|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DE 2ª
GILBERTO VELHO
Para ele, há uma filosofia difundida entre eles de que a vida pode ser breve, mas deve ser vivida intensamente
Antropólogo diz que violência é mais cultuada entre jovens
FABIANA CIMIERI
DA SUCURSAL DO RIO
A violência nas grandes cidades
brasileiras tornou-se uma prática
gratuita. Há pessoas, principalmente jovens, "que gostam de
exercer a violência".
O diagnóstico é do antropólogo
Gilberto Velho, 58, que há dez
anos vem fazendo uma pesquisa
qualitativa com vítimas da criminalidade no Rio.
"A violência tem rompido barreiras que existiam, como não
agredir idosos. Os idosos dizem
que os jovens são agressivos, que
são capazes de empurrá-los numa
fila de ônibus", disse Velho, em
entrevista à Folha.
A cultura da violência, acrescentou o antropólogo, provocou
o acovardamento da população
das cidades. "Quando uma senhora idosa é assaltada, homens
mais ou menos bem dispostos
não se movimentam para socorrê-la de imediato. O medo gera a
covardia. Espera-se que o poder
público socorra, mas o poder público é ausente."
Professor titular de antropologia social na UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), autor
de "A Utopia Urbana" (1973), entre outros livros, Velho criticou o
governo federal por não colocar a
segurança pública como prioridade. Ele disse que, em relação ao tema, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva está parecido com o seu
antecessor no cargo, Fernando
Henrique Cardoso.
"Eu gostaria de ver o presidente,
ele próprio, empenhado na questão da segurança pública tanto
quanto ele esteve empenhado durante algum tempo em relação ao
Fome Zero."
Abaixo, trechos da entrevista
que ele concedeu à Folha:
Folha - O sr. tem estudado as reações de vítimas da violência. Quais
as principais?
Gilberto Velho - Elas passam a
exigir mudanças enérgicas, o aumento da repressão policial e, em
muitos casos, defendem a pena de
morte. Há o caso de um grupo de
amigos que frequentava o Teatro
Municipal. Um deles foi baleado e
morto ao sofrer uma tentativa de
assalto quando entrava no carro
para ir embora. A reação do grupo foi emblemática, alguns deixaram de ir ao teatro, outros passaram a andar armados.
Folha - A família tem culpa na
formação de agressores?
Velho - A maioria dos agressores
é de famílias pobres. Há depoimentos de jovens presos que falam que não têm interesse em ter
uma vida semelhante à do pai, um
pintor de paredes que nunca ganhou dinheiro e morreu tuberculoso aos 43 anos, ou à do avô, que
era pedreiro, explorado no trabalho e, mesmo assim, não conseguia pagar suas contas.
Há uma proporção maior de jovens do que de adultos envolvidos
em atividades criminosas e portadores de uma cultura da violência.
Há uma filosofia difundida entre
eles de que a vida
pode ser breve,
mas deve ser vivida intensamente.
É o gosto pelo risco e por uma
agressividade que
beira o patológico. Mas não dá
para explicar por
meio da psicologia um fenômeno
que é global. A
violência é um fenômeno sociocultural em que as
novas gerações
são as que mais a
cultuam.
Folha - O culto à
violência é um fenômeno globalizado?
Velho - Ele ocorre em nível mundial, mas vivemos
uma situação aguda no Brasil, especialmente no Rio. No depoimento de idosos moradores de
Copacabana e de Botafogo agredidos, percebe-se que passaram a
ter medo dos jovens em geral, não
só dos pobres. Eles dizem que os
jovens são grosseiros, agressivos,
que são capazes de empurrá-los
numa fila de ônibus. Há uma perda de valores como civilidade e
respeito aos mais velhos que não é
exclusividade dos mais pobres.
Folha - A violência deixou de ser
um meio e passou a ser um fim em
si?
Velho - A violência passou a ser
um valor, há pessoas que gostam
de exercê-la. É um fenômeno coletivo, que, embora não atinja todos os jovens, atinge parte deles.
Não é apenas uma possível opção
de vida, de ser bandido ou trabalhador. Há pessoas que trabalham
e fazem uma atividade ilegal simultaneamente.
Acompanhei o caso
de uma família moradora de uma casa no
Cosme Velho (bairro
da zona sul do Rio)
que foi assaltada por
um grupo de jovens
moradores de favelas
da região. Depois,
soube-se que esses jovens saíram da favela
anunciando que
iriam assaltar a casa e
convidando outras
pessoas para o assalto. Quem contou isso
foi uma mulher, casada com um trabalhador que chegou a
pensar em ir junto
pela aventura.
Folha - Mas o crime e
a violência são recorrentes na história do Brasil.
Velho - É uma possibilidade
muito mais presente hoje. Não estou dizendo que o passado era idílico, tranquilo e pacífico. Mas, nas
cidades brasileiras, a violência
tem rompido barreiras que existiam, como não agredir idosos.
Não é que nunca acontecesse,
mas hoje em dia é comum. Eles se
tornam, inclusive, vítimas preferenciais, porque são mais frágeis.
Folha - Como se pode combater
essa cultura da violência?
Velho - Com uma política social
consistente, contínua e estável,
que não viva de impulsos provocados por crises políticas. Essa
política deve implicar investimentos na área de educação, saúde e melhoria do mercado de trabalho. O jovem tem que ter oportunidade de ser educado em escolas que lhe ofereçam o mínimo de
gratificação e o
mínimo de esperança para melhorar de vida.
Por outro lado,
há o combate à
criminalidade,
que não tem sido
feito com competência e dedicação. Nada de consistente foi feito
nos oito anos do
governo FHC,
nem está sendo
feito.
Folha - Qual deve
ser o papel do governo federal, já
que a segurança
pública é uma atribuição constitucional dos Estados?
Velho - Tem que
interferir. A responsabilidade pela segurança do
país é federal, porque a criminalidade é interestadual. Muitas vezes
se usa esse pretexto precário para
se omitir. Tem que ser feita uma
reforma total na polícia, com mudanças nos padrões de comportamento, mais profissionalização,
melhor remuneração e a unificação das polícias.
Não tenho a menor dúvida de
que uma das principais fontes de
violência na sociedade vem da polícia. Boa parte dos policiais está
envolvida com a violência, seja
participando de atividades criminosas, como cúmplice, ou exercendo a violência, de maneira
brutal, sobretudo contra as populações pobres.
Folha - Como o sr. avalia as iniciativas do governo federal na área da
segurança pública?
Velho - Está havendo uma iniciativa para reestruturar as polícias, mas
o processo me parece
muito lento. O projeto de reestruturação
do sistema penitenciário é fundamental.
Tem que ser um sistema decente, que não
signifique tratar pessoas como bichos.
As prisões devem
garantir que criminosos violentos fiquem
presos, mas que não
sejam torturados.
Não podem ter mordomias e facilidades.
A corrupção do sistema policial e penitenciário é uma das principais razões para a
insegurança pública
no Brasil.
Eu gostaria de ver o
presidente, ele próprio, empenhado na questão da
segurança tanto quanto esteve
empenhado no Fome Zero. Se a
questão da segurança pública não
for enfrentada como prioridade,
com medidas rápidas e ágeis, será,
e já está sendo, uma razão de desgaste e eventual perda de credibilidade do governo.
Folha - O que está errado na política do governo federal?
Velho - Infelizmente parece que,
uma vez no governo, não se consegue mobilização e articulação
política para enfrentar a questão
da violência.
É claro que superávit é fundamental, o controle da inflação é
uma tarefa difícil e prioritária,
mas, enquanto isso, a sociedade
brasileira está se desagregando. A
violência é sintoma e expressão
disso. Este governo, como o anterior, não está se dando conta da
gravidade da situação.
Folha - As autoridades têm uma
posição passiva?
Velho - O tempo
todo estão tentando tapar o sol com
a peneira, usam as
estatísticas para
dizer que o índice
tal diminuiu. O
problema é que a
sensação geral é
de insegurança.
Existem dimensões simbólicas
que são muito assustadoras. O aumento do número de idosos atacados, assaltados,
espancados coloca em xeque os
elementos básicos
da vida social.
Folha - A política de repressão
conduzida por alguns Estados, entre eles o Rio, é eficiente?
Velho - Em certos casos, a repressão pode até aplacar situações
de emergência, mas tem que ter
uma polícia investigativa, que
consiga encontrar os criminosos.
A Justiça tem que ser mais ágil,
mais eficiente, mais próxima das
necessidades. Nossa polícia não
investiga. A única coisa que sabe
fazer é reprimir, de modo tão ou
mais brutal do que os próprios
criminosos. E, por outro lado, a
população está acuada.
Folha - Qual o reflexo disso na vida da população urbana?
Velho - A agressão aos idosos é
um caso extremado do descrédito
nas autoridades. Merece não só
pesquisas, mas providências urgentes. O que se vê são pessoas
sendo assaltadas e as outras fingindo que não vêem,
ninguém toma providência. As pessoas ficam com medo porque a cultura da violência gera uma dimensão para o lado
da covardia. Quando
uma senhora idosa é
assaltada, homens
mais ou menos bem
dispostos não se movimentam para socorrê-la de imediato.
O medo gera a covardia. Espera-se que o
poder público socorra, mas o poder público é ausente.
Folha - Como está a
segurança pública na
cidade de São Paulo,
que tem números absolutos de vítimas
maiores do que o Rio?
Velho - São Paulo
tem problemas graves de segurança, comparáveis aos do Rio,
mas estão concentrados na periferia. No Rio, as pessoas de camadas médias e superiores estão
mais diretamente em confronto
com essa violência, embora em
São Paulo haja mais sequestros do
que no Rio. Em termos de políticas públicas, o governo do Estado
e a prefeitura entendem-se melhor em São Paulo do que no Rio.
Texto Anterior: Campo minado: Sem-terra definem destino em Sumaré Próximo Texto: Frases Índice
|