São Paulo, segunda-feira, 21 de maio de 2001

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ENTREVISTA DA 2ª

Sociólogo Boaventura de Sousa Santos defende globalização alternativa

"Democracia convive com fascismo social"

GABRIELA ATHIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

DANIEL BRAMATTI
EDITOR-ADJUNTO DE COTIDIANO

As fronteiras nacionais não são obstáculo para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, 60, quando se trata de reunir argumentos contra a tese de que não há alternativas ao atual modelo de globalização.
Atualmente, ele coordena uma pesquisa em seis países de quatro continentes -Portugal, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e África do Sul- sobre formas de resistência à exclusão social, que considera a principal consequência do que chama de globalização neoliberal.
"O capitalismo deixou de fazer concessões, a democracia perdeu a capacidade de distribuir riqueza, e as sociedades acabaram desenvolvendo relações fascistas", diz ele, referindo-se ao número cada vez maior de pessoas excluídas do contrato social. Ou seja: que não têm nenhum direito.
A perda de direitos e da noção de cidadania está ligada ao que esse professor da Universidade de Coimbra chama de "colapso das expectativas".
"O estabelecimento de uma sociedade é a estabilização das expectativas. Hoje, como no fascismo, há pessoas que não sabem se amanhã terão comida ou se continuarão vivas", afirma
Como exemplo de "fascismo social", ele cita o controle que facções criminosas exercem em favelas e bairros operários.
Os excluídos são o mote do processo, ainda embrionário, do que Santos chama de "globalização alternativa", em contraponto à "globalização neoliberal".
O professor, que esteve em São Paulo participando do 1º Colóquio Anual de Direitos Humanos, ressalta não ser contrário à globalização. Ele diz que é hora de "reinventar a esquerda" para que ela possa contribuir para a humanização do modelo.
Para Santos, a busca do bem comum, objetivo abandonado pelas ciências em geral e pela economia em particular, precisa voltar a ser o foco dos cientistas. "A globalização é governada por uma economia que desconhece a complexidade do mundo e é indiferente às consequências de suas teorias."
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Folha na última quarta-feira.

Folha - O sr. afirma que sociedades democráticas convivem com fascismo social. Poderia explicar esse conceito?
Santos -
É a extrema polarização da riqueza em muitos países, e o Brasil é um bom exemplo disso -está criando uma forma de convivência semelhante à produzida pelas sociedades fascistas tradicionais. É a convivência com o medo, o colapso total das expectativas, que é o fato de a pessoa viver sem saber se amanhã estará viva, se terá emprego, se terá liberdade.
Esse tipo de convivência fascista não está sendo produzido por um Estado fascista: o Estado é democrático, há partidos, há assembléias, há leis, há instituições públicas. Simplesmente há uma população, cada vez maior, que não tem acesso a esses direitos.

Folha - O sr. pode dar exemplos dessa situação?
Santos -
Eu vou a uma cidade como Medellín, na Colômbia, governada pelas chamadas "bandas", grupos armados privados, como alguns que encontramos no Rio e em São Paulo, e eles não são Estado. São sociedade civil, são máfias privadas. E eles exercem funções do Estado, como a justiça, por exemplo.
O que acontece também é uma colaboração entre o Estado e essas máfias. É o exemplo das polícias, que, muitas vezes, são tão corruptas quanto essas máfias e atuam em conjunção com elas.
O que se passa hoje no Rio, por exemplo, é que uma parte da polícia é muito ligada a grupos criminosos. A pergunta é: onde acaba o Estado e começa a sociedade nesses casos? É muito difícil dizer. É uma coisa híbrida.
Os grupos armados das favelas dizem às pessoas a que horas elas devem entrar, devem sair etc. As relações sociais são fascistas porque um grupo social tem direito de veto sobre outros.

Folha - Como esse fenômeno se origina?
Santos -
Vivemos em meio ao fascismo social porque a democracia deixou de ter capacidade de redistribuição. A democracia só tem tensão com o capitalismo, o que leva o capitalismo a funcionar com um rosto humano, se tiver capacidade de redistribuir: de tirar um pouco dos ricos para dar aos pobres.
O fascismo social emerge se a democracia deixa de fazer isso -e a gente vê que no Brasil a decadência das políticas públicas sociais vai nesse sentido.
O capitalismo só pode combinar com a democracia se ela for essa caricatura de democracia em que a gente vive.

Folha - O sr. vê uma ligação entre a crise da democracia redistributiva e a globalização. Existem alternativas a esse processo?
Santos -
Na década de 80, entendeu-se que a globalização ocorreria como um processo natural. Desenvolveu-se então o conceito de "tina" -sigla de "there is no alternative" (não há alternativa). Ou seja: esse é o modelo por meio do qual nós criaríamos o modelo de desenvolvimento.
Esse modelo virá privar os Estados da sua capacidade de regulação social, dará novos direitos de propriedade para os investidores nacionais e internacionais e dará um peso maior às organizações multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Entre as características desse modelo, o que se dizia é que não havia alternativas.

Folha - Como começa a contestação do modelo?
Santos -
A partir da década de 90, começamos a ver as consequências excludentes da globalização neoliberal, como o aumento exponencial da polarização entre ricos e pobres -não apenas entre países ricos e pobres, mas entre pobres e ricos de cada país.
Começamos a verificar que, em vários países, passaram a surgir formas de resistência. Não a resistência do movimento operário. O que havia era outra coisa: movimentos rurais e urbanos com alianças internacionais, muitas vezes feitas com uso da internet, começaram a criar alternativas para resistir aos efeitos mais excludentes da globalização.
A primeira manifestação pública apareceu em Seattle, em novembro de 99. Esses movimentos vão, de alguma maneira, desaguar no primeiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Nessa altura, muitos dos movimentos afirmam-se contra a globalização. Eles partem da idéia de que só existe um modelo de globalização. Mas é um processo lento, por meio do qual tentamos mostrar que somos a favor de uma globalização alternativa.

Folha - E o que o sr. chama de globalização alternativa?
Santos -
As alianças entre os diferentes movimentos sociais e iniciativas que estão resistindo e propondo alternativas criativas à exclusão social.
A democracia participativa é uma dessas iniciativas. Vemos em várias partes do mundo -e Porto Alegre é um exemplo- iniciativas no sentido de produzir novas formas de distribuição de recursos, que não sejam apenas por cálculo econômico, mas pelas necessidades sociais das populações.
Há também movimentos de cooperativas que estão emergindo em diferentes países, os movimentos indígenas e todas as formas alternativas de produção que eles estão promovendo.

Folha - Por exemplo?
Santos -
Na questão do direito de propriedade intelectual sobre a biodiversidade, por exemplo. É o que chamamos de bioimperialismo. Essa é a forma mais sinistra por meio da qual as grandes empresas multinacionais estão se apropriando, na América Latina, do conhecimento indígena.
As multinacionais vêm com seus técnicos, conversam com os xamãs, com os homens velhos dessas comunidades, levam as plantas medicinais e, a partir daí, patenteiam o remédio. Amanhã, quando o índio quiser comprar o remédio, terá de pagar royalties. Isso é pilhagem.

Folha - O que o sr. chama de "fair trade" (comércio justo), em contraposição ao "free trade" (comércio livre)?
Santos -
É uma forma de globalização alternativa de expressão muito pequena, talvez menos de 0,1% do comércio mundial, mas que é uma coisa emergente.
Funciona como um comércio em que os produtos foram feitos de acordo com determinadas características: com salários justos, em condições ecológicas equilibradas, sem discriminação aos sindicatos, sem trabalho infantil, sem trabalho escravo.
O comércio justo não olha só para a qualidade do produto, mas para a qualidade do processo, como foi produzido.

Folha - Existe uma sociedade civil global?
Santos -
É aquela formada pelos oprimidos. É o que eu chamo de sociedade civil estranha e indiferente, é a sociedade dos excluídos do contrato social.
Alguns grupos jamais estiveram no contrato social, como os índios. Os trabalhadores estiveram e estão sendo expulsos. As minorias étnicas não estão nesse contrato social em muitos países.
Claro que há outra sociedade civil global, formada pelos executivos e do mercado. A avenida Paulista é um dos grandes centros da sociedade civil global dominante.

Folha - As ONGs têm legitimidade para representar a sociedade, apesar de não prestarem conta dos seus recursos e de suas estruturas hierárquicas?
Santos -
As ONGs não podem ser uma maneira de o Estado se eximir de promover a cidadania. Em segundo lugar, as ONGs têm de ser genuinamente da sociedade civil, não instrumentos que o Estado cria. Há ONGs que são braços da CIA. Algumas primeiras-damas da África estão atarefadas criando esse tipo de instituição. As ONGs precisam ser democráticas internamente e prestar contas às comunidades em que atuam.

Folha - A esquerda tradicional, focada no movimento operário, não foi atropelada por essas novas formas de organização, pautadas em alianças transnacionais?
Santos -
A esquerda, ao contrário da Terceira Via, tem muito futuro. Só precisa ser reinventada.
A esquerda tradicional foi configurada em duas idéias que hoje estão em dificuldade: em primeiro lugar foi pautada nos Estados nacionais. Marx pregava que os trabalhadores do mundo se unissem, mas quem se uniu foi o capital. Os trabalhadores ganharam direitos ao nível dos Estados. Quando veio a globalização, a esquerda não teve resposta.
A outra razão pela qual a esquerda ficou numa situação de deficiência é porque, na tradição ocidental, o trabalho sempre foi a grande via de acesso à cidadania. Para ter acesso à seguridade social e a outros direitos, era preciso ter emprego. Hoje o trabalho não dá mais cidadania. É realizado sem condições e sem direitos.
No capitalismo que vigorou até a década de 80, havia mercados nacionais de trabalho, ainda que segmentados. O trabalho hoje é um recurso global, mas não há um mercado global de trabalho. Há liberdade de movimento para produtos e serviços, mas não para os trabalhadores.
Sou adepto de fronteiras abertas para a imigração. A posição é radical, mas penso que na Europa é necessário defendê-la. Não temos direito a privilégios quando o resto do mundo morre de fome.

Folha - O sr. defende a desobediência civil como forma de luta por determinados direitos. Isso não ameaça a democracia?
Santos -
Não. Os momentos fortes da história da democracia não são discussões no Parlamento. São momentos em que grupos que estão excluídos lutam pela inclusão com medidas que, muitas vezes, são ilegais.
Se as greves não são permitidas, fazem greves. Se as marchas não são permitidas, fazem marchas. Foi o que aconteceu com o movimento negro nos Estados Unidos. Se era proibido ir a um restaurante, negros entravam e ficavam lá conversando. Era uma ação ilegal, mas foi assim que nasceu o movimento pelos direitos civis.

Folha - A globalização alternativa não é uma utopia?
Santos -
Sim. Mas eu cito sempre Sartre nessa questão: todas as idéias, antes de serem realizadas, parecem utópicas.


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