIAIS

Aumentar o controle de gastos sem fazer reformas estruturais, como a da Previdência, iria "matar gente, matar crianças", diz o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Nesse trecho da entrevista, ele fala sobre o crescimento da economia, da distribuição de renda e do aumento de poder de compra da população. Diz que as condições de vida melhoraram, apesar de não ter havido redução de desigualdades, embora enfatize que aumentou a participação dos 10% mais pobres na renda nacional. "Foi neles que focalizamos os recursos, que são finitos. Daí, os outros reclamam."

Folha - A economia cresceu mais de 4% em 1995, mais de 5% em 1996, caiu para uns 2,5% em 1997. Não teria sido possível preparar o país para um crescimento mais sustentável à frente, com mais prudência financeira?
FHC -
Teria, se tivesse força política. Se tivesse podido fazer a reforma da Previdência, faria.

Folha - Mas, por exemplo, o controle fiscal que se fez agora, se fez com um ganho marginal da reforma da Previdência que passou...
FHC -
A verdade verdadeira é que o que houve mesmo foi o aumento de arrecadação. Porque você falar de controle fiscal num país como o Brasil é um quase nonsense, porque é um país que tem pobreza, que tem carências sociais e demanda. Então, não há como cortar o gasto público. O que você consegue fazer é um duro equilíbrio. Mas, se você não aumentar a tributação, você vai fazer o quê? Vai matar gente, crianças. Não é uma decisão de um país organizado, rico, em que se diz: neste ano eu vou controlar. Aí, morre mais criança. Não se pode fazer isso. Em tese você poderia, mas, na prática, você não vai poder fazer isso porque você tem outras responsabilidades que não são fiscais. São sociais.

Folha - Mas a política econômica do primeiro mandato não provocou uma bolha de crescimento? Havia motivação política?
FHC -
Se há uma coisa que não tem sentido imaginar é que qualquer decisão na área econômica teve de ser tomada por razões eleitorais. Não é verdadeiro.

Folha - Mas houve uma bolha de crescimento em 95, 96, que era insustentável por causa do câmbio e do gasto público?
FHC -
Não sei se era insustentável. Acho que foi muito mais insustentável devido à crise externa. Muito mais do que um problema interno. Você pode verificar que, em todos os momentos em que o país se preparava para crescer, veio um problema. No ano de 2001, houve a crise de energia, que era interna, mas cujo efeito sobre o produto é pequeno. O PIB parou não tanto pela energia quanto pelo 11 de setembro.

Folha - A abertura, a privatização e a inflação baixa diminuíram o preço relativo dos bens, cresceu o poder de compra. Mas os preços de serviços públicos privatizados subiram. Os juros levaram renda de quem paga imposto para o pessoal que tem aplicação financeira, classe média e bancos. Mas os gastos sociais crescem, muitas vezes determinados pela Constituição...
FHC -
Determinados e não implementados. Eu implementei. Nunca tinha sido implementado, a lei estava morta. Critica-se o que faz, e quando se faz, era automático. Acho que nunca é assim. E houve transferência direta de renda, por meio de toda essa rede chamada de proteção social. Juntando Previdência, assistência social e as Bolsas, você transfere mais do que a soma do Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas. Você pega dinheiro de quem tem, não é que seja rico, que é menos pobre, e dá para o mais pobre.

Folha - Agora, não obstante essas transferências, a redução da desigualdade de renda, no começo do governo...
FHC -
Nunca parou de ter...

Folha - Mas ficou pequena, quase estagnada.
FHC -
Não, não, olha pelo primeiro decil [os 10% mais pobres".

Folha - Mas a partir do segundo decil [os que estão entre os 10% e os 20% mais pobres", quase pára.
FHC -
Mas quando você focaliza no mais pobre, que foi o que nós fizemos...

Folha - Mas o segundo decil ainda é muito pobre, não é?
FHC -
Eu sei.

Folha - Aliás, até o quinto [os 50% mais pobres do país"...
FHC -
Todos são pobres. Mas quando se focalizam os mais pobres, todos os outros reclamam, é complicado. Você tem uma massa finita de recursos. Mas os índices de consumo e de acesso a bens nunca pararam de crescer. Disse ao presidente do IBGE: "Alguma coisa está errada [as estatísticas do Censo mostraram pequeno crescimento da renda nos anos FHC", porque pela tendência de renda dada não dá para ter isso aí [consumo crescente"".

Folha - É porque houve redução nos preços relativos...
FHC -
Isso é importante. Mostra que aumenta a produtividade.

Folha - O poder de compra aumentou, certo. Mas não aumentou a participação dos 50% mais pobres na renda nacional, se comparada com a dos 10% mais ricos.
FHC -
Aí eu volto ao meu argumento. Acho que essas medidas são muito precárias para poder explicar o nível de consumo. No Brasil não dá para explicar. Há uma certa incompatibilidade com o nível de qualidade de vida. O IDH melhora incessantemente.

Folha - Aumentou a informalidade do trabalho. O desemprego foi de menos de 5% para quase 8%.
FHC -
Agora, compare com os outros países. Evidentemente, é ruim ter desemprego de 7%. Mas nós estamos assistindo a mudança na estrutura produtiva mundial e ainda mais no Brasil. A indústria, por exemplo, vai perder emprego sempre aqui. É natural. É o indicador de que ela está crescendo. Quer dizer, que ela está se adaptando ao processo produtivo para poder competir.

Folha - O caso da Previdência é um problema grave de redistribuição dos fundos públicos no país. Mas a proposta de mudança que o senhor fez ganhou ar de caça a alguns "direitos adquiridos". Mas não houve a oferta de uma contrapartida do tipo "a reforma vai reduzir um pouco de déficit público, mas vamos também estimular o desenvolvimento aqui ou fazer um programa social a mais ali".
FHC -
Você se lembra como foi em 1995 e em 1996? Eu ia de bancada em bancada. Fiz conferência em quantidade, todo mundo mobilizando, explicando os motivos.

Folha - A sociedade não estava atraída por essa questão?
FHC -
Um momentinho só. Aí é que digo que perdemos a batalha. Veio o bloco corporativo com a ideologia de esquerda, não é isso? É muito forte nessa matéria. Paralisa. Vou dar um exemplo, mais recente do que a Previdência -a mudança trabalhista. O que foi proposto era simplesmente não mexer nos direitos fundamentais da Constituição, mas os acordos trabalhistas teriam validade. Mas a CUT saiu dizendo que parlamentares tinham votado contra o 13º salário, contra o salário-maternidade, contra não sei o quê. Muita gente perdeu a eleição. A batalha foi perdida no jogo político. Mas por quê? Porque os interesses enraizados são muito fortes e mais organizados. Isso pega o quê? Pega não só o funcionalismo. Pega todo mundo que é de classe média, mas que pensa que é pobre, mas que tem algum dinheiro, é contra a reforma da Previdência. Quem sabe agora, se o PT realmente fizer isso, se possa avançar, porque foi o PT o principal articulador do "não à reforma".

Folha - Mas não foi só o PT.
FHC -
Mas os interesses organizados usaram o PT, a base aliada usou. Não é o PT que é o interesse organizado. É tudo. Não é só o PT, mas o PT vocalizou, articulou e os outros ficaram ali na moita, votando contra ou dizendo: não, não dá para passar. Isso aqui é uma sociedade em que o setor desorganizado é maior que o organizado, mas tem muito menos capacidade de vocalização.

Folha - Vamos falar de setores privilegiados e derrotados. Muito se falou: "como é que empresários nacionais, industriais teriam sido "destruídos" sem protestar".
FHC -
Porque não foram [destruídos". O patrimonialismo empresarial está sendo sufocado e ele confunde uma perda que é organizacional com uma perda política, econômica.

Folha - E os bancos? Tiveram um período privilegiado...
FHC -
É verdade. Só que eles nunca pagaram tanto imposto como pagam agora.

Folha - Quais setores sociais tiveram chances de influenciar políticas e quais não tiveram? O governo, seus quadros mais orgânicos, o "núcleo duro", parecia insulado. Mas eles não são neutros.
FHC -
Sim, certamente. Mas "insulados" por quê? Isso é verdade. Mas qual o motivo do insulamento? Porque havia no Brasil uma privatização do Estado, não só de interesses corporativos, mas também os interesses privados, de mercado. Os interesses, os anéis burocráticos, estavam aqui metidos dentro do Estado. Nós tiramos isso, o quanto é possível. Alguns dos canais de comunicação, e o pessoal reclama muito, foram desfeitos, pois esses canais eram de influência direta. No Conselho Monetário Nacional havia muitos interesses representados. Nós acabamos com isso, porque não cabe que os interesses representados fiquem lá. A moeda não é uma questão que possa ser controlada por banqueiros ou por industriais. Tem que ter alguém com uma visão mais de Estado. E isso, naturalmente, as pessoas não gostaram, nem os banqueiros, porque os banqueiros pagaram o preço também. Quantos bancos quebraram, não é isso? Muitos. Sobreviveram alguns. Os que sobreviveram saíram-se melhor, bem, mas os que quebraram foram muitos. Não foi uma política para defender corporativamente os bancos, mas o objetivo foi para ver o melhor caminho para o sistema financeiro brasileiro. Quanto à composição do governo, trata-se basicamente de professores universitários, classe média ilustrada, técnicos.

Folha - Muitos economistas e "intelectuais banqueiros", para falar de maneira irônica...
FHC -
Na área financeira, mas não na área da educação, não na área da saúde, não na área da reforma agrária, não na área da cultura. E poucos empresários participaram do governo. No Brasil, o ministro da Fazenda era banqueiro, não é isso? Hoje, se você for botar um banqueiro de ministro da Fazenda, o pessoal vai chiar.

Folha - Não foi excessivo o papel do BNDES no financiamento da privatização e do capital externo?
FHC -
Acho que não. As grandes empresas em mineração são nacionais, assim como papel e celulose, petroquímica. O que não é nacional já não era, como a indústria automobilística.

Folha - E a telefonia?
FHC -
Bom, telefonia teve, aí sim. Mas você tem empresa nacional, a Telemar, além do setor de produção de peças. Então, isso [o financiamento do BNDES para empresas estrangeiras" também não corresponde à realidade. Houve integração maior no processo produtivo global. Houve mudança no padrão de produção para poder haver competição. Houve apoio, a taxa de juros para esses setores é menor, no campo também. Quem paga juros altos é o consumidor e o capital de giro.


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