São Paulo, quarta, 22 de abril de 1998

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ELIO GASPARI
O general sabe o que quer

Uma das melhores coisas que aconteceu em Brasília nos últimos tempos foi a passagem serena do general americano Barry McCaffrey pelos corredores da burocracia militar, policial e diplomática. Ele dirige o escritório de Política Nacional para o Controle de Drogas, vinculado à Casa Branca.
Tinha tudo para dar confusão, visto que trouxe na bagagem o costumeiro talão de cheques e a velha proposta de internacionalização do combate às drogas. Trouxe também a velha simpatia americana pela relativa militarização dessas operações policiais.
Os americanos sonham com uma grande queimada nas plantações de cocaína da América do Sul. Suas forças armadas sonham com a reciclagem de seus ferros aeronavais, transformando-os em instituições internacionais de vigilância sanitária. Vale lembrar que em 1990 o presidente George Bush estava estudando um plano de militarização do combate ao tráfico de drogas na Colômbia quando Saddam Hussein teve uma idéia (tomar o Kuait) e deu-lhe outra (destroçar o Iraque).
A idéia da internacionalização e de grandes investimentos para o combate às drogas, assim como no combate à varíola, é uma daquelas propostas que parecem livres de controvérsia. São simples e cheias de boas intenções. No caso da varíola, infelizmente, isso não aconteceu. Uma proposta de vacinação global, feita pela Organização Mundial da Saúde, foi recusada em 1953 por todas as nações industrializadas, inclusive os Estados Unidos. Apresentada de novo 13 anos depois, pelo brasileiro Marcolino Candau, a proposta teve nova oposição e acabou aprovada por uma diferença de dois votos. Tratava-se de votar um orçamento de US$ 2,4 milhões de dólares. Se hoje não há mais varíola no mundo (doença que matou 300 milhões de pessoas neste século), isso se deveu a um esforço internacional alavancado pelos países do andar de baixo.
Toda a vez que se pronuncia a palavra internacionalização (ou seu derivativo recente, a globalização), o que está em jogo é uma questão de poder. Não passa pela cabeça do prefeito Rudolph Giuliani entregar à PM de Santa Catarina o policiamento do Bronx, mas é provável que ele não se incomode com o desembarque de uma tropa americana no mato amazônico.
Desde o século 18, quando Thomas Jefferson achou boa idéia ajudar os mineiros que tramavam contra Portugal porque poderiam comprar peixe seco da Nova Inglaterra, os Estados Unidos sempre souberam defender seus interesses no Brasil. Em 1964 o presidente Lyndon Johnson mandou uma frota para as proximidades do litoral brasileiro para dar mais uma mãozinha à rebelião contra o governo João Goulart. A polícia americana entraria tão fundo no porão onde se torturavam presos políticos que um major brasileiro a tocou para fora de seu calabouço. Mudaram os tempos e o presidente Jimmy Carter, com sua política de defesa dos direitos humanos, associou o governo de seu país à causa da redemocratização brasileira. Nenhum americano fez isso por simpatia, mas pela percepção permanente do que vinha a ser o interesse nacional dos Estados Unidos.
O governo americano dá uma relativa prioridade à internacionalização do combate ao tráfico de drogas, com um dos seus generais comandando o serviço. Num raciocínio bem mais tênue e longínquo, os americanos (como os ciclistas belgas e os matemáticos irlandeses) acreditam que uma eventual malversação dos recursos naturais da Amazônia são primeiro um problema internacional, depois uma questão brasileira. Nos dois casos fazem isso porque, historicamente, o governo brasileiro se deixa pegar no papel de vilão. Quer por ineficaz no combate ao tráfico, quer por sonolento no combate a um incêndio em Roraima.
Esses temas vieram para ficar, e não há razão para que a sociedade brasileira fique no papel de incapaz. Basta uma pequena quantidade de dinheiro e uma grande quantidade de trabalho para que o governo brasileiro possa montar equipes capazes de obter recursos internacionais para combater a droga e os desastres ambientais. Há diplomatas, militares e funcionários competentes para fazê-lo, sem qualquer necessidade de adesão a um novo foro de decisões multilaterais.
O que não há é interesse em meter a mão na massa do subdesenvolvimento. Preservando-se uma diplomacia de parolagem e conceitos militares anacrônicos, mantém-se a impressão de que um pedaço do Brasil é igual aos Estados Unidos (ou vai ser). Quanto ao outro, não é de bom tom falar disso. (Retirante da seca saqueando cidades e uma epidemia de dengue são produto de situações climáticas. A seca acaba depois da chuva e o dengue dorme no inverno.)



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