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São Paulo, terça-feira, 21 de janeiro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Enfim, a pólvora

A boca mal começara a desentortar, para recompor-se dos 21 anos de ditadura, e sobreveio o tal "pensamento único", uma espécie de ditadura de pretensas idéias que nunca foi mais do que ditadura de interesses financeiros em voracidade aguda. É natural, pois, que já surjam inquietações e reclamações por causa de meia dúzia de dias de divergências públicas, em torno da reforma da Previdência.
A rigor, por ora não houve debate, mas tão só discussão, porque idéias e argumentos ainda não entraram em campo -exceto só na discordância, ainda por aprofundar, entre as teses dos ministros Marco Aurélio Mello e Carlos Velloso sobre a extensão do direito dos servidores à aposentadoria integral. Debate apenas incipiente, mas bastante para confirmar o despreparo dos jornalistas para enfrentar o tema (ou qualquer tema menos simplório).
A posição do ministro Velloso é saudada pela negação, aos servidores ativos, de direito já adquirido à aposentadoria integral, cumprido o tempo necessário. Ninguém atentou, no entanto, para o complemento da tese de Velloso: "Cabe ao poder público devolver aquilo que o servidor pagou sobre a totalidade dos vencimentos para ter uma aposentadoria integral". A tese do ministro Carlos Velloso não evita que o problema do direito adquirido se substitua por outro não menos complicado para a reforma. Se não o for ainda mais que o anterior.
A intervenção de Luiz Inácio Lula da Silva força o governo a descobrir a pólvora, o que deveria ser transmitido a todos os ministros ainda antes da posse. Mas o complemento toma sentido oposto. Lula: "Precisamos primeiro fechar um projeto internamente, e não discutir pontualmente a reforma. Precisamos ouvir mais a sociedade e falar menos".
Por sua vez, o ministro Ricardo Berzoini, da Previdência, quer transferir a origem do mal-estar em torno da reforma: "Houve uma precipitação [cá de fora] ao classificar o debate genérico como proposta fechada do governo". Escapismo barato, que a formulação pretensiosa não atenua. Como ministro da Previdência, Berzoini deu entrevistas sucessivas sobre itens da pretendida reforma previdenciária. A cada dia um petardo, sem maiores argumentos, sem demonstrações de seus motivos e efeitos previstos, tudo exposto com ares de posição definida.
Seja no conselho a ser criado, e do qual deverão sair as decisões sobre a reforma, seja cá fora, é óbvio que só pode haver debate em torno de uma base preliminar de idéias. Assim como é óbvio que, se o desejo de providenciar a reforma é do governo, cabe-lhe a responsabilidade de apresentar suas idéias, ordenadas e fundamentadas. Sem a base não há debate, sem debate não há participação, sem participação é voltar ao regime do "pensamento único".
Por isso mesmo, não faz sentido o "precisamos ouvir mais a sociedade e falar menos". A sociedade já falou: pelas urnas que escolheram entre dois candidatos e suas respectivas mensagens. Fale agora o governo, com seus "projetos fechados internamente", e a palavra então voltará à sociedade. Esperemos que seja ouvida e considerada.


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