São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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ELIO GASPARI

A privataria quer mais dinheiro

Depois de ter iludido o público com a lorota de que as privatizações trariam investimentos privados para todos os serviços públicos, o tucanato está sob pressão. Os concessionários dos serviços de energia e de ferrovias, bem como as empresas de telecomunicações, estão forçando o governo a redefinir os contratos que assinaram, a alterar a política tarifária e a financiar seus investimentos.
Ao tempo em que vendia o patrimônio da Viúva para atrair dólares destinados a financiar o populismo cambial e assegurar a reeleição de FFHH, o tucanato dizia que o Estado passaria diversos serviços públicos à iniciativa privada e iria cuidar dos investimentos sociais. Era gogó.
No campo das metas contratadas, a Telefônica conseguiu ampliar de três para 180 dias o prazo de transferência de linhas. São 38 as concessionárias, mas só duas cumpriram todas as metas.
As ferrovias simplesmente não cumprem as metas de produção. Uma delas, a Novoeste, nem sequer pagou a prestação do arrendamento, devida desde abril. Coisa de R$ 2,78 milhões (os investidores americanos que nela entraram já caíram fora, com algumas dezenas de milhões de dólares no bolso). Os concessionários propuseram ao Ministério dos Transportes que a amortização das empresas que arrendaram seja considerada dinheiro investido. Coisa assim: o sujeito entra de sócio numa fazenda, paga uma mixaria e se compromete a fazer obras. Passados dois anos, chama o parceiro para uma conversa, propondo que a prestação da compra seja considerada como dinheiro aplicado nas melhorias. No interior, uma parolagem dessas acaba em tiro, mas no Ministério dos Transportes pode acabar sendo bom negócio. Para quem, é difícil saber.
Já está entendido que o financiamento dos novos trechos de ferrovias e das novas usinas geradoras de energia terão que vir, em boa parte, do velho e bom BNDES.
A Petrobras, essa grande mãe, está a um passo de anunciar que assumirá o risco cambial das empresas que venderão energia produzida por gás natural. É a velha mumunha. Privatiza-se o lucro, estatiza-se o risco e socializa-se o prejuízo.
Se isso fosse pouco, chegou a Brasília um texto no qual estão resumidas as reivindicações das concessionárias de energia elétrica. É proposta embrionária e não há indício de que a Aneel vá aceitá-la. Diz assim:
"É preciso que sejam estabelecidos, desde já, mecanismos de alívio regulatório explícito para lidar com a possibilidade de que parte do custo dos PPAs atuais venha a se tornar "stranded" no futuro, na hipótese de haver maior concorrência no setor de gás natural".
Não deu para entender? Pois não é para entender mesmo. Em português claro, teriam que dizer o seguinte:
"Sabendo-se que vamos vender a energia a R$ 70 o megawatt/hora, caso apareça alguém oferecendo-o a R$ 50, deveremos ser reembolsados em R$ 20 porque seremos obrigados a baixar o nosso preço para permanecer no mercado."
Gracinha. Se aparecer um concorrente vendendo o chocolate mais barato, a Viúva terá que indenizar o empresário privado que se estabeleceu vendendo chocolate caro.
Há coisa pior. As empresas vendedoras de energia elétrica estão azucrinando a vida dos empresários que buscam suprimento próprio. Se um empreendedor consegue produzir sua própria energia, os concessionários querem ter o direito de lhe cobrar preços exorbitantes pela eletricidade que possa vir a necessitar. É pressão monopolística.
Concessionário reclamando de risco cambial ou é asno ou pensa que seu interlocutor o é. Ninguém comprou uma só caixa de fósforos achando que o real da reeleição era coisa de verdade. Concessionário de ferrovia ou de geração de energia reclamando da falta de investidores para novas obras ou é incompetente ou pensa que fala a néscios. Quando assinaram seus contratos, todos sabiam que esse dinheiro só existia no BNDES. Vale lembrar que no negócio de venda de energia os investidores já pegaram de volta perto da metade do que desembolsaram.
Tendo faturado a festa da desestatização, FFHH está presidindo o início da ruína da privatização. As concessões que fizer às empresas de energia e de transportes ferroviários virarão precedente para um novo ataque ao Estado. Levando-se em conta que o ministro Eliseu Padilha até hoje não montou a Agência Nacional de Transportes, a perspectiva está para lá de ruim.
Boa parte do assalto ao Estado vem atrás do que se denomina de "crise da produção de energia". Essa crise é produto da falsa privatização de FFHH. Se ele tivesse liberado o mercado e pulverizado a propriedade, a coisa teria a simplicidade do capitalismo: quem tem vende e quem precisa compra. Se a empresa vende energia com prejuízo, danam-se os acionistas. Se cobra caro, o concorrente cobra barato e quebra-a.
A economia americana cresce a 5,2% em termos reais (ou seja, um Brasil a cada nove meses). Ela não está ameaçada por crise de energia. Por quê? Porque acabaram com a regulamentação e liberaram a concorrência. Surgiu um problema na Califórnia. Ninguém propôs que o governo pusesse dinheiro público no negócio. Discute-se a cassação da concessão.
A modernidade tucana é como o convento de Santo Antônio. É velha, mas forma uma paisagem harmônica porque tem o BNDES ao lado.

Pressa esquisita


A liderança do governo na Câmara dos Deputados está patrocinando uma excentricidade. Quer votar nesta quarta-feira uma nova Lei das Sociedades Anônimas, resultante de um substitutivo aprovado na Comissão de Economia no dia 7 de junho.
Lei das S.A. é um dos assuntos mais chatos do mundo. Pode-se dizer que nesse novo projeto o governo quer ampliar os direitos dos acionistas minoritários. Faz isso muito mais pelo interesse dos minoritários estrangeiros do que pelo dos nacionais, que tungou há poucos anos.
Durante a ditadura militar, quando o presidente Ernesto Geisel e o ministro Mário Henrique Simonsen pediram aos advogados José Luís Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy um projeto semelhante, estimulou-se um debate nacional que durou quase dois anos. Na democracia, o tucanato quer reformar a lei que rege as sociedades com dois dias de debates.
O substitutivo que o governo quer votar com a rapidez de uma lei que institui o Dia do Forró é de autoria do deputado Antonio Kandir. Desonra sua biografia vê-lo empacotado como sanduíche.


Conta difícil


O presidente da Petrobras, Henri Philippe Reichstul, revelou pela primeira vez o custo de produção de um barril de petróleo na bacia de Campos. Ele sai por US$ 3,16. Admitindo-se que o percurso do poço à refinaria custe mais US$ 6 (quantia superior, e muito, ao que sucede com o petróleo saudita na sua viagem até o Brasil), cada barril de Campos sai para a Petrobras por algo em torno de US$ 10. Ela o vende ao preço internacional, que está em US$ 30.
Por conta disso, a empresa deve lucrar US$ 10 bilhões neste ano. Até aí tudo bem. O que não se entende é que o governo, acionista majoritário da Petrobras, use uma parte desse dinheiro para subsidiar os riscos de empresas privadas.
Reichstul acredita que pode baixar o preço de Campos para US$ 2,80.

O leitor esclarece


O ministro Paulo Renato Souza, da Educação, esclarece que era "equivocada" uma informação aqui publicada. Em sua gestão como reitor da Unicamp não ocorreu nenhuma modificação no critério de cálculo de tempo de magistério dos professores. Apenas renovou uma comissão destinada a examinar os pedidos de aposentadoria: "Portarias semelhantes à assinada por mim foram editadas pelo reitor que me antecedeu e pelos que me sucederam -Carlos Vogt, José Martins Filho e Hermano Tavares."
Em todos os casos aplicou-se o critério, hoje considerado inconstitucional pela Procuradoria Geral do Estado, de contar como tempo de magistério o período consumido pelos professores no preparo, como estudantes, de suas teses de mestrado e doutorado.

A aula do "Garganta Profunda"


Saiu um grande livro nos estados Unidos. É "In Search of Deep Throat" (Em Busca do Garganta Profunda), do advogado Leonard Garment. Deveria ser lido pelos procuradores que o governo quer almoçar.
A identidade do "Garganta Profunda" é o maior mistério da política americana. Foi ele quem orientou o repórter Robert Woodward, do "The Washington Post", na cobertura do caso Watergate. O episódio começou em junho de 1972, com a prisão de cinco pessoas que grampeavam o escritório do Partido Democrata, no edifício que deu nome ao escândalo. Woodward era um novato e caiu na cobertura por acaso (estava disponível numa noite de sábado).
"Garganta Profunda" deu algumas informações a Woodward, mas, basicamente, manteve-o na certeza de que o fio da meada levava aos mais altos funcionários da Casa Branca. O caso acabou com a renúncia do presidente Richard Nixon, dois anos depois.
Garment foi advogado de Nixon e conhece o escândalo como poucos (há quem acredite que ele foi o "Garganta"). Trabalhou como um mouro e concluiu que o informante era John Sears, um ex-assessor de Nixon, que mais tarde tornou-se um prestigiado colaborador de Ronald Reagan. Sears desmente que seja o "Garganta". Woodward também. Só duas pessoas, além do repórter e do informante, conhecem a sua identidade. Seu nome só será revelado quando ele quiser, ou morrer.
O livro é uma investigação ao estilo dos romances policiais, um manual de análise do trabalho jornalístico e um ensaio sobre as relações de uma fonte com um repórter.
Garment deve ser lido pelos procuradores para que aprendam com "Garganta". Sua maior lição é uma catedral de sabedoria:
"A corda deve ser apertada em volta de todos os pescoços, aos poucos. Você tem que vir pela borda. Arrume uma quantidade de provas dez vezes superior à que você precisa para apertar os pescoços do pessoal de baixo. Eles vão achar que estão perdidos. Podem não falar logo, mas perceberão que foram apanhados. Quando você tiver conseguido isso, comece a apertar as cordas dos pescoços do nível imediatamente superior ao deles. Não aperte logo o pessoal de cima. Se você atira nesse pessoal e erra, a turma de baixo fica mais segura".
Outra recomendação do Garganta: "Siga a trilha do dinheiro".

ENTREVISTA

Manoel Francisco do Nascimento Brito


(78 anos, diretor-executivo do "Jornal do Brasil" de 1948 até a semana passada)


- Com 52 anos de jornal nas costas, qual é a sua pior lembrança? E a melhor?
- A pior, de longe, foi a pressão feita contra o "Jornal do Brasil" pelo presidente Ernesto Geisel, em 1976. O que começou como uma tentativa de intimidação terminou se transformando num projeto de destruição do jornal. O general Hugo Abreu, chefe do Gabinete Militar de Geisel, redigiu o plano, encapou-o e deu-lhe andamento. Não adiantou nada. Depois o general fez as pazes com a democracia e com o jornal. Quando ele brigou com Geisel, mostrou-me o texto da carta de rompimento com o governo. Diverti-me mudando alguns trechos, tornando-a mais agressiva. Os poderosos sempre acham que podem tudo, que são eternos. É incrível como não percebem a transitoriedade do poder. Em 52 anos, passaram pela minha janela 15 governos, duas juntas militares e quatro Constituições, sem contar as passeatas. Minhas melhores lembranças são simples. O convívio com os jornalistas, com a malícia e com a dedicação que eles levam para a profissão. Meu maior orgulho foi a transformação do "JB" num padrão de técnica, copiado no Brasil e no exterior.
- Qual o retrato que lhe ficou da relação da elite brasileira com a imprensa?
- Um retrato pouco educado. Nossa elite convive tão mal com a liberdade de imprensa quanto os militares durante a ditadura. Ela sonha com jornais que só publiquem as notícias que lhe interessam e que alimentam seus negócios. Não passa pela cabeça de uma pessoa ligar para o "The New York Times" pedindo que não publique uma notícia. No Brasil, quando acontece um fato desagradável, a primeira reação é a de tentar impedir a sua publicação. Liga-se tanto para o repórter quanto para o dono. Em 52 anos, raras foram as ocasiões em que alguém me telefonou para dar uma notícia com a simples vontade de vê-la publicada, sem interesse. É conhecida a história do diálogo da condessa Pereira Carneiro com o presidente Costa e Silva. Ela lhe disse que o "JB" tinha uma política de "crítica construtiva" e ele, com esperto bom humor, respondeu : "Condessa, o que eu quero é elogio". Essa é a regra.
- Quais foram as notícias que mais lhe deram orgulho?
- O "JB" tem um histórico de edições memoráveis. Apesar disso, a que mais me orgulhou foi um caso banal. Durante a ditadura, suicidou-se a empregada de um oficial de Marinha. A redação me informou que recebera um pedido para que nada se publicasse. Eu disse que desconsiderassem a gestão. Pouco depois o pedido reapareceu, transformado em ordem da censura. Desconfiei que o sujeito que fizera o pedido, vendo-se desatendido, acionara a censura. Determinei que ainda assim a notícia devia ser publicada. Foi e não aconteceu nada. Orgulho mesmo, eu tenho é de ter trabalhado 52 anos com jornalistas. É uma profissão dura. Tem gente que acredita em histórias de telefonemas misteriosos de fontes secretas. Isso é lenda. O jornalista trabalha duro. Sua a camisa. O jornalista brasileiro faz uma das melhores imprensas do mundo. O "JB" ajudou e continuará ajudando no aperfeiçoamento dessa qualidade.


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