São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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ELIO GASPARI

A baixaria burra contra José Serra

Fazia tempo que não aparecia um festival de baixarias como as que desabaram na semana passada sobre o ministro da Saúde, José Serra, provável candidato à Presidência da República. Sob a aparência de brigas políticas, praticou-se um atentado à inteligência alheia. Os casos foram dois e vale recapitulá-los:
O documento de Paulinho
No início do mês, a Justiça provocou o reaparecimento das denúncias de Wagner Cinchetto contra seu ex-amigo, o deputado Luiz Antônio de Medeiros, pai da Força Sindical. Ele o acusa de ter arrecadado dinheiro junto ao bondoso empresariado paulista para fundar a central que veio a se contrapor à CUT. Informou que entre 1990 e 1994 esses capilés somaram o equivalente a US$ 5 milhões e pelo menos US$ 2 milhões foram embolsados. Uma parte foi depositada no Commercial Bank de Nova York. Também acusou o atual presidente da central, Paulo Pereira da Silva, o "Paulinho", de usar recursos do FAT para irrigar empresas de amigos, numa das quais é sócio.
Medeiros admitiu que a Força foi fundada com doações de empresas (o que já é muita coisa), mas se defendeu da acusação de ter desviado dinheiro. Chamou Cinchetto de chantagista. Deve-se lembrar que o denunciante foi condenado por crime de calúnia ao fazer acusações semelhantes, em 1994. O caso de Medeiros foi para a Corregedoria da Câmara dos Deputados, até que na segunda-feira Paulo Pereira da Silva disse que as denúncias partiam de uma orquestração montada por Serra para debilitar a Força Sindical. Seria uma armadilha para evitar que apoiasse a candidatura de Lula à Presidência.
Até aí nada demais. Cinchetto tem o direito de dizer o que quer, e Paulinho de dizer o que acha. A ofensa à inteligência alheia apareceu na terça-feira, quando o presidente da Força Sindical fez circular duas folhas de papel, sem autoria nem procedência, endereçadas a "meus amigos", descrevendo uma conspiração urdida por Serra. Tem de tudo e vale nada. Se papel sem procedência nem autoria pode ser chamado de "documento", escritura de imóvel passa a ser boato e atestado de óbito, mau agouro.
Beleza de caso: um ex-assessor da Força Sindical chama-a de "máfia" e um "documento" revela que isso é coisa de Serra.
As fitas do lobista
Em setembro chegou ao conhecimento de Serra que um veterano lobista de Brasília (Alexandre Paes dos Santos) acusava um funcionário do seu ministério de ter tentado extorquir dinheiro de um laboratório. O achaque teria sido gravado, e o lobista fez a denúncia a uma assessora do gabinete de Serra. Ele acionou o Ministério Público. A Polícia Federal entrou no caso. Com autorização judicial, capturou 19 fitas guardadas pelo lobista e nelas se pode ouvir o que conversava com clientes e jornalistas. Das fitas de que falara, nada.
Chamado a se explicar, Paes dos Santos informou o seguinte:
"O que eu disse é que ouvira falar em São Paulo que pessoas do ministério andavam pedindo dinheiro para liberar registro de medicamentos. Mas ouvi dizer, não tenho nomes, não tenho fitas".
Beleza, o doutor Alexandre ia andando por São Paulo (12 milhões de habitantes), ouviu dizer, não sabe quem disse e, ao chegar a Brasília, tinha uma denúncia acabada e gravada.
Serra, que chamou a polícia ao saber da história, torna-se prisioneiro do "ouvi dizer". Bem que o lobista brasiliense podia se juntar ao sindicalista de São Paulo, unificando suas duas histórias num só novo "documento". Pode-se dizer que coisas desse tipo são comuns às campanhas eleitorais. Nesse caso, vale recordar outra, de 1998:

Os papéis de Cayman
Em setembro daquele ano Serra recebeu cinco mensagens enviadas por chantagistas que diziam ter provas da existência de uma conta secreta do tucanato num banco do Caribe. Dinheiro dele, de FFHH, de Mário Covas e de Sérgio Motta. Coisa de US$ 386 milhões. O ministro encaminhou os papéis à Abin para que investigasse o caso. Dias depois, divulgou as mensagens que recebera.
Em poucos dias descobriu-se que por trás das mensagens havia um dossiê. Fora oferecido e refugado por Lula, Ciro Gomes e Leonel Brizola. Aceitara-o Paulo Maluf.
Esse episódio tornou-se um dos principais temas do debate político por mais de três meses e ainda há quem acredite na existência da conta. Pareceu simulação quando FFHH disse o seguinte: "Me dá tristeza ver que não haja um repúdio nacional contra essa falta de respeito à instituição da Presidência".
Passados quase três anos comprovou-se que o papelório era uma falsificação urdida por vigaristas brasileiros residentes em Miami e comprada por adversários políticos do governo.
O que há de penoso nesse episódio é que durante três anos circulou uma patranha cuja trama criminosa começou a ser conhecida em menos de uma semana. Conferindo:
A denúncia da chantagem foi publicada no dia 8 de novembro de 1998. No dia 10, o senador Djalma Falcão (PMDB-AL) mencionou o interesse de Fernando Collor na divulgação da existência da "conta secreta". Bingo. Em depoimento público, um dos vigaristas reconheceu ter intermediado a venda do dossiê a Leopoldo Collor, irmão do ex-presidente.
Menos de uma semana depois do estrondo, o pastor Caio Fábio admitiu que oferecera o dossiê a Ciro Gomes antes da eleição. Os chantagistas pediam US$ 1 milhão. Bingo. Dois dos vigaristas vieram a reconhecer que puseram o pastor no lance.
Passados dez dias do surgimento do caso, o repórter José Meirelles Passos identificou outro personagem da trama. Era Jamil Degan, um doleiro paranaense radicado em Miami. Bingo. Degan viria a reconhecer que tentou vender os papéis a Brizola, que não os aceitou.
Ainda em novembro apareceu o nome de um dos corretores da venda do dossiê. Seria Paulo Sérgio Rosa. Bingo. Chamado de "o rei da beirada" por um dos brasileiros que acompanharam a história, era o dono da conta onde se depositaram US$ 500 mil em pagamento por uma cópia do papelório.
Alguns dos vigaristas que montaram a patranha de Cayman estão presos no Estados Unidos por lavagem de dinheiro e conexões com o tráfico de drogas. Segundo Oscar de Barros, um dos envolvidos no caso, as 1.900 páginas do papelório custaram menos de US$ 1.000 e renderam cerca de US$ 4 milhões. Quem pagou fez papel de bobo. Quem acreditou nos documentos conhecidos também. Infelizmente, uma vigarice, cuja estrutura foi mostrada em menos de 20 dias, virou uma crise nacional e tisnou a imagem do governo.
No caso de Cayman, como agora, Serra foi vítima da propensão para a baixaria. Paulinho diz que o ministro da Saúde urdiu as denúncias contra Medeiros para debilitar a Força Sindical. Nem original é. Em novembro de 1998, quatro dias depois da denúncia da chantagem, Paulo Maluf disse que o aparecimento do seu nome no caso de Cayman era uma armadilha montada por Serra para debilitar o PPB.


Uma novidade inteligente: a revista "Inteligência"

Uma das melhores coisas em circulação pelo país é a revista "Inteligência". É inteligente de alto a baixo. Tanto pela lista de colaboradores como pelas idéias de cada um deles, é uma das poucas publicações nas quais a pluralidade de opiniões e de temas tornam impossível prever o que virá no artigo seguinte. Capa com quadro do grande pintor americano Edward Hopper não é para qualquer um.
Seu último número é um presente para a alma. A melhor peça é uma magnífica entrevista da professora Maria da Conceição Tavares com uma declaração de amor ao seu mestre Octávio Gouvea de Bulhões, ministro da Fazenda do governo Castello Branco. Ela foi sua assistente na Fundação Getúlio Vargas. Por suas idéias e por temperamento, formaram uma amizade tão improvável quanto uma dupla Bjork-João Gilberto. Conviveram de 1957 até a morte de Bulhões, em 1990.
Todas as entrevistas de Conceição são apaixonadas e vivas, mas essa é um exemplo de gratidão profissional rara no mundo acadêmico. Muito mais rara entre acadêmicos/economistas. Sobretudo acadêmicos/economistas que ficaram ricos. (Bulhões morreu pobre, sua viúva passou por dificuldades e o Congresso negou-lhe uma pensão.)
Das lembranças de Conceição emergiu uma observação feita por Bulhões nos seus últimos anos de vida. Referindo-se à política econômica do ocaso dos governos militares, disse: "Mas as coisas não concatenam. Falta oxigênio em Brasília". Bulhões não gostava de metáforas. Evitava ir a Brasília porque lá, de fato, há menos oxigênio do que no Rio.
Nesse mesmo número há mais quatro pérolas:
Vinte páginas de amor ao Rio, numa feliz associação de um texto do professor Carlos Lessa com fotografias de Marcelo Carnaval. O artigo tem um título brilhante para a cidade: "Promíscua e segregada". Carnaval mostra como ricos e pobres vivem o cotidiano, e Lessa informa: "O espetáculo carioca está fixado a partir de meados do século 19. Sua elite, sempre fascinada pela civilização de ponta, assume integralmente seus ornamentos. (...) Houve a dissolução do escravagismo, porém não se sucedeu no Rio a montagem do mercado de trabalho tipicamente capitalista".
Um pequeno conto do advogado Sérgio Bermudes com a história de Tito, um brasileiro que vivia em Londres e foi passar um mês (por mil libras) num castelo do Loire no qual vivia um casal de aristocratas franceses. Não se pode contar o fim da história, mas quem conhece Bermudes tem certeza de que se ele fosse Tito o conto não terminaria como termina.
Um artigo dos professores Fernando Limongi e Argelina Figueiredo desmontando (como fazem há tempo) os chavões derrogatórios do Congresso. Dessa vez demonstram que os parlamentares são responsáveis pela criação de um sistema responsável de discussão e votação do orçamento. É lenda a história segundo a qual eles se apropriam das verbas para irrigar interesses miúdos.
Um extenso e intrigante ensaio do jornalista José Carlos de Assis contrariando o uso abusivo das teorias conspirativas que acompanham a vida nacional: "A tendência de se ver conspiração em tudo é o produto, muitas vezes, de nossa rejeição a ver a realidade crua do jogo de poder que se desenrola claramente à nossa volta".
Serviço: A revista é trimestral e difícil de achar. Seu endereço eletrônico, onde estão todos os artigos mencionados, é www.insightnet.com.br/inteligencia


Semana de um dia

Pelo andar da carruagem, dentro de uns poucos anos o Congresso só vai funcionar a pleno vapor na tarde de quarta-feira.
Nos anos 80 ele trabalhava duro de terça a quinta. Nos 90, a faina encolheu. O trabalho começava na manhã de terça e terminava ao fim da tarde de quinta. As segundas e sextas nunca conseguiram se impor à rotina do andar de cima nas atividades públicas de Brasília.
Atualmente, reduziram-se as votações nominais da terça e praticamente se acabaram as de quinta, cuja sessão tornou-se matutina. Há parlamentares que marcam presença na tarde de terça, passam no Congresso na manhã de quinta e vão-se embora para seus Estados depois do almoço.
Conseguiram a semana de 48 horas e, se ninguém reclamar, acabam criando a de um só dia.


Há bons e maus ventos para o PT

Circula no andar de cima do governo um cartapácio de 600 páginas com uma pesquisa do Ibope. A pesquisa traz três notícias para o PT, duas boas e uma ruim.
A primeira boa: o percentual de entrevistados que poderia votar em Lula está em 65%. Isso significa que o receio de vê-lo na Presidência, com um governo petista, está próxima da irrelevância. De mais rejeitado, passou a menos rejeitado. Continua disparado na frente dos outros candidatos, com 41% das preferências.
A segunda: Hoje, candidato identificado com o governo não se elege.
A má notícia: Quando se pediu aos eleitores que listassem espontaneamente o que eles querem dos candidatos, apareceram em primeiro lugar, empatados, o combate à corrupção e à sonegação, bem como a qualidade do programa de governo (22%). Até aí tudo bem. Em seguida veio o desejo de mais iniciativas na área da educação (21%). Novamente, tudo bem.
Para surpresa geral, apareceu em quarto lugar o desejo de que o governo evite greves no serviço público (19%). Essa reação às greves foi colhida durante a paralisação dos servidores do INSS, o que pode datar a tendência. Mesmo assim, ela veio à frente do desejo dos entrevistados por uma equipe de governo competente (18%) e da sua capacidade de atrair investimentos ou de aumentar as exportações (17%). A modernidade tucana continua popular, em Nova York.


Um bom dinheiro

Falta só a assinatura do juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo para que o espólio de J.J. Abdalla (conhecido nos anos 70 como o "mau patrão") receba R$ 200 milhões por conta de um terreno pantanoso que o Estado lhe tomou em 1988. Pouco pode fazer a Justiça, pois o dinheiro já foi depositado pelo governo do Estado.
Coisas da vida. O terreno de Abdalla não valia nada, foi transformado num parque e acabou numa área ocupada por edifícios de luxo. Seu espólio teve o direito reconhecido, e os contribuintes ficarão com a conta.
Será o maior precatório pago pelo governo de São Paulo neste ano, comendo 25% do total de pagamentos. No andar de baixo, continuam na fila milhares de funcionários públicos a quem o Estado deve quantias muito menores.


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