São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 2002

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REGRAS DO JOGO

É proibido criar "estados mentais"

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO

Não é ficção. O artigo 242 do Código Eleitoral é taxativo: propaganda eleitoral só pode ser feita em "língua nacional" e não deve "empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais".
A Resolução nš 20.988 do TSE assegura que esta pérola da tradição jurídica brasileira permanece em vigor e que serão adotadas medidas (sem dizer quais) para "impedir ou cessar imediatamente" qualquer violação.
Os candidatos não podem discursar em Kaiapó, nem em russo, nem em inglês. Até aí tudo bem, a regra é clara e não deve causar transtornos para as campanhas. A não ser que se considere abusiva a tentativa de diálogo com guetos juvenis das periferias das grandes cidades que, em relação aos bairros nobres, falam idioma bem diferente.
O fim da propaganda é o de influenciar, o de criar "vontade artificialmente elaborada" -seja para beber Coca-Cola, seja para votar em alguém. O que significa, então, criar artificialmente "estados mentais" na opinião pública?
Não há resposta nos livros jurídicos. Quando cuidam do artigo 242, apontam, genericamente, um esforço legislativo para se evitar a "vontade manufaturada" ou o "envenenamento psíquico". Mas ninguém se atreve a definir o que é, de fato, "estado mental".
O "Vocabulário da Psicanálise", de Laplanche e Pontalis (Martins Fontes: 1994), também não explica. Dá o conceito de "estado hipnóide", um "estado de consciência análogo ao criado pela hipnose", em que "os conteúdos de consciência que nele aparecem entram pouco ou nada em ligação associativa com o restante da vida mental".
Será que a lei quer impedir a hipnose coletiva do eleitor? Ou quer que o eleitor vá votar sem "estado mental" ou em "estado não-mental"?
Seria o caso, por exemplo, de impedir qualquer artificialidade capaz de iludir a consciência política do eleitor, como a maquiagem que disfarça as olheiras do candidato do governo, ou o volumoso nó dado pelos publicitários na gravata tipo Hermès do candidato operário, indicativo de sua adesão ao establishment, ou, por falar em hipnose, o discurso prolixo, messiânico e robótico do candidato mocinho, para que a pessoa que o escuta, sem compreender o que é dito, acredite que ele é valoroso e sabe das coisas?
A origem dessa regra está na preocupação autoritária e elitista de prevenir choques ideológicos entre forças de esquerda e de direita ou avalanches passionais provocadas pelo apelo populista e caudilhesco típico dos anos 50.
As leis de Segurança Nacional do regime militar combatiam a "guerra psicológica adversa" (outra pérola da história jurídica do país) e o Código Eleitoral, de 1965, tinha a pretensão de eliminar do cenário político a possibilidade de contágio emocional do eleitor.
É constrangedor verificar que o artigo 242 sobreviveu aos anos, à abertura democrática, e ainda hoje, na era da urna eletrônica, seja regulamentado pelo TSE.
Numa época em que o discurso de José Genoino poderia ser proferido por Paulo Maluf, e vice-versa; numa época em que a polícia social-democrata do governo de São Paulo adota métodos de repressão que poderiam ter sido utilizados por Filinto Müller durante o Estado Novo- e pouca gente se incomoda com isso-; numa época em que todos as candidaturas à Presidência da República prometem a mesma coisa, crescimento econômico, fim do desemprego, redução das taxas de juros e segurança, o artigo 242 do Código Eleitoral, que proíbe emoção, paixão e "estados mentais" durante a disputa política, além de ridículo, parece inútil.


Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal e articulista da Folha, escreve às quartas-feiras nesta coluna



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