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ENTREVISTA DA 2ª
Sociólogo Boaventura de Sousa Santos defende globalização alternativa
"Democracia convive com fascismo social"
GABRIELA ATHIAS
DA REPORTAGEM LOCAL
DANIEL BRAMATTI
EDITOR-ADJUNTO DE COTIDIANO
As fronteiras nacionais não são
obstáculo para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos,
60, quando se trata de reunir argumentos contra a tese de que
não há alternativas ao atual modelo de globalização.
Atualmente, ele coordena uma
pesquisa em seis países de quatro
continentes -Portugal, Brasil,
Colômbia, Índia, Moçambique e
África do Sul- sobre formas de
resistência à exclusão social, que
considera a principal consequência do que chama de globalização
neoliberal.
"O capitalismo deixou de fazer
concessões, a democracia perdeu
a capacidade de distribuir riqueza, e as sociedades acabaram desenvolvendo relações fascistas",
diz ele, referindo-se ao número
cada vez maior de pessoas excluídas do contrato social. Ou seja:
que não têm nenhum direito.
A perda de direitos e da noção
de cidadania está ligada ao que esse professor da Universidade de
Coimbra chama de "colapso das
expectativas".
"O estabelecimento de uma sociedade é a estabilização das expectativas. Hoje, como no fascismo, há pessoas que não sabem se
amanhã terão comida ou se continuarão vivas", afirma
Como exemplo de "fascismo
social", ele cita o controle que facções criminosas exercem em favelas e bairros operários.
Os excluídos são o mote do processo, ainda embrionário, do que
Santos chama de "globalização alternativa", em contraponto à
"globalização neoliberal".
O professor, que esteve em São
Paulo participando do 1º Colóquio Anual de Direitos Humanos,
ressalta não ser contrário à globalização. Ele diz que é hora de
"reinventar a esquerda" para que
ela possa contribuir para a humanização do modelo.
Para Santos, a busca do bem comum, objetivo abandonado pelas
ciências em geral e pela economia
em particular, precisa voltar a ser
o foco dos cientistas. "A globalização é governada por uma economia que desconhece a complexidade do mundo e é indiferente às
consequências de suas teorias."
A seguir, os principais trechos
da entrevista concedida à Folha
na última quarta-feira.
Folha - O sr. afirma que sociedades democráticas convivem com
fascismo social. Poderia explicar
esse conceito?
Santos - É a extrema polarização
da riqueza em muitos países, e o
Brasil é um bom exemplo disso
-está criando uma forma de
convivência semelhante à produzida pelas sociedades fascistas tradicionais. É a convivência com o
medo, o colapso total das expectativas, que é o fato de a pessoa viver
sem saber se amanhã estará viva,
se terá emprego, se terá liberdade.
Esse tipo de convivência fascista
não está sendo produzido por um
Estado fascista: o Estado é democrático, há partidos, há assembléias, há leis, há instituições públicas. Simplesmente há uma população, cada vez maior, que não
tem acesso a esses direitos.
Folha - O sr. pode dar exemplos
dessa situação?
Santos - Eu vou a uma cidade
como Medellín, na Colômbia, governada pelas chamadas "bandas", grupos armados privados,
como alguns que encontramos no
Rio e em São Paulo, e eles não são
Estado. São sociedade civil, são
máfias privadas. E eles exercem
funções do Estado, como a justiça, por exemplo.
O que acontece também é uma
colaboração entre o Estado e essas
máfias. É o exemplo das polícias,
que, muitas vezes, são tão corruptas quanto essas máfias e atuam
em conjunção com elas.
O que se passa hoje no Rio, por
exemplo, é que uma parte da polícia é muito ligada a grupos criminosos. A pergunta é: onde acaba o
Estado e começa a sociedade nesses casos? É muito difícil dizer. É
uma coisa híbrida.
Os grupos armados das favelas
dizem às pessoas a que horas elas
devem entrar, devem sair etc. As
relações sociais são fascistas porque um grupo social tem direito
de veto sobre outros.
Folha - Como esse fenômeno se
origina?
Santos - Vivemos em meio ao
fascismo social porque a democracia deixou de ter capacidade de
redistribuição. A democracia só
tem tensão com o capitalismo, o
que leva o capitalismo a funcionar
com um rosto humano, se tiver
capacidade de redistribuir: de tirar um pouco dos ricos para dar
aos pobres.
O fascismo social emerge se a
democracia deixa de fazer isso
-e a gente vê que no Brasil a decadência das políticas públicas sociais vai nesse sentido.
O capitalismo só pode combinar com a democracia se ela for
essa caricatura de democracia em
que a gente vive.
Folha - O sr. vê uma ligação entre
a crise da democracia redistributiva e a globalização. Existem alternativas a esse processo?
Santos - Na década de 80, entendeu-se que a globalização ocorreria como um processo natural.
Desenvolveu-se então o conceito
de "tina" -sigla de "there is no
alternative" (não há alternativa).
Ou seja: esse é o modelo por meio
do qual nós criaríamos o modelo
de desenvolvimento.
Esse modelo virá privar os Estados da sua capacidade de regulação social, dará novos direitos de
propriedade para os investidores
nacionais e internacionais e dará
um peso maior às organizações
multilaterais, como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Entre as características desse modelo, o que se dizia é
que não havia alternativas.
Folha - Como começa a contestação do modelo?
Santos - A partir da década de
90, começamos a ver as consequências excludentes da globalização neoliberal, como o aumento exponencial da polarização entre ricos e pobres -não apenas
entre países ricos e pobres, mas
entre pobres e ricos de cada país.
Começamos a verificar que, em
vários países, passaram a surgir
formas de resistência. Não a resistência do movimento operário. O
que havia era outra coisa: movimentos rurais e urbanos com
alianças internacionais, muitas
vezes feitas com uso da internet,
começaram a criar alternativas
para resistir aos efeitos mais excludentes da globalização.
A primeira manifestação pública apareceu em Seattle, em novembro de 99. Esses movimentos
vão, de alguma maneira, desaguar
no primeiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Nessa altura, muitos dos movimentos afirmam-se contra a globalização.
Eles partem da idéia de que só
existe um modelo de globalização. Mas é um processo lento, por
meio do qual tentamos mostrar
que somos a favor de uma globalização alternativa.
Folha - E o que o sr. chama de globalização alternativa?
Santos - As alianças entre os diferentes movimentos sociais e iniciativas que estão resistindo e
propondo alternativas criativas à
exclusão social.
A democracia participativa é
uma dessas iniciativas. Vemos em
várias partes do mundo -e Porto
Alegre é um exemplo- iniciativas no sentido de produzir novas
formas de distribuição de recursos, que não sejam apenas por cálculo econômico, mas pelas necessidades sociais das populações.
Há também movimentos de
cooperativas que estão emergindo em diferentes países, os movimentos indígenas e todas as formas alternativas de produção que
eles estão promovendo.
Folha - Por exemplo?
Santos - Na questão do direito
de propriedade intelectual sobre a
biodiversidade, por exemplo. É o
que chamamos de bioimperialismo. Essa é a forma mais sinistra
por meio da qual as grandes empresas multinacionais estão se
apropriando, na América Latina,
do conhecimento indígena.
As multinacionais vêm com
seus técnicos, conversam com os
xamãs, com os homens velhos
dessas comunidades, levam as
plantas medicinais e, a partir daí,
patenteiam o remédio. Amanhã,
quando o índio quiser comprar o
remédio, terá de pagar royalties.
Isso é pilhagem.
Folha - O que o sr. chama de "fair
trade" (comércio justo), em contraposição ao "free trade" (comércio
livre)?
Santos - É uma forma de globalização alternativa de expressão
muito pequena, talvez menos de
0,1% do comércio mundial, mas
que é uma coisa emergente.
Funciona como um comércio
em que os produtos foram feitos
de acordo com determinadas características: com salários justos,
em condições ecológicas equilibradas, sem discriminação aos
sindicatos, sem trabalho infantil,
sem trabalho escravo.
O comércio justo não olha só
para a qualidade do produto, mas
para a qualidade do processo, como foi produzido.
Folha - Existe uma sociedade civil
global?
Santos - É aquela formada pelos
oprimidos. É o que eu chamo de
sociedade civil estranha e indiferente, é a sociedade dos excluídos
do contrato social.
Alguns grupos jamais estiveram
no contrato social, como os índios. Os trabalhadores estiveram
e estão sendo expulsos. As minorias étnicas não estão nesse contrato social em muitos países.
Claro que há outra sociedade civil global, formada pelos executivos e do mercado. A avenida Paulista é um dos grandes centros da
sociedade civil global dominante.
Folha - As ONGs têm legitimidade
para representar a sociedade, apesar de não prestarem conta dos
seus recursos e de suas estruturas
hierárquicas?
Santos - As ONGs não podem
ser uma maneira de o Estado se
eximir de promover a cidadania.
Em segundo lugar, as ONGs têm
de ser genuinamente da sociedade civil, não instrumentos que o
Estado cria. Há ONGs que são
braços da CIA. Algumas primeiras-damas da África estão atarefadas criando esse tipo de instituição. As ONGs precisam ser democráticas internamente e prestar
contas às comunidades em que
atuam.
Folha - A esquerda tradicional,
focada no movimento operário,
não foi atropelada por essas novas
formas de organização, pautadas
em alianças transnacionais?
Santos - A esquerda, ao contrário da Terceira Via, tem muito futuro. Só precisa ser reinventada.
A esquerda tradicional foi configurada em duas idéias que hoje
estão em dificuldade: em primeiro lugar foi pautada nos Estados
nacionais. Marx pregava que os
trabalhadores do mundo se unissem, mas quem se uniu foi o capital. Os trabalhadores ganharam
direitos ao nível dos Estados.
Quando veio a globalização, a esquerda não teve resposta.
A outra razão pela qual a esquerda ficou numa situação de
deficiência é porque, na tradição
ocidental, o trabalho sempre foi a
grande via de acesso à cidadania.
Para ter acesso à seguridade social
e a outros direitos, era preciso ter
emprego. Hoje o trabalho não dá
mais cidadania. É realizado sem
condições e sem direitos.
No capitalismo que vigorou até
a década de 80, havia mercados
nacionais de trabalho, ainda que
segmentados. O trabalho hoje é
um recurso global, mas não há
um mercado global de trabalho.
Há liberdade de movimento para
produtos e serviços, mas não para
os trabalhadores.
Sou adepto de fronteiras abertas
para a imigração. A posição é radical, mas penso que na Europa é
necessário defendê-la. Não temos
direito a privilégios quando o resto do mundo morre de fome.
Folha - O sr. defende a desobediência civil como forma de luta
por determinados direitos. Isso
não ameaça a democracia?
Santos - Não. Os momentos fortes da história da democracia não
são discussões no Parlamento.
São momentos em que grupos
que estão excluídos lutam pela inclusão com medidas que, muitas
vezes, são ilegais.
Se as greves não são permitidas,
fazem greves. Se as marchas não
são permitidas, fazem marchas.
Foi o que aconteceu com o movimento negro nos Estados Unidos.
Se era proibido ir a um restaurante, negros entravam e ficavam lá
conversando. Era uma ação ilegal,
mas foi assim que nasceu o movimento pelos direitos civis.
Folha - A globalização alternativa
não é uma utopia?
Santos - Sim. Mas eu cito sempre
Sartre nessa questão: todas as
idéias, antes de serem realizadas,
parecem utópicas.
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