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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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ENTREVISTA DE 2ª

GILBERTO VELHO

Para ele, há uma filosofia difundida entre eles de que a vida pode ser breve, mas deve ser vivida intensamente

Antropólogo diz que violência é mais cultuada entre jovens

FABIANA CIMIERI
DA SUCURSAL DO RIO

A violência nas grandes cidades brasileiras tornou-se uma prática gratuita. Há pessoas, principalmente jovens, "que gostam de exercer a violência".
O diagnóstico é do antropólogo Gilberto Velho, 58, que há dez anos vem fazendo uma pesquisa qualitativa com vítimas da criminalidade no Rio.
"A violência tem rompido barreiras que existiam, como não agredir idosos. Os idosos dizem que os jovens são agressivos, que são capazes de empurrá-los numa fila de ônibus", disse Velho, em entrevista à Folha.
A cultura da violência, acrescentou o antropólogo, provocou o acovardamento da população das cidades. "Quando uma senhora idosa é assaltada, homens mais ou menos bem dispostos não se movimentam para socorrê-la de imediato. O medo gera a covardia. Espera-se que o poder público socorra, mas o poder público é ausente."
Professor titular de antropologia social na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), autor de "A Utopia Urbana" (1973), entre outros livros, Velho criticou o governo federal por não colocar a segurança pública como prioridade. Ele disse que, em relação ao tema, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está parecido com o seu antecessor no cargo, Fernando Henrique Cardoso.
"Eu gostaria de ver o presidente, ele próprio, empenhado na questão da segurança pública tanto quanto ele esteve empenhado durante algum tempo em relação ao Fome Zero."
Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha:

Folha - O sr. tem estudado as reações de vítimas da violência. Quais as principais?
Gilberto Velho -
Elas passam a exigir mudanças enérgicas, o aumento da repressão policial e, em muitos casos, defendem a pena de morte. Há o caso de um grupo de amigos que frequentava o Teatro Municipal. Um deles foi baleado e morto ao sofrer uma tentativa de assalto quando entrava no carro para ir embora. A reação do grupo foi emblemática, alguns deixaram de ir ao teatro, outros passaram a andar armados.

Folha - A família tem culpa na formação de agressores?
Velho -
A maioria dos agressores é de famílias pobres. Há depoimentos de jovens presos que falam que não têm interesse em ter uma vida semelhante à do pai, um pintor de paredes que nunca ganhou dinheiro e morreu tuberculoso aos 43 anos, ou à do avô, que era pedreiro, explorado no trabalho e, mesmo assim, não conseguia pagar suas contas.
Há uma proporção maior de jovens do que de adultos envolvidos em atividades criminosas e portadores de uma cultura da violência. Há uma filosofia difundida entre eles de que a vida pode ser breve, mas deve ser vivida intensamente. É o gosto pelo risco e por uma agressividade que beira o patológico. Mas não dá para explicar por meio da psicologia um fenômeno que é global. A violência é um fenômeno sociocultural em que as novas gerações são as que mais a cultuam.

Folha - O culto à violência é um fenômeno globalizado?
Velho -
Ele ocorre em nível mundial, mas vivemos uma situação aguda no Brasil, especialmente no Rio. No depoimento de idosos moradores de Copacabana e de Botafogo agredidos, percebe-se que passaram a ter medo dos jovens em geral, não só dos pobres. Eles dizem que os jovens são grosseiros, agressivos, que são capazes de empurrá-los numa fila de ônibus. Há uma perda de valores como civilidade e respeito aos mais velhos que não é exclusividade dos mais pobres.

Folha - A violência deixou de ser um meio e passou a ser um fim em si?
Velho -
A violência passou a ser um valor, há pessoas que gostam de exercê-la. É um fenômeno coletivo, que, embora não atinja todos os jovens, atinge parte deles. Não é apenas uma possível opção de vida, de ser bandido ou trabalhador. Há pessoas que trabalham e fazem uma atividade ilegal simultaneamente.
Acompanhei o caso de uma família moradora de uma casa no Cosme Velho (bairro da zona sul do Rio) que foi assaltada por um grupo de jovens moradores de favelas da região. Depois, soube-se que esses jovens saíram da favela anunciando que iriam assaltar a casa e convidando outras pessoas para o assalto. Quem contou isso foi uma mulher, casada com um trabalhador que chegou a pensar em ir junto pela aventura.

Folha - Mas o crime e a violência são recorrentes na história do Brasil.
Velho -
É uma possibilidade muito mais presente hoje. Não estou dizendo que o passado era idílico, tranquilo e pacífico. Mas, nas cidades brasileiras, a violência tem rompido barreiras que existiam, como não agredir idosos. Não é que nunca acontecesse, mas hoje em dia é comum. Eles se tornam, inclusive, vítimas preferenciais, porque são mais frágeis.

Folha - Como se pode combater essa cultura da violência?
Velho -
Com uma política social consistente, contínua e estável, que não viva de impulsos provocados por crises políticas. Essa política deve implicar investimentos na área de educação, saúde e melhoria do mercado de trabalho. O jovem tem que ter oportunidade de ser educado em escolas que lhe ofereçam o mínimo de gratificação e o mínimo de esperança para melhorar de vida.
Por outro lado, há o combate à criminalidade, que não tem sido feito com competência e dedicação. Nada de consistente foi feito nos oito anos do governo FHC, nem está sendo feito.

Folha - Qual deve ser o papel do governo federal, já que a segurança pública é uma atribuição constitucional dos Estados?
Velho -
Tem que interferir. A responsabilidade pela segurança do país é federal, porque a criminalidade é interestadual. Muitas vezes se usa esse pretexto precário para se omitir. Tem que ser feita uma reforma total na polícia, com mudanças nos padrões de comportamento, mais profissionalização, melhor remuneração e a unificação das polícias.
Não tenho a menor dúvida de que uma das principais fontes de violência na sociedade vem da polícia. Boa parte dos policiais está envolvida com a violência, seja participando de atividades criminosas, como cúmplice, ou exercendo a violência, de maneira brutal, sobretudo contra as populações pobres.

Folha - Como o sr. avalia as iniciativas do governo federal na área da segurança pública?
Velho -
Está havendo uma iniciativa para reestruturar as polícias, mas o processo me parece muito lento. O projeto de reestruturação do sistema penitenciário é fundamental. Tem que ser um sistema decente, que não signifique tratar pessoas como bichos.
As prisões devem garantir que criminosos violentos fiquem presos, mas que não sejam torturados. Não podem ter mordomias e facilidades. A corrupção do sistema policial e penitenciário é uma das principais razões para a insegurança pública no Brasil.
Eu gostaria de ver o presidente, ele próprio, empenhado na questão da segurança tanto quanto esteve empenhado no Fome Zero. Se a questão da segurança pública não for enfrentada como prioridade, com medidas rápidas e ágeis, será, e já está sendo, uma razão de desgaste e eventual perda de credibilidade do governo.

Folha - O que está errado na política do governo federal?
Velho -
Infelizmente parece que, uma vez no governo, não se consegue mobilização e articulação política para enfrentar a questão da violência.
É claro que superávit é fundamental, o controle da inflação é uma tarefa difícil e prioritária, mas, enquanto isso, a sociedade brasileira está se desagregando. A violência é sintoma e expressão disso. Este governo, como o anterior, não está se dando conta da gravidade da situação.

Folha - As autoridades têm uma posição passiva?
Velho -
O tempo todo estão tentando tapar o sol com a peneira, usam as estatísticas para dizer que o índice tal diminuiu. O problema é que a sensação geral é de insegurança. Existem dimensões simbólicas que são muito assustadoras. O aumento do número de idosos atacados, assaltados, espancados coloca em xeque os elementos básicos da vida social.

Folha - A política de repressão conduzida por alguns Estados, entre eles o Rio, é eficiente?
Velho -
Em certos casos, a repressão pode até aplacar situações de emergência, mas tem que ter uma polícia investigativa, que consiga encontrar os criminosos. A Justiça tem que ser mais ágil, mais eficiente, mais próxima das necessidades. Nossa polícia não investiga. A única coisa que sabe fazer é reprimir, de modo tão ou mais brutal do que os próprios criminosos. E, por outro lado, a população está acuada.

Folha - Qual o reflexo disso na vida da população urbana?
Velho -
A agressão aos idosos é um caso extremado do descrédito nas autoridades. Merece não só pesquisas, mas providências urgentes. O que se vê são pessoas sendo assaltadas e as outras fingindo que não vêem, ninguém toma providência. As pessoas ficam com medo porque a cultura da violência gera uma dimensão para o lado da covardia. Quando uma senhora idosa é assaltada, homens mais ou menos bem dispostos não se movimentam para socorrê-la de imediato. O medo gera a covardia. Espera-se que o poder público socorra, mas o poder público é ausente.

Folha - Como está a segurança pública na cidade de São Paulo, que tem números absolutos de vítimas maiores do que o Rio?
Velho -
São Paulo tem problemas graves de segurança, comparáveis aos do Rio, mas estão concentrados na periferia. No Rio, as pessoas de camadas médias e superiores estão mais diretamente em confronto com essa violência, embora em São Paulo haja mais sequestros do que no Rio. Em termos de políticas públicas, o governo do Estado e a prefeitura entendem-se melhor em São Paulo do que no Rio.


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