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ANÁLISE
G-23 é filho indireto da nova política Sul-Sul
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Exceto para os poucos brasileiros que acompanham, de perto
ou de longe, as complexas negociações comerciais que se desenrolam em Genebra, QG da Organização Mundial do Comércio,
pode ter ficado a impressão de
que, de repente, surgiu nas areias
do balneário mexicano de Cancún um grupo de 20 países, liderados pelo Brasil, dispostos a se
opor à agenda dos ricos.
Falsa impressão, como é óbvio.
O que acabou sendo o G-23 é a
culminação de um processo de
aproximação do Brasil com um
conjunto de países em desenvolvimento. Aproximação que já vinha do governo anterior mas ganhou notável velocidade depois
da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No caso específico da Conferência Ministerial de Cancún, o estopim para a criação do que viria a
ser o G-23 tem a seguinte ordem
cronológica.
1 - No final de julho, um grupo
de 25 países da OMC reúne-se em
Montreal, numa miniministerial
destinada a tentar desbloquear as
negociações da chamada Agenda
Doha de Desenvolvimento, lançada em 2001 na capital do Qatar.
A única decisão concreta de
Montreal foi o pedido coletivo para que União Européia e Estados
Unidos tentassem se entender e
apresentassem uma proposta para a negociação da área agrícola, o
grande nó da Rodada Doha.
O pedido tinha um motivo óbvio: são as duas grandes usinas
econômicas e comerciais do planeta e delas depende, em consequência, qualquer avanço (ou
bloqueio) nas negociações.
2 - Os dois grandes de fato se entenderam, mas produziram um
documento que os países interessados na liberalização do comércio agrícola consideraram quase
insultuoso, tal a timidez na abertura proposta.
"Se o documento ficar como está, não há como avançar", reagiu
imediatamente o chanceler Celso
Amorim.
Em Genebra, o chefe da missão
brasileira, embaixador Luiz Felipe
de Seixas Corrêa, sentiu ambiente
favorável para uma mexida inédita: costurar uma coalizão de países em desenvolvimento, mesmo
com diferentes interesses em matéria agrícola, para formular uma
proposta alternativa, técnica e
não-doutrinária (pobres x ricos).
Amorim deu total apoio, e nasceu o grupo que, ao final da reunião de Cancún, já agrupava 23
países.
Antecedentes
Mas essa história recente fica incompleta sem os lances que a precederam e ajudaram a criar um
ambiente de cooperação entre os
grandes países do Sul (Argentina,
China, Índia, África do Sul, entre
outros).
O governo Lula deu mais velocidade ao processo de aproximação
com os emergentes do Sul.
Com a China, para ficar só em
um exemplo, mas bastante concreto, as trocas comerciais aumentaram tanto entre os dois países neste ano que o país asiático
passou a ser o segundo maior
mercado para o Brasil, atrás apenas dos Estados Unidos.
Só nos primeiros cinco meses
do ano, o Brasil exportou US$ 1,74
bilhão para a China em produtos,
mais que o volume total do ano
2000 (US$ 1,085 bilhão).
Com a Índia, foi assinado na
Cúpula do Mercosul realizada em
junho em Assunção um acordo-marco "com o objetivo de estabelecer regras claras, previsíveis e
duradouras para estimular o desenvolvimento do comércio e dos
investimentos recíprocos".
Com a África do Sul, pouco antes da cúpula de Cancún, o governo brasileiro deu um passo mais
na construção de uma área de livre comércio.
Trilateral do Sul
Entre os três países (Brasil, Índia
e África do Sul) já houve uma reunião conjunta para discutir o que,
nos corredores do Itamaraty, se
chamou de Trilateral do Sul.
Com a Argentina, apesar dos
mal-entendidos em torno da renegociação do acordo do vizinho
com o FMI (Fundo Monetário Internacional), o fato é que os governos Lula e Néstor Kirchner
buscam fortalecer o que ambos
chamam de "relação estratégica".
Havia, portanto, todo um novo
relacionamento pavimentando o
caminho para a criação de um
grupo que defendesse os interesses conjuntos nas negociações
agrícolas da OMC.
Para fechar o círculo, o governo
brasileiro aceitou ceder em suas
propostas de liberalização agrícola, de forma a atender a Índia, que
é muito mais protecionista e não
tem a menor intenção de abrir sua
agricultura.
O futuro das negociações
Por isso, a proposta do G-20
(agora G-23) jogava todo o peso
da liberalização agrícola nos países ricos. Tem uma lógica: só os
países ricos têm Tesouros suficientemente abastecidos para
subsidiar seus agricultores com a
pilha de US$ 1 bilhão por dia.
Mas teve também um inconveniente: permitiu que tanto Estados Unidos como União Européia
acusassem o novo bloco de defender a abertura dos mercados
alheios, sem, no entanto, ceder
nos seus próprios mercados.
Essa batalha ficou suspensa na
reunião de Cancún, mas vai ressurgir logo mais quando se fizer a
conferência ministerial da Alca
(Área de Livre Comércio das
Américas), em novembro em
Miami, ou quando houver nova
reunião entre União Européia e
Mercosul (outubro em Bruxelas).
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