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Como enfrentei a inflação, agora é a vez da violência
Folha - Alguns economistas, que
agora discutem todos os assuntos,
dizem que não existe relação entre
pobreza e violência. Mas parece
que há relação entre a persistência
da pobreza em ambientes de grande desigualdade e a desesperança
e o aumento da violência. Trata-se
de um processo cumulativo...
FHC - Que vem de décadas.
Folha - Décadas, a desigualdade
de agora vem sendo montada desde os anos 50 etc.
FHC - Vamos discutir um pouco
mais em profundidade essa questão, que acho que é muito importante mesmo. Talvez seja a mais
importante a ser enfrentada. A favela não é centro de analfabetos,
você viu a pesquisa feita recentemente. O Rio de Janeiro não é a cidade mais violenta...
Folha - Recife e Vitória tem mais
violência relativa.
FHC - Isso. A violência tem a ver
com mil fatores, com a desorganização da família, com fenômenos
culturais, valores. Não creio que
se possa ligar, portanto, pobreza e
violência de maneira imediata. É
mais complicado.
Folha - Certo, um pobre não é um
criminoso.
FHC - Em segundo lugar, o índice
de mobilidade social no Brasil
sempre foi grande e permanece
grande. O estudo do Pastore [José
Pastore, professor da USP" é muito claro. Quer dizer, você vê o número de pobres, mas são outros
pobres, não são os mesmos. Em
certas situações, você encontra estagnação, você tem o "hopeless" [o
sem-esperança". Então, a mobilidade social é o que ...
Folha - Nas periferias de São Paulo e do Rio?
FHC - Também, também, também. Os dados do Pastore estão
aí. Ele analisou tudo isso, tem um
livro publicado, recente, e você
veja que os índices de mobilidade
social continuam fortes no Brasil.
Essas análises da pobreza como
uma coisa estática é que leva, às
vezes, a pensar: bom, então vai explodir. Como é que faz o "hopeless"? Mas vai explodir? Não.
Vamos deixar bem claro aqui
que não estou negando que exista
relação entre violência e pobreza,
estou dizendo que a análise que
você fez é incompleta, é simplista.
Folha - Mas, dadas as imensas
massas das periferias, a mobilidade não dá conta.
FHC - Mas por esse raciocínio, isso vai explodir. Esse é o raciocínio
que leva ao grande engano.
Folha - Não está explodindo?
FHC - Onde está explodindo?
Folha - Na banalização do sequestro, por exemplo, no recrutamento
em massa de jovens pelo tráfico.
FHC - Você acha que nos Estados
Unidos, na década de 20 e 30, estava explodindo? Banalização.
Não é nada. É um momento terrível de desorganização. Na década
de 60 em Nova York [estava explodindo"? Então, você vê que é
mais complicado. Essa simplificação, esse economicismo...
Folha - Até em manifestações culturais, pode se ver pelos "rapers"...
FHC - Isso, o ódio, é verdade.
Mas as coisas mudam. Graças a
esse ódio organizado. Não pode
ter uma noção estática da sociedade. Mas, pelo amor de Deus, não
estou justificando a pobreza, dizendo que não tem pobreza no
Brasil. É que tem de ter mais imaginação e mais análise para entender os processos.
Acho que está faltando sociologia no Brasil nesse sentido. Ora, se
a sociedade tem mobilidade, é razoável a hipótese de que vamos
marchar para um vulcão?
Folha - Em São Paulo e no Rio a
gente tem essa clara sensação.
FHC - Não nego isso, há o crime
organizado. Há a pobreza, e os
dois pólos de maior preocupação
são talvez as periferias das grandes cidades e o interior do Nordeste e do Amazonas. No interior
do Nordeste, nós atacamos o problema com mais profundidade.
Acho que o Lula está certo em
criar o Ministério das Cidades.
Folha - Por quê?
FHC - FHC - Porque você teve
um fluxo brutal para as cidades, a
capacidade de dinâmica de dar
emprego diminuiu, embora a taxa de crescimento demográfico
esteja caindo.
Folha - Na política de segurança,
a sensação é de que o governo não
teve capacidade de iniciativa.
FHC - Algumas polícias foram
reequipadas, as penitenciárias estão sendo feitas, a força-tarefa
funcionou no Rio, está funcionando no Espírito Santo. É pouco,
diante do tamanho do problema.
Agora, há uma restrição que é
constitucional. A segurança está
afeita aos Estados.
Eu só pago o preço
e transfiro os recursos.
Quando fazem
uma chacina de
Eldorado e Carajás, a responsabilidade vem para o
governo federal,
que não tem nada
a ver com o assunto. Nem com o fato, nem com a punição do fato. Nós
não conseguimos
fazer com que o
Congresso passasse nem os crimes
de direitos humanos para a esfera
federal. O Mário
Covas, nas crises
da polícia de São
Paulo, veio aqui
com várias idéias,
transformamos isso em emendas
constitucionais.
Foi tudo bloqueado, porque os lobbies são muito poderosos nessa
área, das várias
polícias. A coisa
não anda.
Mas há trabalhos muito bons,
como os desse rapaz Luiz Eduardo Soares [antropólogo, coordenador do programa de segurança
de Lula". Já se sabe alguma coisa
do ponto de vista do que fazer.
Você tem que ter um comando
mais unificado [das polícias". Você tem que ter um acompanhamento pelos procuradores, pelos
juízes ou coisa assim, para evitar
violência. Só que nada disso passa
pelo Congresso, com a força que o
governo faz. Não consegui nem
sequer proibir o porte de arma.
Quando eu assumi, a Polícia Federal tinha 5.000 pessoas. Hoje
tem 8.000, muito bem, aumentou
60%. Só que os Estados têm 500
mil e não dão conta. O Brasil tem
16 mil quilômetros de fronteira de
terra e 8.000 e tanto de fronteira
marítima. Entre o México e Estados Unidos tem 3.000 km e eles
não seguram o contrabando de
arma nem de droga.
Estava conversando outro dia
com o George Soros e ele disse o
óbvio. Só tem um jeito de controlar o consumo da droga, porque a
produção é imensa e o lucro é
imenso: ou você reduz o consumo
ou não tem como segurar essa
questão. O que nós fizemos para
reduzir o consumo? Não tinha nada. Criamos uma secretaria antidroga, prevenção, isso é um trabalho que leva muito tempo, mas
tem que haver algum esforço nessa direção. E aí começa a briga entre as polícias, entre as corporações.
A questão é grave. Assim como
eu tive que enfrentar a inflação,
agora tem que segurar a violência
urbana e a droga. Isso não vai ser
fácil, porque vai
precisar, que é o
mais difícil de tudo é articulação e
as corporações
reagem à articulação. Enfim, aí
começam os problemas da organização do Estado. A tal ponto o
Estado estava e
ainda está desaparelhado para
enfrentar esses
problemas que
não havia sequer
a tipificação do
crime de lavagem
de dinheiro, até
outro dia.
Folha - O senhor
insiste muito que
o legado do seu
mandato, afora a
questão econômica, foi o fortalecimento da democracia...
FHC - Acho que
aqui houve uma
democratização
que tem a ver
com os meios de
comunicação,
com a informação, com a demanda, com a
mobilidade das pessoas, com a capacidade de organização da sociedade. Você hoje não tem no Brasil
um interesse que não se represente no Congresso, embora de maneira diferente do que era esperado no passado. Não são os partidos que representam os interesses, os interesses é que vão buscar,
depois de eleito, os deputados que
vão representá-los.
Folha - Elegem depois da eleição.
FHC - Isso. Mas, de qualquer maneira, a sociedade encontra aí um
elo com o Congresso. Você tem
esse paradoxo de partidos relativamente frágeis, que não organizam o comportamento dos seus
membros no Congresso em função de uma filosofia, salvo raras
exceções, e um Congresso forte,
forte institucionalmente e porque
ele conseguiu ter capilaridade
com a sociedade.
Folha - E o que o senhor acha do
trabalho do Ministério Público durante seu governo?
FHC - É uma coisa importante da
Constituição de 88, que separou a
Advocacia da União do Ministério Público, que deu a capacidade
do Ministério Público de chegar à
independência. Acho que isso
tem que ser mantido, é muito importante. Acho que tem havido
abusos, mas são marginais.
Um dos problemas é que um
sujeito [procurador" pode abrir
um processo e não tem prazo para
acabar. Isso começa complicar
um pouco a noção de democracia, os direitos do outro. Há o problema de a pessoa poder assumir
o processo em qualquer lugar do
país. Então isso pode criar situações de perseguição -e há situações de perseguição. Por parte
não do Ministério Público como
instituição, mas de pessoas do Ministério Público, que acho que
abusaram dessa sua benfazeja autonomia. Isso desgastou o Ministério Público. Abre-se um processo sem, às vezes, nem dar conhecimento a você da causa. Agora, a
existência de algum abuso não
justifica você não manter o Ministério Público com sua autonomia,
com sua independência. Você sabe que, da minha parte, jamais
utilizei qualquer forma de pressão
em cima não só do Ministério Público, mas de Polícia Federal, imprensa. Acho que tem de deixar a
sociedade com muita liberdade
em todos esses aspectos...
Folha - E a Lei da Mordaça, o que o
senhor pensa a respeito?
FHC - A chamada Lei da Mordaça...Confesso a você que eu precisava ler o texto. Essa Lei de Mordaça foi proposta por um deputado do PT.
Folha - Mas a iniciativa original,
no sentido que a lei tem hoje, foi do
Gilmar Mendes [ex-advogado-geral da União, hoje ministro do Supremo, indicado por FHC".
FHC - Pode ser, mas, de qualquer
maneira, foi uma negociação na
Câmara, não é?
Folha - Gilmar Mendes chegou a
falar com o sr. sobre isso, na época?
FHC - Não, não. E argumentam
que já há lei regulamentando...
Folha - O sigilo dos processos.
FHC - Que não é obedecido.
Folha - As punições agora são
draconianas.
FHC - Não sei, não vi as punições,
acho que não devem ser draconianas. Mas o sigilo tem de ser
mantido, porque você expõe pessoas à execração pública, sem
comprovação. Há muitos casos.
Quando você está numa investigação, até que você tenha elemento de convicção e indícios -não
estou dizendo provas-, indícios
veementes, vai-se ao juiz e o juiz
autoriza o processo. Aí, acho que
é livre, mas até lá você está prejulgando. É grave do ponto de vista
da democracia. Agora, tudo tem
que ser medido. Não pode ser
mordaça. O que não pode é começar a falar como papagaio antes
da hora.
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