São Paulo, terça-feira, 22 de outubro de 2002

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Impostos pagam a conta dos juros para mais ricos


Carga tributária paga pela sociedade subiu de 24,4% do PIB em 1991 para 27,9% em 1994 e para 34,36% no ano passado; dívida pública federal interna aumentou de R$ 61 bilhões em junho de 1994 para R$ 653,7 bilhões em junho deste ano


ÉRICA FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

A política fiscal da era FHC contribuiu para a concentração de renda. O aumento da carga tributária nos últimos oito anos, que afetou indiscriminadamente todos os brasileiros, serviu principalmente para o pagamento de juros da dívida pública. A maior parte da população, no entanto, ficou de fora da ciranda de ganhos proporcionados pelos mesmos juros, porque não teve renda para aplicar em títulos públicos. Entre os que conseguiram investir, os ganhos não foram distribuídos igualmente: os bancos lucraram bem mais do que a classe média.
Uma das principais mudanças trazidas pela estabilização da economia, a partir de 1994, ocorreu nos mecanismos de financiamento do governo federal. Antes, o governo obtinha recursos principalmente por meio da emissão de moeda, o que gerava inflação. Com a estabilidade, o governo passou a se endividar, emitindo títulos no mercado financeiro.
Isso levou a uma explosão da dívida pública federal interna, que saltou de R$ 61 bilhões em junho de 1994 para R$ 653,7 bilhões em junho passado. Esse aumento se deveu, em grande parte, às altas taxas de juros praticadas pelo governo no período, que corrigem uma fatia importante da dívida.
Para honrar o pagamento de um montante cada vez maior de juros dos títulos que foram vencendo, o governo, que não conseguiu cortar substancialmente suas despesas, teve de aumentar receitas. Isso foi conseguido graças à elevação da carga tributária, que era de 24,4% do PIB (Produto Interno Bruto) em 1991, saltou para 27,9% em 1994 e atingiu 34,36% no ano passado.
Eduardo Nunes, coordenador do Departamento de Contas Nacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), explica que, nos últimos anos, as receitas do governo têm sido suficientes para cobrir seus gastos, como o pagamento de salários, de aposentadorias e outras despesas administrativas. Essa é a conta do resultado primário, da qual são excluídos apenas os gastos com o pagamento dos juros. Mas justamente quando a despesa com os juros é levada em conta, o superávit primário do governo se transforma em déficit nominal. "Para cobrir o déficit nominal, o governo tem aumentado a arrecadação", diz Nunes.
Para Antoninho Trevisan, vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências Contábeis e sócio da consultoria Trevisan, a arrecadação fiscal foi a "verdadeira âncora do Plano Real". "Foi a crescente arrecadação de impostos que garantiu solvência ao país, permitindo que o governo honrasse o pagamento dos juros", diz o especialista.
Trevisan lembra que o governo conseguiu aumentar a carga tributária principalmente por meio da criação de impostos indiretos sobre a produção, o consumo e as aplicações financeiras.
"O problema é que esses impostos são cobrados igualmente de todos, independentemente da renda de cada um", afirma.
Se muitos brasileiros, ao pagar impostos nos últimos oito anos, ajudaram o governo a se financiar, poucos conseguiram lucrar diretamente às custas do endividamento público, comprando títulos emitidos pelo governo e embolsando os altos ganhos proporcionados pelos altos juros que remuneram esses papéis.
Marcelo D'Agosto, sócio da InvestMate, consultoria de investimentos pessoais, diz que, por isso, os gastos do governo com juros que remuneram os investimentos em títulos públicos são concentradores de renda.
"Esses gastos concentram renda porque beneficiam apenas quem detém capital para investir." Para pequenos e médios investidores, a principal forma de acesso a títulos públicos são os fundos de investimento. É o caso dos populares fundos DI e de renda fixa, que têm mais de 90% de seu patrimônio investido em títulos públicos.
Mas até os mais acessíveis desses fundos, aqueles destinados a pequenos aplicadores, são inacessíveis para a maior parte da população brasileira que não tem renda suficiente para investir.
Segundo cálculo feito pelo Dieese, o salário mínimo necessário para garantir atualmente a uma família (pai, mãe e dois filhos) acesso a itens de necessidade básica -alimentação, moradia, saúde, transporte, vestuário, lazer e previdência -é de R$ 1.247,97. Para ter capacidade de investir, portanto, uma família teria de ganhar acima disso.
No entanto a realidade da maior parte das famílias brasileiras está muito distante desse cenário ideal. Dados da última Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizada em 2001 pelo IBGE, mostram que cerca de 65% das famílias brasileiras têm rendimento mensal médio entre menos de um e cinco salários mínimos. Em outras palavras, ganham, no máximo, R$ 1.000. Outras 3,78% nem sequer têm algum rendimento.
Ou seja, se não ganham o suficiente para cobrir os gastos com suas necessidades básicas, dificilmente essas famílias terão poupança para investir em fundos de renda fixa.
Segundo D'Agosto, os fundos de varejo, voltados para os investidores com menor poder aquisitivo, costumam exigir aplicação mínima de R$ 100. Já para comprar títulos públicos vendidos pelo Tesouro diretamente para pessoas físicas, o investidor precisa desembolsar, no mínimo, R$ 200.
"Por trás do mecanismo da dívida pública, existe um efeito perverso de redistribuição de renda, em que muitos usam parte de seus salários para pagar mais impostos para o governo, que usa os recursos arrecadados para pagar mais juros para um número relativamente pequeno de investidores", diz o economista Fernando Cardim, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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