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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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Ex-secretário diz que déficit "desvia" verba de área social

DA REPORTAGEM LOCAL

Muito bem, a seguridade social é superavitária, confirma o consultor Marcelo Estevão, mas ao incluir as contas desequilibradas do funcionalismo público no pacote, comete-se a injustiça de drenar para a Previdência dos servidores recursos que deviam servir para combater a exclusão social.
O ex-secretário de Previdência do Ministério da Previdência e Assistência Social (de 94, ainda no governo Itamar Franco, até 99, sob FHC) afirma que a idéia original, segundo a lei que regulamentou a seguridade social, era que o governo gradualmente retirasse os servidores públicos da conta.
Estevão diz que os princípios gerais da reforma do governo estão corretos. Há, a seu ver, anomalias no atual sistema inconcebíveis em qualquer outro país.
Afirma, no entanto, que a ausência de regras de transição pune de maneira excessiva a atual geração de servidores -a primeira verdadeiramente profissional no serviço público. (RC)
 

Folha - Por que falar em déficit da Previdência quando a seguridade social é superavitária?
Marcelo Estevão -
É preciso analisar esse argumento da seguridade social com certo cuidado. No conceito original, ela não deveria arcar com nenhuma das responsabilidades chamadas encargos previdenciários da União. A própria lei que regulamentou o custeio da seguridade social, a lei 8212, de 91, dispunha que o governo reduziria progressivamente a parte do recurso da seguridade social que usava para pagar os encargos previdenciários da União, até que essa contribuição cessasse. O fato é que o governo, não tendo como financiar esses encargos com recursos do Orçamento fiscal, posteriormente alterou a lei no sentido de acabar com qualquer tipo de limitação.

Folha - Quando foi a alteração?
Estevão -
Em 1995, por meio de medida provisória. A Previdência do servidor avançou sobre recursos que deviam ser utilizados para financiar o combate à exclusão e desigualdade social. Mas tudo foi feito legalmente.

Folha - De onde viria o fundo específico para cobrir as aposentadorias dos servidores?
Estevão -
Não tem como levantar recursos que não venham dos orçamentos já estabelecidos. O orçamento fiscal é apertado. O orçamento da seguridade social tem fontes de financiamento exclusivas da União, e foi aí que a União encontrou a solução para suprir a insuficiência do orçamento.
Uma parte do problema do servidor se originou no fato de que a Constituição previu a criação do Regime Jurídico Único. Esse regime foi instituído em 1990, transformando todos os servidores em um regime estatutário. Os servidores que até então eram regidos pela CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] e estavam vinculados ao INSS, passaram a ser regidos pelo regime. Houve uma irresponsabilidade muito grande. A isso se somou o fato de que havia represamento de aposentadorias, porque as pessoas tinham a expectativa de entrar nesse regime único. O segundo aspecto é que, enquanto você tinha inflação elevada, o Estado conseguia gerar superávit. Quando você passa para um regime monetário estável, a verdade das coisas se manifesta. Desde 95, começamos a observar o problema nas contas públicas.

Folha - Como se tratava de uma situação circunstancial a tendência não é que isso volte a se equilibrar?
Estevão -
Acho difícil. Você tem desequilíbrios, a conta não fecha. Não existe nenhum país do mundo, nem países mais ricos, que possa aposentar servidores com condições tão generosas. Um sistema desse, com as regras hoje vigentes, essas regras não seriam sustentáveis atuarialmente no tempo. Não dá para termos regras de Previdência para o funcionalismo mais generosas que as aplicadas no padrão mundial. É como se fôssemos pobres querendo comer caviar, enquanto os ricos estão comendo arroz com feijão.
Não significa que o governo esteja estritamente correto no projeto que apresentou. Em alguns aspectos, ele errou a mão.

Folha - No quê?
Estevão -
Errou não nos princípios gerais, que estão certíssimos. As pessoas têm que se aposentar mais tarde, a questão do benefício integral tem que ser revista e mesmo a paridade entre ativos e inativos é questionável se você não tem a contribuição do inativo. Mas quando você vai fazer uma mudança, é muito importante que tenha a idéia de graduá-la, de modo a não sacrificar em demasiado nenhuma geração específica. Para as pessoas que já estão aposentadas ou que podem se aposentar, nada muda, a não ser que haverá uma contribuição dos inativos. Essa medida, embora tenha gerado polêmica, não tem nada de draconiana. Mesmo com a sua adoção, as pessoas ainda vão ter uma promoção em termos de renda líquida na aposentadoria.
Nenhum país do mundo assegura um rendimento líquido na aposentadoria superior ao último rendimento líquido na atividade. Isso é uma maluquice, anomalia tipicamente brasileira.

Folha - O sr. vê outros problemas?
Estevão -
O grande problema da reforma é que ela está punindo demasiadamente a atual geração de servidores. O que é ruim, porque a atual geração é a primeira profissionalizada da história recente do país. Um contingente que ingressou no serviço público submetido a critérios de mérito.

Folha - Que consequências isso pode ter? Corrida à aposentadoria?
Estevão -
Não. Quem já pode se aposentar está com seu direito assegurado. O problema maior é que a conta para a geração que está em processo de aquisição de direitos está muito salgada. Alternativas poderiam ser buscadas. Do que tenho medo? Toda vez que se adotou medidas draconianas no que diz respeito a reforma, a emenda acabou sendo pior que o soneto. O Judiciário poderá tombar boa parte das medidas se elas não se pautarem pelo princípio da razoabilidade. Nisso é que acho que o governo errou a mão.



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