São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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Como enfrentei a inflação, agora é a vez da violência


Folha - Alguns economistas, que agora discutem todos os assuntos, dizem que não existe relação entre pobreza e violência. Mas parece que há relação entre a persistência da pobreza em ambientes de grande desigualdade e a desesperança e o aumento da violência. Trata-se de um processo cumulativo...
FHC -
Que vem de décadas.

Folha - Décadas, a desigualdade de agora vem sendo montada desde os anos 50 etc.
FHC -
Vamos discutir um pouco mais em profundidade essa questão, que acho que é muito importante mesmo. Talvez seja a mais importante a ser enfrentada. A favela não é centro de analfabetos, você viu a pesquisa feita recentemente. O Rio de Janeiro não é a cidade mais violenta...

Folha - Recife e Vitória tem mais violência relativa.
FHC -
Isso. A violência tem a ver com mil fatores, com a desorganização da família, com fenômenos culturais, valores. Não creio que se possa ligar, portanto, pobreza e violência de maneira imediata. É mais complicado.

Folha - Certo, um pobre não é um criminoso.
FHC -
Em segundo lugar, o índice de mobilidade social no Brasil sempre foi grande e permanece grande. O estudo do Pastore [José Pastore, professor da USP" é muito claro. Quer dizer, você vê o número de pobres, mas são outros pobres, não são os mesmos. Em certas situações, você encontra estagnação, você tem o "hopeless" [o sem-esperança". Então, a mobilidade social é o que ...

Folha - Nas periferias de São Paulo e do Rio?
FHC -
Também, também, também. Os dados do Pastore estão aí. Ele analisou tudo isso, tem um livro publicado, recente, e você veja que os índices de mobilidade social continuam fortes no Brasil. Essas análises da pobreza como uma coisa estática é que leva, às vezes, a pensar: bom, então vai explodir. Como é que faz o "hopeless"? Mas vai explodir? Não.
Vamos deixar bem claro aqui que não estou negando que exista relação entre violência e pobreza, estou dizendo que a análise que você fez é incompleta, é simplista.

Folha - Mas, dadas as imensas massas das periferias, a mobilidade não dá conta.
FHC -
Mas por esse raciocínio, isso vai explodir. Esse é o raciocínio que leva ao grande engano.

Folha - Não está explodindo?
FHC -
Onde está explodindo?

Folha - Na banalização do sequestro, por exemplo, no recrutamento em massa de jovens pelo tráfico.
FHC -
Você acha que nos Estados Unidos, na década de 20 e 30, estava explodindo? Banalização. Não é nada. É um momento terrível de desorganização. Na década de 60 em Nova York [estava explodindo"? Então, você vê que é mais complicado. Essa simplificação, esse economicismo...

Folha - Até em manifestações culturais, pode se ver pelos "rapers"...
FHC -
Isso, o ódio, é verdade. Mas as coisas mudam. Graças a esse ódio organizado. Não pode ter uma noção estática da sociedade. Mas, pelo amor de Deus, não estou justificando a pobreza, dizendo que não tem pobreza no Brasil. É que tem de ter mais imaginação e mais análise para entender os processos.
Acho que está faltando sociologia no Brasil nesse sentido. Ora, se a sociedade tem mobilidade, é razoável a hipótese de que vamos marchar para um vulcão?

Folha - Em São Paulo e no Rio a gente tem essa clara sensação.
FHC -
Não nego isso, há o crime organizado. Há a pobreza, e os dois pólos de maior preocupação são talvez as periferias das grandes cidades e o interior do Nordeste e do Amazonas. No interior do Nordeste, nós atacamos o problema com mais profundidade. Acho que o Lula está certo em criar o Ministério das Cidades.

Folha - Por quê?
FHC -
FHC - Porque você teve um fluxo brutal para as cidades, a capacidade de dinâmica de dar emprego diminuiu, embora a taxa de crescimento demográfico esteja caindo.

Folha - Na política de segurança, a sensação é de que o governo não teve capacidade de iniciativa.
FHC -
Algumas polícias foram reequipadas, as penitenciárias estão sendo feitas, a força-tarefa funcionou no Rio, está funcionando no Espírito Santo. É pouco, diante do tamanho do problema. Agora, há uma restrição que é constitucional. A segurança está afeita aos Estados. Eu só pago o preço e transfiro os recursos.
Quando fazem uma chacina de Eldorado e Carajás, a responsabilidade vem para o governo federal, que não tem nada a ver com o assunto. Nem com o fato, nem com a punição do fato. Nós não conseguimos fazer com que o Congresso passasse nem os crimes de direitos humanos para a esfera federal. O Mário Covas, nas crises da polícia de São Paulo, veio aqui com várias idéias, transformamos isso em emendas constitucionais. Foi tudo bloqueado, porque os lobbies são muito poderosos nessa área, das várias polícias. A coisa não anda.
Mas há trabalhos muito bons, como os desse rapaz Luiz Eduardo Soares [antropólogo, coordenador do programa de segurança de Lula". Já se sabe alguma coisa do ponto de vista do que fazer. Você tem que ter um comando mais unificado [das polícias". Você tem que ter um acompanhamento pelos procuradores, pelos juízes ou coisa assim, para evitar violência. Só que nada disso passa pelo Congresso, com a força que o governo faz. Não consegui nem sequer proibir o porte de arma.
Quando eu assumi, a Polícia Federal tinha 5.000 pessoas. Hoje tem 8.000, muito bem, aumentou 60%. Só que os Estados têm 500 mil e não dão conta. O Brasil tem 16 mil quilômetros de fronteira de terra e 8.000 e tanto de fronteira marítima. Entre o México e Estados Unidos tem 3.000 km e eles não seguram o contrabando de arma nem de droga.
Estava conversando outro dia com o George Soros e ele disse o óbvio. Só tem um jeito de controlar o consumo da droga, porque a produção é imensa e o lucro é imenso: ou você reduz o consumo ou não tem como segurar essa questão. O que nós fizemos para reduzir o consumo? Não tinha nada. Criamos uma secretaria antidroga, prevenção, isso é um trabalho que leva muito tempo, mas tem que haver algum esforço nessa direção. E aí começa a briga entre as polícias, entre as corporações.
A questão é grave. Assim como eu tive que enfrentar a inflação, agora tem que segurar a violência urbana e a droga. Isso não vai ser fácil, porque vai precisar, que é o mais difícil de tudo é articulação e as corporações reagem à articulação. Enfim, aí começam os problemas da organização do Estado. A tal ponto o Estado estava e ainda está desaparelhado para enfrentar esses problemas que não havia sequer a tipificação do crime de lavagem de dinheiro, até outro dia.

Folha - O senhor insiste muito que o legado do seu mandato, afora a questão econômica, foi o fortalecimento da democracia...
FHC -
Acho que aqui houve uma democratização que tem a ver com os meios de comunicação, com a informação, com a demanda, com a mobilidade das pessoas, com a capacidade de organização da sociedade. Você hoje não tem no Brasil um interesse que não se represente no Congresso, embora de maneira diferente do que era esperado no passado. Não são os partidos que representam os interesses, os interesses é que vão buscar, depois de eleito, os deputados que vão representá-los.

Folha - Elegem depois da eleição.
FHC -
Isso. Mas, de qualquer maneira, a sociedade encontra aí um elo com o Congresso. Você tem esse paradoxo de partidos relativamente frágeis, que não organizam o comportamento dos seus membros no Congresso em função de uma filosofia, salvo raras exceções, e um Congresso forte, forte institucionalmente e porque ele conseguiu ter capilaridade com a sociedade.

Folha - E o que o senhor acha do trabalho do Ministério Público durante seu governo?
FHC -
É uma coisa importante da Constituição de 88, que separou a Advocacia da União do Ministério Público, que deu a capacidade do Ministério Público de chegar à independência. Acho que isso tem que ser mantido, é muito importante. Acho que tem havido abusos, mas são marginais.
Um dos problemas é que um sujeito [procurador" pode abrir um processo e não tem prazo para acabar. Isso começa complicar um pouco a noção de democracia, os direitos do outro. Há o problema de a pessoa poder assumir o processo em qualquer lugar do país. Então isso pode criar situações de perseguição -e há situações de perseguição. Por parte não do Ministério Público como instituição, mas de pessoas do Ministério Público, que acho que abusaram dessa sua benfazeja autonomia. Isso desgastou o Ministério Público. Abre-se um processo sem, às vezes, nem dar conhecimento a você da causa. Agora, a existência de algum abuso não justifica você não manter o Ministério Público com sua autonomia, com sua independência. Você sabe que, da minha parte, jamais utilizei qualquer forma de pressão em cima não só do Ministério Público, mas de Polícia Federal, imprensa. Acho que tem de deixar a sociedade com muita liberdade em todos esses aspectos...

Folha - E a Lei da Mordaça, o que o senhor pensa a respeito?
FHC -
A chamada Lei da Mordaça...Confesso a você que eu precisava ler o texto. Essa Lei de Mordaça foi proposta por um deputado do PT.

Folha - Mas a iniciativa original, no sentido que a lei tem hoje, foi do Gilmar Mendes [ex-advogado-geral da União, hoje ministro do Supremo, indicado por FHC".
FHC -
Pode ser, mas, de qualquer maneira, foi uma negociação na Câmara, não é?

Folha - Gilmar Mendes chegou a falar com o sr. sobre isso, na época?
FHC -
Não, não. E argumentam que já há lei regulamentando...

Folha - O sigilo dos processos.
FHC -
Que não é obedecido.

Folha - As punições agora são draconianas.
FHC -
Não sei, não vi as punições, acho que não devem ser draconianas. Mas o sigilo tem de ser mantido, porque você expõe pessoas à execração pública, sem comprovação. Há muitos casos. Quando você está numa investigação, até que você tenha elemento de convicção e indícios -não estou dizendo provas-, indícios veementes, vai-se ao juiz e o juiz autoriza o processo. Aí, acho que é livre, mas até lá você está prejulgando. É grave do ponto de vista da democracia. Agora, tudo tem que ser medido. Não pode ser mordaça. O que não pode é começar a falar como papagaio antes da hora.


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