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Cortar mais os gastos significa matar crianças
DOS ENVIADOS ESPECIAIS
Aumentar o controle de gastos
sem fazer reformas estruturais,
como a da Previdência, iria "matar gente, matar crianças", diz o
presidente Fernando Henrique
Cardoso.
Nesse trecho da entrevista, ele
fala sobre o crescimento da economia, da distribuição de renda e
do aumento de poder de compra
da população. Diz que as condições de vida melhoraram, apesar
de não ter havido redução de desigualdades, embora enfatize que
aumentou a participação dos 10%
mais pobres na renda nacional.
"Foi neles que focalizamos os recursos, que são finitos. Daí, os outros reclamam."
Folha - A economia cresceu mais
de 4% em 1995, mais de 5% em
1996, caiu para uns 2,5% em 1997.
Não teria sido possível preparar o
país para um crescimento mais sustentável à frente, com mais prudência financeira?
FHC - Teria, se tivesse força política. Se tivesse podido fazer a reforma da Previdência, faria.
Folha - Mas, por exemplo, o controle fiscal que se fez agora, se fez
com um ganho marginal da reforma da Previdência que passou...
FHC - A verdade verdadeira é
que o que houve mesmo foi o aumento de arrecadação. Porque
você falar de controle fiscal num
país como o Brasil é um quase
nonsense, porque é um país que
tem pobreza, que tem carências
sociais e demanda. Então, não há
como cortar o gasto público. O
que você consegue fazer é um duro equilíbrio. Mas, se você não aumentar a tributação, você vai fazer o quê? Vai matar gente, crianças. Não é uma decisão de um país
organizado, rico, em que se diz:
neste ano eu vou controlar. Aí,
morre mais criança. Não se pode
fazer isso. Em tese você poderia,
mas, na prática, você não vai poder fazer isso porque você tem outras responsabilidades que não
são fiscais. São sociais.
Folha - Mas a política econômica
do primeiro mandato não provocou uma bolha de crescimento? Havia motivação política?
FHC - Se há uma coisa que não
tem sentido imaginar é que qualquer decisão na área econômica
teve de ser tomada por razões
eleitorais. Não é verdadeiro.
Folha - Mas houve uma bolha de
crescimento em 95, 96, que era insustentável por causa do câmbio e
do gasto público?
FHC - Não sei se era insustentável. Acho que foi muito mais insustentável devido à crise externa.
Muito mais do que um problema
interno. Você pode verificar que,
em todos os momentos em que o
país se preparava para crescer,
veio um problema. No ano de
2001, houve a crise de energia, que
era interna, mas cujo efeito sobre
o produto é pequeno. O PIB parou não tanto pela energia quanto
pelo 11 de setembro.
Folha - A abertura, a privatização
e a inflação baixa diminuíram o
preço relativo dos bens, cresceu o
poder de compra. Mas os preços de
serviços públicos privatizados subiram. Os juros levaram renda de
quem paga imposto para o pessoal
que tem aplicação financeira, classe média e bancos. Mas os gastos
sociais crescem, muitas vezes determinados pela Constituição...
FHC - Determinados e não implementados. Eu implementei.
Nunca tinha sido implementado,
a lei estava morta. Critica-se o que
faz, e quando se faz, era automático. Acho que nunca é assim. E
houve transferência direta de renda, por meio de
toda essa rede
chamada de proteção social. Juntando Previdência, assistência social e as Bolsas,
você transfere
mais do que a soma do Imposto de
Renda das pessoas físicas e jurídicas. Você pega
dinheiro de quem
tem, não é que seja rico, que é menos pobre, e dá
para o mais pobre.
Folha - Agora,
não obstante essas
transferências, a
redução da desigualdade de renda, no começo do
governo...
FHC - Nunca parou de ter...
Folha - Mas ficou
pequena, quase
estagnada.
FHC - Não, não,
olha pelo primeiro decil [os 10%
mais pobres".
Folha - Mas a partir do segundo decil [os que estão
entre os 10% e os
20% mais pobres", quase pára.
FHC - Mas quando você focaliza
no mais pobre, que foi o que nós
fizemos...
Folha - Mas o segundo decil ainda
é muito pobre, não é?
FHC - Eu sei.
Folha - Aliás, até o quinto [os 50%
mais pobres do país"...
FHC - Todos são pobres. Mas
quando se focalizam os mais pobres, todos os outros reclamam, é
complicado. Você tem uma massa finita de recursos. Mas os índices de consumo e de acesso a bens
nunca pararam de crescer. Disse
ao presidente do IBGE: "Alguma
coisa está errada [as estatísticas
do Censo mostraram pequeno
crescimento da renda nos anos
FHC", porque pela tendência de
renda dada não dá para ter isso aí
[consumo crescente"".
Folha - É porque houve redução
nos preços relativos...
FHC - Isso é importante. Mostra
que aumenta a produtividade.
Folha - O poder de compra aumentou, certo. Mas não aumentou
a participação dos 50% mais pobres na renda nacional, se comparada com a dos 10% mais ricos.
FHC - Aí eu volto ao meu argumento. Acho que essas medidas
são muito precárias para poder
explicar o nível de consumo. No
Brasil não dá para explicar. Há
uma certa incompatibilidade com
o nível de qualidade de vida. O
IDH melhora incessantemente.
Folha - Aumentou a informalidade do trabalho. O desemprego foi
de menos de 5% para quase 8%.
FHC - Agora, compare com os
outros países. Evidentemente, é
ruim ter desemprego de 7%. Mas
nós estamos assistindo a mudança na estrutura produtiva
mundial e ainda
mais no Brasil. A
indústria, por
exemplo, vai perder emprego
sempre aqui. É
natural. É o indicador de que ela
está crescendo.
Quer dizer, que
ela está se adaptando ao processo produtivo para
poder competir.
Folha - O caso da
Previdência é um
problema grave
de redistribuição
dos fundos públicos no país. Mas a
proposta de mudança que o senhor fez ganhou
ar de caça a alguns
"direitos adquiridos". Mas não
houve a oferta de
uma contrapartida do tipo "a reforma vai reduzir
um pouco de déficit público, mas
vamos também estimular o desenvolvimento aqui ou fazer um programa social a mais ali".
FHC - Você se lembra como foi
em 1995 e em 1996? Eu ia de bancada em bancada. Fiz conferência
em quantidade, todo mundo mobilizando, explicando os motivos.
Folha - A sociedade não estava
atraída por essa questão?
FHC - Um momentinho só. Aí é
que digo que perdemos a batalha.
Veio o bloco corporativo com a
ideologia de esquerda, não é isso?
É muito forte nessa matéria. Paralisa. Vou dar um exemplo, mais
recente do que a Previdência -a
mudança trabalhista. O que foi
proposto era simplesmente não
mexer nos direitos fundamentais
da Constituição, mas os acordos
trabalhistas teriam validade. Mas
a CUT saiu dizendo que parlamentares tinham votado contra o
13º salário, contra o salário-maternidade, contra não sei o quê.
Muita gente perdeu a eleição. A
batalha foi perdida no jogo político. Mas por quê? Porque os interesses enraizados são muito fortes
e mais organizados. Isso pega o
quê? Pega não só o funcionalismo.
Pega todo mundo que é de classe
média, mas que pensa que é pobre, mas que tem algum dinheiro,
é contra a reforma da Previdência.
Quem sabe agora, se o PT realmente fizer isso, se possa avançar,
porque foi o PT o principal articulador do "não à reforma".
Folha - Mas não foi só o PT.
FHC - Mas os interesses organizados usaram o PT, a base aliada
usou. Não é o PT que é o interesse
organizado. É tudo. Não é só o PT,
mas o PT vocalizou, articulou e os
outros ficaram ali na moita, votando contra ou dizendo: não,
não dá para passar. Isso aqui é
uma sociedade em que o setor desorganizado é maior que o organizado, mas tem muito menos capacidade de vocalização.
Folha - Vamos falar de setores
privilegiados e derrotados. Muito
se falou: "como é que empresários
nacionais, industriais teriam sido
"destruídos" sem protestar".
FHC - Porque não foram [destruídos". O patrimonialismo empresarial está sendo sufocado e ele
confunde uma perda que é organizacional com uma perda política, econômica.
Folha - E os bancos? Tiveram um
período privilegiado...
FHC - É verdade. Só que eles
nunca pagaram tanto imposto como pagam agora.
Folha - Quais setores sociais tiveram chances de influenciar políticas e quais não tiveram? O governo, seus quadros mais orgânicos, o
"núcleo duro", parecia insulado.
Mas eles não são neutros.
FHC - Sim, certamente. Mas "insulados" por quê? Isso é verdade.
Mas qual o motivo do insulamento? Porque havia no Brasil uma
privatização do Estado, não só de
interesses corporativos, mas também os interesses privados, de
mercado. Os interesses, os anéis
burocráticos, estavam aqui metidos dentro do Estado. Nós tiramos isso, o quanto é possível. Alguns dos canais de comunicação,
e o pessoal reclama muito, foram
desfeitos, pois esses canais eram
de influência direta. No Conselho
Monetário Nacional havia muitos
interesses representados. Nós
acabamos com isso, porque não
cabe que os interesses representados fiquem lá. A moeda não é
uma questão que possa ser controlada por banqueiros ou por industriais. Tem que ter alguém
com uma visão mais de Estado. E
isso, naturalmente, as pessoas não
gostaram, nem os banqueiros,
porque os banqueiros pagaram o
preço também. Quantos bancos
quebraram, não é isso? Muitos.
Sobreviveram alguns. Os que sobreviveram saíram-se melhor,
bem, mas os que quebraram foram muitos. Não foi uma política
para defender corporativamente
os bancos, mas o objetivo foi para
ver o melhor caminho para o sistema financeiro brasileiro. Quanto à composição do governo, trata-se basicamente de professores
universitários, classe média ilustrada, técnicos.
Folha - Muitos economistas e "intelectuais banqueiros", para falar
de maneira irônica...
FHC - Na área financeira, mas
não na área da educação, não na
área da saúde, não na área da reforma agrária, não na área da cultura. E poucos empresários participaram do governo. No Brasil, o
ministro da Fazenda era banqueiro, não é isso? Hoje, se você for
botar um banqueiro de ministro
da Fazenda, o pessoal vai chiar.
Folha - Não foi excessivo o papel
do BNDES no financiamento da privatização e do capital externo?
FHC - Acho que não. As grandes
empresas em mineração são nacionais, assim como papel e celulose, petroquímica. O que não é
nacional já não era, como a indústria automobilística.
Folha - E a telefonia?
FHC - Bom, telefonia teve, aí sim.
Mas você tem empresa nacional,
a Telemar, além do setor de produção de peças. Então, isso [o financiamento do BNDES para
empresas estrangeiras" também
não corresponde à realidade.
Houve integração maior no processo produtivo global. Houve
mudança no padrão de produção
para poder haver competição.
Houve apoio, a taxa de juros para
esses setores é menor, no campo
também. Quem paga juros altos é
o consumidor e o capital de giro.
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