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ENTREVISTA DA 2ª
JOSÉ JORGE DE CARVALHO
Para o antropólogo da UnB, defensor de cotas raciais, diversidade estimularia debate na academia
"Pós-graduação está esclerosada"
ANTÔNIO GOIS
RAFAEL CARIELLO
ENVIADOS ESPECIAIS A RECIFE
O debate sobre as cotas para negros, índios e estudantes da rede
pública na graduação já é polêmico, mas há quem defenda que se
vá ainda além. O antropólogo José
Jorge de Carvalho, autor da proposta de cotas aprovada no mês
passado na UnB (Universidade de
Brasília), defende também que o
critério racial seja levado em conta na pós-graduação.
Para ele, o diagnóstico da pós é
ainda mais claro quanto à necessidade de aumentar o número de
negros. Não se trata apenas de
corrigir injustiças sociais, mas
também de estimular a diversidade dos temas pesquisados pela
ciência brasileira.
"A pós-graduação brasileira está hoje esclerosada pelo excesso
de homogeneidade. Não há ninguém enfrentando ninguém, ninguém contestando ninguém. A
entrada de mais negros e índios
no sistema forçaria os programas
a ampliarem seu leque de temas
de conhecimento, incluindo assuntos de interesse mais direto
dos negros e índios", diz.
Para ele, a ciência brasileira escolheu imitar um modelo europeu e deu as costas para os negros
e os índios. Ele cita como exemplo
o fato de haver apenas um negro
entre os 61 pesquisadores entrevistados no livro comemorativo
dos 50 anos da SBPC (Sociedade
Brasileira para o Progresso da
Ciência).
"A academia é uma reunião de
brancos. Incluir os negros e índios
não é um problema de ciência,
mas de consciência. É do interesse
da ciência brasileira desenvolver
mais temas que digam respeito
aos negros e aos índios", afirma
ele, que deu entrevista à Folha na
semana passada, após participar
da 55ª Reunião Anual da SBPC,
em Recife.
Folha - O senhor defende cotas
para negros e índios na graduação
e também na pós. Por quê?
José Jorge de Carvalho - Na graduação, a cota é necessária porque ela é cega. Há um passivo de
muito tempo, e é preciso colocar
um contingente de negros e índios no ensino superior. O único
modo de fazer isso rapidamente é
com cotas, porque as outras alternativas são soluções apenas para
alguns gatos pingados.
Trabalhar com pré-vestibulares
é beneficiar alguns gatos pingados. Na escola pública também só
passariam alguns
gatos pingados. A
única garantia de
que eu vou colocar
esse contingente
de estudantes na
graduação é implementando cotas.
Folha - Mas por
que defender a cota
também na pós-graduação?
Carvalho - A pós-graduação brasileira está hoje esclerosada pelo excesso de homogeneidade. Há muito
tempo que o sistema apenas reproduz as mesmas redes que sempre estiveram na pós.
É evidente que, num sistema assim, a vigilância baixa. Não há
ninguém enfrentando ninguém,
ninguém contestando ninguém.
Todo mundo que entra no sistema era ligado àquela rede e não
vai brigar com outro que já está lá.
Parece uma família homogênea
demais. É um professor da pós-graduação que escolhe um candidato para seguir a mesma linha de
pesquisa dele. Já está tudo muito
marcado.
Folha - Mas, na pós, até mais do
que no caso da graduação, a seleção acadêmica não deveria levar
em conta apenas o mérito?
Carvalho - Na graduação, eu defendo um sistema de cotas. Na
pós, o sistema de seleção não é de
competência, mas de preferência.
Às vezes, você tem apenas uma
vaga e três candidatos disputando. Você tem que preferir
alguém. Esse sistema
de preferência sempre existiu porque
toda a pós-graduação está montada
em cima de linhas de
pesquisa.
Folha - Por que isso
prejudicaria, especificamente, negros e
índios?
Carvalho - Pode
acontecer perfeitamente que um jovem muito talentoso
e negro não entre na
pós-graduação porque não tem nenhum professor que
trabalhe a linha de
pesquisa que ele
quer seguir. E, muitas vezes, ele quer estudar temas
que não existem porque nenhum
dos professores é negro.
Às vezes, ele está interessado em
assuntos que os outros professores já excluíram como tema de conhecimento e ele está alertando
que gostaria de estudar aquilo.
Como não tem nenhum professor
para orientá-lo, ele fica de fora.
Então, a pós-graduação não é meritocrática apenas.
Às vezes, você tem três alunos
brilhantes querendo entrar numa
pós-graduação numa área que
tem duas vagas. Um brilhante vai
ficar de fora. O tema é controlado
pela rede de pesquisadores.
Folha - A pós-graduação brasileira não perderia em qualidade caso
passasse a escolher candidatos por
critérios raciais?
Carvalho - Quando falo em preferência para negros, é porque isso forçaria os programas de pós-graduação a ampliar seu leque de
temas de conhecimento. Com isso, você vai energizar e renovar as
linhas de pensamento. Na literatura, nas artes, na história ou na
psicologia, por exemplo.
Na psicologia, às vezes utilizamos teorias que foram acumuladas em países de homogeneidade
étnica, que falam de uma coisa
universal, e você traz esse conhecimento para o Brasil sem levar
em conta o lugar dos negros e dos
índios na nossa sociedade.
Na área de medicina, há uma
queixa do movimento negro de
que há poucas pesquisas sobre
doenças que afetam mais os negros.
Folha - É necessário ser negro ou
índio para estudar temas de interesse desses grupos? O senhor, por
exemplo, é branco, mas estuda temas relacionados a esses grupos.
Carvalho - Só que eu não tenho a
mesma experiência de vida que
um negro ou um índio, e isso é
muito importante na hora de escolher os temas de interesse de
um estudante da pós-graduação.
O problema é que temos, no Brasil, uma ciência que se pauta no
eurocentrismo e que deu as costas
a negros e índios.
Escolher negros e índios para
participarem da pós-graduação é
uma decisão de conhecimento,
não apenas um mecanismo para
reparar injustiças históricas. São
esses negros e índios que ajudarão
a desenvolver linhas de pesquisas
do interesse de uma parcela significativa da população.
Recentemente, dei uma folheada no livro dos 50 anos da SBPC
["Cientistas do Brasil"], com entrevistas com 61 pesquisadores.
Apenas um deles, o geógrafo Milton Santos, era negro. E ele já é falecido. A academia é uma reunião
de brancos. Não é um problema
de ciência, mas de consciência.
Folha - Por que o senhor decidiu
propor cotas na UnB?
Carvalho - Presenciei uma situação de racismo na UnB de modo
muito idiossincrático. Apresentei
minha proposta em novembro de
1999. Um aluno meu que era negro [Arivaldo Alves] conseguiu
entrar no doutorado de antropologia da UnB. Nunca tinha entrado um negro no doutorado da
universidade em 25 anos.
No primeiro semestre, ele ficou
reprovado numa disciplina obrigatória em circunstâncias que depois fomos descobrir que não
eram corretas, e os professores foram obrigados a mudar a nota dele. Aquilo foi alarmante. Era um
absurdo a reprovação dele porque ele era brilhante.
Como ele tinha uma bolsa do
CNPq e essa era matéria obrigatória, caso fosse reprovado, ele teria
que voltar para casa fracassado.
Eu e minha mulher [que também
é professora da UnB] lutamos o
tempo todo para ele não desistir.
Folha - Como a academia se posicionou com relação a esse caso?
Carvalho - Quando o negro está
na rua como empregada doméstica ou lavador de carro, você é até
simpático com ele. Mas, quando
ele está mais perto de entrar nessas redes, a coisa muda. A corporação se fechou para proteger o
caso e silenciá-lo.
Foi uma longa briga. Em 1999,
ele teve que contratar até advogado. Conseguimos
vencer e, neste
ano, ele foi aprovado no doutorado
com louvor.
Daí surgiu a idéia
das cotas?
Carvalho - Sim.
Se era tão difícil
manter um aluno
no doutorado, então vamos propor
que entrem centenas e ver se ficam
alguns.
E qual foi a primeira reação da
universidade?
Carvalho - Em
novembro de 1999,
apresentamos a
proposta. Os alunos sempre se mobilizaram. Fizemos vários debates
e eles compareciam, mesmo para
discordar. Já os professores nem
queriam debater.
A conferência internacional sobre racismo, que ocorreu em 2001
em Durban (África do Sul), não contribuiu para tornar públicas essas
propostas?
Carvalho - Durban, sem dúvida,
pôs isso na rua. A universidade tinha silenciado a realidade havia
muitos anos. Os jornalistas tiveram que fazer perguntas ao Ipea, e
não à universidade. A academia é
muito racista. Ela quer o negro
como objeto, não como sujeito.
Quais as principais diferenças do
projeto da UnB para o da Uerj?
Carvalho - Eu acho nosso projeto
mais maduro porque ele foi pensado como um plano de metas.
Na Uerj, as cotas aconteceram por
decreto. O governo determinou,
de cima para baixo, que a universidade reservasse 40% das vagas e
ponto final. Nós reservamos 20%
das vagas. Acho que é um número
mais realista e pedagogicamente
responsável.
Numa turma de 40 alunos, oito
serão negros. Se um professor for
hostil, o aluno terá colegas que o
ajudarão a denunciá-lo. Se a porcentagem de cotas for muito pequena, ela não terá impacto. Se for
grande demais, você não terá condições de absorver esses alunos.
Qual critério vocês utilizaram para definir quem é negro?
Carvalho - O da autodeclaração.
Não há outro possível. Sei que
pessoas podem se declarar negras
só para entrar pelas cotas, mas
não há outra solução. A única resposta à esperteza deve ser o constrangimento moral. Mas não vamos partir do ponto de considerar que todo mundo é desonesto.
Esse critério está em acordos internacionais que o Brasil assinou
e que garantem o direito de a pessoa se autodeclarar.
Os Estados Unidos adotam ações
afirmativas desde a década de 60.
Por que demoramos tanto para fazer o mesmo?
Carvalho - Há um
século de silêncio sobre esse tema na
nossa academia.
Desde a criação das
primeiras universidades, perdemos sucessivamente a
oportunidade de incluir os negros no
sistema apenas com
uma canetada.
Isso poderia ser
feito, com bem menos problemas do
que hoje, na criação
da USP, das federais
do Paraná ou do Rio
de Janeiro e na criação da UnB. De lá
para cá, os mecanismos de exclusão foram cada vez mais
aperfeiçoados.
A discussão sobre o
elitismo da universidade passa
também pela discussão sobre a cobrança de mensalidades em universidades públicas para os que
podem pagar. O senhor é a favor?
Carvalho - Acho que essa questão só pode ser respondida dentro
do contexto de uma discussão sobre a tributação. Num país que dá
enormes isenções fiscais, será que
a cobrança de mensalidades seria
a prioridade das contas do Estado
como um todo?
O Brasil contingencia recursos
monumentais para o pagamento
da dívida externa ou por causa de
isenção fiscal para grandes empresas. Trata-se também de uma
questão moral. Que Estado é esse
que quer cobrar das universidades e não cobra do grande capital?
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