São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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NO PLANALTO

Campanha presidencial vira disputa do nada contra o oco

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Numa disputa presidencial, elege-se quase sempre a melhor encenação, não o melhor presidente. Rondam-nos exemplos bem contemporâneos. Dependendo do Fernando que se escolha, pode-se oscilar da dramaturgia grega a Bertolt Brecht.
Com Collor, tivemos a tragédia. O personagem extraordinário no papel de ordinário. O absurdo levado longe demais. A moralidade que surrupiava a prataria do Palácio. A virtude que recebeu voz de prisão.
FHC trouxe-nos a sofisticação do teatro dialético. Tese e antítese de si mesmo, foi eleito sob o manto da social-democracia e patrocinou o descaso social. Reeleito em meio ao sonho do dólar a R$ 1,20, entregou estagnação e desemprego.
Programa de governo é mais efeito especial do que substância, eis o que se deseja realçar. O Brasil radicalmente novo do script eleitoral é intenção que os fatos terminam por conspurcar.
Talvez por isso os candidatos à cartada nacional de 2002 tenham decidido sonegar ao eleitor até mesmo o teatro de praxe. Postam-se na prateleira como compoteiras vazias. Falta-lhes o caldo doce que costuma encorpar os debates eleitorais.
Há certa fartura de nomes. Pelo menos quatro governistas: Roseana, Serra, Tasso e Paulo Renato. Três oposicionistas: Lula, Ciro e Itamar (despreze-se, por inconsistente, Garotinho). Levado ao liquidificador, porém, o discurso que os sete ostentam em público não enche uma xícara de idéias.
Decerto haverá quem argumente que é cedo. Tolice. As pesquisas estão aí a conferir existência a candidaturas de vento. Se o nada ficasse no seu lugar, quietinho, tudo bem. O diabo é que, eriçada pelos números, a bolha almoça com o oco, que articula com o vazio, que troca idéias com o ermo, que...
Assim, é natural que se queira saber, desde logo, o que há afinal (ou o que não há) por trás dos olhos azuis, por entre os fios de barba, debaixo do laquê, sob as calvas e o topete.
Estamos a menos de um ano da eleição. E uma empulhação nem sempre se revela no parto. O melhor é que venha à luz o quanto antes, para que a possamos observar por mais tempo.
O governismo perde-se em indecisão. Serra finge que ainda não é candidato. Tasso e Roseana alfinetam-no tricotando à luz do dia. Todos tramam a reedição de um consórcio político que proporcionou ao país, para além da festejada maioria parlamentar, jáderes e padilhas, escassez de luz e volatilidade econômica, juro lunar e dólar ao olho da cara.
A oposição desperdiça a sua hora. Envenenada pelo próprio rancor, mostrou-se incapaz de organizar a utopia do novo à volta de uma mesa. Descaracteriza-se esmolando segundos de TV nas franjas do velho. Ciro agarrou-se ao PTB de Roberto Jefferson. Lula cobiça o PL de Medeiros e da Igreja Universal. Itamar injeta bílis nas entranhas do PMDB de todos os pecados.
Entretidos com o confronto da CNN com a Al Jazeera, absorvidos pela batalha dos Tomahawks contra o antraz, nós, jornalistas brasileiros, assumimos gostosamente o papel de Carolina. Alçado à condição de plataforma de governo, o nada desfila solenemente diante de nossa janela e nós não o vemos.
Hipnotizados pelos problemas da América, negligenciamos o nosso "homework". Amanhã, talvez rezemos para que o novo presidente seja bom. Ou, por outra, talvez oremos para que seja uma lástima. Como se sabe, só a perversão escala a primeira página.
Reconheça-se, porque é de justiça, que Lula e o seu PT se esforçam para qualificar o debate. Na última semana, lançaram o cupom da fome. Uma espécie de programa do leite do Sarney com mais proteínas.
De resto, o petismo promete um tipo de felicidade que começa invariavelmente com não: não implantaremos o socialismo, não romperemos com o FMI, não decretaremos a moratória da dívida, não desrespeitaremos os contratos, não atearemos fogo ao campo, não jantaremos criancinhas...
Houve um tempo em que ninguém era de direita no Brasil. Hoje, ninguém quer ser de esquerda. A "social-democratização" do PT empurra-o pragmaticamente para o centrão. Tardio, o fenômeno chega no instante em que uma Miami em pânico, de olho em Bin Laden (o sapo barbudo do Oriente), já não serve de refúgio para os "800 mil" de Mário Amato. Roberto Campos há de ter descido à cova com um risinho sarcástico no canto da boca. O canto esquerdo.
Ciro Gomes também diz carregar consigo um feixe de propostas. Lançou algumas ao vento. Entre elas, a de negociar o alongamento do perfil da dívida interna. Chamaram-no de caloteiro. Planejava lançar um livro antes do final do ano, com reflexões sobre o Brasil. Desistiu. Hoje, divide suas idéias com auditórios seletos, em palestras remuneradas.
Antigamente era fácil. Os generais escolhiam entre eles quem seria o próximo presidente, e a arrogância do regime nos absolvia de nossas culpas. Democracia dá mais trabalho. A nossa, por sorte, está ficando grandinha. Talvez já tenha aprendido que salvadores da pátria costumam conduzir ao desastre. Sempre se pode optar pela conivência. Mas que não seja por desatenção. O passado nos espreita do futuro.


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