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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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NO PLANALTO

Professor Lula dá aulas de arcaísmo ao país

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A política, como se sabe, é a mais antiga das profissões. Natural, portanto, que, guindado ao Planalto, o ex-PT tenha abandonado rapidamente todas as suscetibilidades do PT -um partido fisiológico que ainda não havia sido apresentado aos apetites e prazeres do poder.
No seu esforço para salvar o país, Lula convive com políticos de sólidas convicções. São a favor de tudo e visceralmente contra qualquer coisa. Desde que ganhem algo em troca.
"Nós vamos ensinar este país a negociar", disse o companheiro-professor Lula duas semanas atrás, num de seus já célebres improvisos. "Nós vamos ensinar este país a atingir a maturidade."
Funciona na Casa Civil da Presidência a sala de aula mais festejada da Esplanada. Ali, o camarada José Dirceu repete um experimento clássico: injeta genes do arcaico nas células do novo.
Principal negociador da ex-virtude, Dirceu utiliza os instrumentos que encontrou no Planalto. Maneja, com rara "maturidade", cargos e verbas. Aqui se relatará uma lição que envolve o manuseio das verbas.
Entre os dias 7 e 11 de agosto, a bancada parlamentar do Estado de Tocantins, dona de 11 votos no Congresso, amealhou em Brasília liberações orçamentárias que somam R$ 39,4 milhões.
Repassado pelo Ministério dos Transportes, o dinheiro recheou os cofres do Departamento de Estradas de Rodagem de Tocantins. Fruto de acordo firmado ainda sob FHC, parte da grana encontrava-se retida em Brasília desde o final de 2002.
A emissão das ordens de pagamento foi um prêmio à unidade da bancada de Tocantins, que votou em uníssono a reforma da Previdência. Guiando-se, naturalmente, pela partitura do Planalto.
Há 15 dias, os oito deputados e três senadores tocantinenses compareceram à sala de aula de Dirceu. Estavam acompanhados do governador Marcelo Miranda. Portavam uma lista de reivindicações monetárias.
Deu-se numa tarde em que o Congresso fervia. Discutia-se a votação da reforma tributária. Temendo uma derrota, o governo alinhavava acordos de última hora. Entendimentos que entraram pela madrugada e resultaram num triunfo acachapante do governo.
Nos dias subsequentes, Tocantins foi brindado com novas liberações: R$ 6,9 milhões. Dinheiro de três pastas: Integração Nacional, Assistência Social e Cidades. As últimas ordens de pagamento são de 12 de setembro.
O pacote incluiu verbas destinadas pelos parlamentares a municípios que compõem as suas respectivas bases eleitorais. Coisa antiga, incluída no Orçamento de 2002. Aguardam-se para os próximos dias novos aportes.
Uma única voz de Tocantins ousou atravessar a melodia ditada pelo Planalto: a da deputada Kátia Abreu (PFL-TO). Viúva, recusou-se a aprovar a poda de pensões previdenciárias. Presidente da Federação de Agricultura tocantinense, desaprovou a meia-sola tributária.
"Nada meu foi liberado, absolutamente nada", diz, resignada a deputada. Ela compôs a caravana à sala de Dirceu. É autora de emendas orçamentárias que destinam a municípios de Tocantins mais de R$ 2 milhões. "Esse é o jogo. Votou, levou. Não votou, não ganha."
Deputado de primeiro mandato, presidente da Federação das Indústrias de Tocantins, Ronaldo Dimas (PSDB-TO), também discorda de vários pontos da reforma tributária. Mas votou a favor.
"Meu Estado é muito dependente do governo federal", diz Dimas. "Nessa situação, a união dos parlamentares facilita o acesso. Esperava que, com o PT, as coisas fossem funcionar de outra maneira. Mas a forma como o Executivo tem tratado o assunto é totalmente convencional. Isso me decepciona um pouco."
Coordenador da bancada de Tocantins, o senador Eduardo Siqueira Campos (PSDB) diz que a "barganha" com Dirceu foi feita às claras. "Fomos lá e dissemos: não temos nenhum cargo para indicar. Então queremos cobrar atenção para com o Tocantins."
Louve-se a intenção de Lula de "ensinar este país a negociar". Espanta, porém, que recorra ao surrado currículo tradicional, de resultados conhecidos. O caso de Tocantins não é único. Reproduz-se em outros Estados.
No universo da ficção, o presidente ainda é apresentado como um sujeito realista, obrigado pelas circunstâncias a lidar com práticas viciadas. Adota meios sórdidos para alcançar fins nobres. No mundo real, manda-se às favas a última perspectiva de revisão dos métodos que conspurcam a política nacional. Uma pena.



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