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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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UM ANO DE LULA

Ministro diz que viveu seu "pior momento" no primeiro trimestre, mas presidente mandou manter o rumo

Lula bancou ajuste forte, afirma Palocci

VALDO CRUZ
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em entrevista à Folha, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, 43, defende a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Revela que foi Lula quem bancou o arrocho fiscal e monetário deste ano em detrimento de um "ajuste leve, por dois, três anos".
Conta que, já no governo, discutiu com o presidente mudar a política econômica. Na virada de novembro para dezembro de 2002, Palocci conversou com Lula sobre a opção de "ajuste leve", no qual "teria inflação certamente bem mais alta". Mas fez a ressalva de que preferia "um ajuste forte para abrir um período de crescimento". E avisou: "Isso vai custar a ser feito, não será fácil. Não dá para aumentar a carga tributária. Vamos ter que cortar na carne".
Lula bancou Palocci e voltou a fazê-lo em março deste ano, quando o ministro diz ter vivido seu "pior momento" nos três primeiros meses de governo. Apesar de ter tomado medidas duras, a inflação subiu. Então, disse a Lula: "Você tem de ter tranquilidade em relação ao que nós estamos fazendo. Se você não tiver, a gente explora outros caminhos". O presidente mandou manter o rumo.
Ao falar do temperamento conciliador, diz: "Fui trotskista, mas não fui radical. Sempre busquei posição de equilíbrio. Continuo sendo de esquerda". Palocci admite que pode ter cometido erros, mas diz que não é papel dele apontá-los, mas da imprensa e da oposição. "Não há crise sem custo em lugar nenhum do mundo." Ele prega a autonomia do Banco Central, dizendo que ela vai reduzir o custo da política monetária.
Palocci também confirma que há "diálogo" seu e de Lula com o Banco Central a respeito da política monetária, mas nega interferência na fixação da taxa de juros.
Com 1,81 m e 95 kg, o médico Palocci conta que perdeu 10 kg após fazer por três meses o polêmico regime à base de proteínas e gorduras. Confessa que sentiu "um pouco de fraqueza" no começo. "Mas a saúde está boa. Diminuí a pressão [arterial] em um ponto nesse ano. Ela caiu de 12 por 8 para 11 por 7."
O ministro revela um episódio ocorrido na transição com Pedro Malan, no gabinete do ministério. "Por favor, senta aqui", convidou Malan, oferecendo a cadeira destinada ao ministro. Palocci recusou: "De jeito nenhum". Quando viu que o petista não se sentaria, Malan disse: "Você sabia que tem gente que senta?" Rindo, Palocci disse: "Essa foi a primeira lição que aprendi com o Malan".
Palocci faz questão de dizer que não será candidato ao governo de São Paulo nem a deputado federal em 2006. "É incompatível gerir política econômica sendo candidato. Nós não podemos ter objetivos de popularidade", diz. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida na sexta:
 

Folha - Em 2004, devido às eleições, o calendário legislativo será bem curto. Haverá clima político para aprovar a autonomia do Banco Central no primeiro semestre?
Antonio Palocci Filho -
Antes de debater o projeto, é preciso um diálogo político com o país sobre isso. Ele permite um ganho maior na política monetária. Falamos em autonomia operacional, que é o governo definir as metas de inflação, e o Banco Central fazer a política monetária perseguindo essas metas.

Folha - Qual modelo, o norte-americano, com forte autonomia, ou inglês, mais brando?
Palocci -
Temos de construir um modelo brasileiro.

Folha - O mandato do presidente do BC deve coincidir com o do presidente da República?
Palocci -
Isso não é importante. Importante é que ter mandato.

Folha - O sr. já conversou com o presidente sobre isso? Dentro do governo está consolidada essa idéia de dar autonomia ao BC?
Palocci -
Conversei lá atrás, antes da posse. Neste ano conversamos pouco. É uma discussão que devemos fazer sem pressa.

Folha - Há informações de bastidores de que o sr. funciona como canal de transmissão para o presidente do BC, Henrique Meirelles, de uma avaliação política que o governo faz sobre a taxa de juros.
Palocci -
Não é bem isso. A política econômica é debatida frequentemente com o presidente. Ele quer ser permanentemente informado. Não sou canal de transmissão. O processo de condução de política monetária com viés político não ajuda. Mas permanentemente a Fazenda e o BC dialogam com o presidente sobre a política monetária.

Folha - A política econômica foi bem-sucedida no controle da inflação, na redução do risco-país e da vulnerabilidade externa. Mas, diante do custo disso, não há angústia no governo?
Palocci -
Não.

Folha - Houve erro de dosagem? O sr. foi ortodoxo demais?
Palocci -
Não houve erro. Posso ter cometido erros. Fiquem à vontade para debater. O papel de encontrar os erros não pode ser meu. É de vocês e da oposição. Admito que possa ter havido erro. Mas é preciso olhar em perspectiva. Doze meses atrás, olhando-se o Brasil 12 meses à frente, via-se uma fotografia bastante crítica em relação aos juros, à inflação, ao próprio crescimento. Hoje, 12 meses à frente, é outro país.
É melhor um esforço como esse, mais concentrado, e abrir um período de crescimento mais duradouro, do que fazer uma outra opção, com ajuste mais leve por um período maior. Essa opção eu coloquei para o presidente Lula antes da posse. Falei: "Olha, a situação é gravíssima, temos duas opções, entre várias, mas duas que me parecem dentro do nosso programa, dentro do nosso compromisso, dentro da Carta ao Povo Brasileiro. Uma opção é um ajuste forte para abrir um período de crescimento e isso vai custar a ser feito, não será fácil. Não dá para aumentar a carga tributária. Vamos ter que cortar na carne. A segunda opção é fazer um ajuste leve, por dois, três anos, impossível saber quanto tempo".
Mas o presidente fez a primeira opção e acho que fez certo. Eu disse a ele que preferia essa opção mais forte.

Folha - Aceitar um pouco de inflação foi opção?
Palocci -
Aceitar inflação eventualmente permitiria ganho de PIB. Mas no médio prazo a perda é certa.

Folha - Em que data o sr. apresentou essas opções ao Lula? Como foi essa conversa?
Palocci -
Na coordenação da transição, vim muito aqui nesta mesa [da sala de reuniões do gabinete do ministro da Fazenda]. No primeiro dia, o [ex-ministro Pedro] Malan falou: "Senta aqui nesta cadeira [a do ministro, que fica na cabeceira esquerda na mesa, vista pela porta de entrada da sala]". Eu disse "Nãããooo". "Senta, pô", ele disse. "Nãããooo", eu respondia. O Malan me ofereceu a cadeira várias vezes. "Por favor, senta aqui", ele dizia. E eu dizia: "De jeito nenhum". Acabei me sentando aí [aponta para a direita]. Então, ele se sentou na cadeira de frente para mim. Quando me sentei, ele falou: "Você sabia que tem gente que senta?" [Rindo] Essa foi a primeira lição que aprendi com o Malan.

Folha - Já no governo, como e quando foi a conversa que o sr. teve com o presidente na qual teria dito que poderia ser adotado outro caminho, suavizar o ajuste, diante das críticas que estava sofrendo?
Palocci -
No começo do ano, depois de anunciarmos algumas medidas, a inflação subiu. No segundo mês, depois de outras medidas, também. Então, lá por março, ainda não estavam se sentindo os efeitos da medida. Havia incerteza, começo da guerra do Iraque. Então, falei com o presidente duas ou três vezes: "Nossa vida não vai ser fácil, não. Você tem de ter tranquilidade em relação ao que nós estamos fazendo. Se você não tiver, a gente explora outros caminhos". Ele nunca disse para explorar...

Folha - Nunca houve um momento de dúvida?
Palocci -
Não. Ansiedade, sim. Dúvida, não.

Folha - Foi o seu pior momento?
Palocci -
Os três primeiros meses foram o pior momento.

Folha - O sr. concorda com a avaliação de seu secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, de que o governo atual deveria erguer uma estátua em homenagem a Malan e à equipe econômica de FHC?
Palocci -
[Rindo] Ele não falou exatamente isso. Ele fez uma série de críticas à política fiscal do passado, à âncora cambial, ao desajuste da dívida interna. Ao falar da negociação da dívida dos Estados e da Lei de Responsabilidade Fiscal, o assunto das artes plásticas foi trazido à tona. É uma opinião absolutamente tranquila.

Folha - O sr. concorda com ela?
Palocci -
Concordo que foi um aspecto positivo.

Folha - O sr. ilustraria esse aspecto do mesmo jeito que ele? O sr. ergueria uma estátua para o Malan?
Palocci -
Meu pai é escultor. Só falo disso no campo artístico.

Folha - Nos bastidores, o Planalto fica incomodado com as declarações do secretário do Tesouro, Joaquim Levy, e do secretário especial de Política Econômica, Marcos Lisboa. Como o sr. lida com isso?
Palocci -
Acontece. Não é possível dentro do governo ter perfeição. O mais importante é ter entendimento em relação à política.

Folha - O sr. os repreendeu? Eles ficaram mais calados.
Palocci -
Ficaram?

Folha - Ficaram.
Palocci -
[Rindo] Talvez porque eles tenham tido essa percepção que você também teve.

Folha - O sr. parece mineiro, ministro. Não se compromete.
Palocci -
Eu sou mineiro. [Rindo] Ribeirão Preto é ali, divisa com Minas.

Folha - Avalia-se que o crescimento em 2004 pode vir sem gerar empregos. Outro risco é uma crise externa devido a uma possível valorização do dólar se houver alta dos juros americanos. Como conciliar crescimento, geração de emprego e a preparação para uma eventual turbulência?
Palocci -
Bater escanteio, correr até a área, cabecear e fazer o gol.

Folha - Essa é a grande crítica à política econômica de FHC e a deste governo. Ela obriga a bater escanteio, correr até a área, cabecear e marcar o gol.
Palocci -
Não é fato que o crescimento vai demorar para gerar empregos. Está aumentando o consumo via crédito. Está aumentando a atividade industrial. Está começando a haver uma reação da massa salarial. O que vem em sequência é aumento do consumo em geral, aumento da atividade industrial. É um processo. Ao longo desse ano, a economia brasileira gerou 1 milhão de empregos.

Folha - Mas um total de 1,5 milhão de pessoas passou a buscar emprego.
Palocci -
Sem crescimento, gerou-se 1 milhão de empregos. Com o crescimento previsto para o ano que vem, vai haver geração de emprego. O que não vai haver é imediatamente solução da questão do emprego.

Folha - Vai ser difícil cumprir a promessa de criar 10 milhões de empregos em quatro anos.
Palocci -
Eu escrevi o programa de governo. Não havia uma promessa, mas uma afirmação de que o Brasil necessita de 10 milhões de empregos. Nenhum país do mundo zera o desemprego.

Folha - No balanço, o governo jogou novamente a culpa pelo arrocho deste ano na herança de FHC. O sr. não acha que parte dessa herança ou do desequilíbrio macroeconômico do final do ano passado se deveu à suspeita sobre a capacidade do PT de governar o Brasil? Parte da culpa não era mesmo do medo do PT?
Palocci -
O PT gerou dúvidas até o momento em que apresentou compromissos e programa. Até esse momento, podia-se dizer que o PT não tinha esclarecido ao país a sua política. A partir do momento em que apresentou programa de governo consistente e a Carta ao Povo Brasileiro, só não acreditou quem não quis.

Folha - Há ministros que culpam a pasta da Fazenda pelo desempenho fraco, devido à falta de verba.
Palocci -
Respeito a opinião de quem pensa assim. Mas não havia recursos mesmo. Foi a crise que limitou os recursos. Mas se não fizéssemos isso agora, os ministros teriam restrição durante o governo todo. Eu disse isso a eles.

Folha - O presidente Lula vive dizendo que quatro anos é pouco tempo para implantar um plano de governo. O sr. defende que o Lula seja candidato à reeleição em 2006?
Palocci -
Eu acho muito cedo para falar sobre isso. Mas não vejo por que não. É uma visão pessoal dele. Mas acho que o presidente Lula faria bem ao país com um mandato renovado. Acredito muito no presidente Lula, principalmente nessa fase em que vamos entrar, porque o Brasil precisa pactuar crescimento econômico, distribuição de renda.

Folha - O presidente Lula tem elogiado o seu trabalho. Sabemos que sua origem é trotskista e agora está numa outra posição, moderada.
Palocci -
Olha, eu fui trotskista, mas não fui radical. Eu sempre busquei posição de equilíbrio. Agora, de fato, eu não vou negar, eu fui trotskista e depois mudei de posição. Mas continuo sendo de esquerda. A experiência na administração ajuda, afinal ela dá a verdadeira dimensão entre o que você quer e o que você pode.

Folha - Por que o caso Santo André é um tabu para o governo?
Palocci -
Não é assunto do governo.

Folha - Mas envolve pessoas ligadas ao PT, algumas inclusive que trabalham no governo federal hoje e que trabalhavam para o prefeito Celso Daniel.
Palocci -
Não há nenhuma pessoa condenada. Não cabe ao governo Lula se posicionar sobre esse processo. Não só a esse, a qualquer processo judicial.

Folha - E as informações de que em Santo André haveria um esquema para recolher dinheiro para campanhas do PT?
Palocci -
Isso são suposições colocadas, misturas de assunto. A postura deve ser muito clara. Há um trabalho da Justiça sendo feito. Que seja feito com transparência. O governo não tem nada que se posicionar sobre um trabalho da Justiça.


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