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BIBLIOTECA FOLHA
"História do Cerco de Lisboa" conta como um revisor tentou mudar o passado de Portugal com um simples "não"
Romance de Saramago é o próximo título
SUSANI SILVEIRA LEMOS FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O escritor português José Saramago é hoje, a despeito de uma
certa "rabugice" que demonstra
com gosto tanto nas suas atuações
públicas quanto nos seus romances, senão o mais notável, por certo o mais notado dos escritores de
língua portuguesa. A começar pela condição de único entre os autores dessa língua a ter recebido o
Prêmio Nobel de Literatura.
Autor de mais de 15 livros, Saramago parece, contudo, como os
grandes escritores, movido por
um propósito quase invariável: o
de interromper o ciclo irrefletido
das verdades estabelecidas pelo
uso.
Tal proposta literária, quase
sempre relacionada com o posicionamento político de esquerda
abertamente assumido por ele,
tem-lhe valido acusações de dogmatismo e até maniqueísmo, mas
sem comprometer o reconhecimento da sua criatividade para
encontrar soluções ficcionais que
desnaturalizem as tais "verdades"
convencionadas.
A história dos grandes homens
e acontecimentos tem sido um
dos alvos privilegiados desse autor que, valendo-se do potencial
da ficção, em vários romances, especialmente em "História do Cerco de Lisboa", se dispõe a lançar
luz sobre supostos aspectos esquecidos pelos historiadores e,
consequentemente, pelos seus leitores.
No romance que o fez célebre,
por exemplo, o "Memorial do
Convento", Saramago ocupa-se
em desviar o foco da monumentalidade que caracteriza o convento de Mafra, orgulho da nação
portuguesa, para as ambições megalomaníacas do rei que o mandou construir e para o sacrifício
daqueles que tiveram de trabalhar
para concretizar seu projeto.
Já naquele que é um dos seus livros mais polêmicos, o "Evangelho Segundo Jesus Cristo", um
dos dogmas fundadores do cristianismo, o heroísmo de Cristo, é
sugerido como involuntário, na
medida em que o enviado pela
providência para se sacrificar pela
humanidade pondera o custo e o
benefício do seu sacrifício.
É, porém, no romance "História
do Cerco de Lisboa", ora publicado pela Biblioteca Folha, que se
torna mais evidente não só o empenho de Saramago em desmontar a história estabelecida em busca de aspectos apagados ou desprezados, mas também em pôr
em causa a propalada identificação entre história e verdade.
Neste livro, o ato deliberado de
um revisor do século 20 para alterar uma história sobre o século 12
que lhe coube rever abre espaço
para uma reflexão sobre os limites
e as especificidades da escrita da
história, principalmente sobre o
seu poder de consolidar certas
"verdades".
A problemática vem à tona
quando o pacato Raimundo Silva,
relendo partes de um texto que revisava sobre o famoso cerco de
Lisboa, ocorrido em 1147, decide
cometer uma transgressão. Raimundo introduz um "não" numa
frase afirmativa, negando assim o
auxílio dos cruzados a d. Afonso
Henriques, o primeiro rei português, na sua conquista de Lisboa,
há muito ocupada pelos mouros.
A idéia da transgressão nasce
quando esse revisor começa a
questionar se o discurso atribuído
ao fundador do reino de Portugal,
por um historiador também do
século 20, não seria demasiadamente elaborado para a boca daquele "rei, sem prendas, ele, de
clérigo".
A inversão promovida por Raimundo, embora inconsequente e
de efeitos facilmente reparáveis
por uma errata, abre espaço no
romance para questionamentos
que chegam até aos cronistas medievais que primeiramente registraram a história do cerco. E,
mais, ela coloca a nu o forte elo
entre a história e a ficção, ambas
sujeitas às vicissitudes da escrita.
Tal dessacralização da história,
não bastasse, vem ainda acompanhada da dessacralização de personagens feitos por ela heróis, como o próprio rei Afonso
Henriques e o "milagreiro" cavaleiro Henrique, agora revelados
em sua falibilidade humana.
Saramago, entretanto, como escritor de não pouca monta, ao refletir sobre a espinhosa questão
das aproximações entre a história
e a ficção, deixa de lado as respostas e prefere conduzir o leitor pelo
fértil caminho das indagações.
Susani Silveira Lemos França é doutora em cultura portuguesa pela Universidade de Lisboa e professora visitante do
Programa de Pós-Graduação em História
da Unesp-Franca.
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