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CELSO FURTADO - O LEGADO
Um apaixonado pela razão
JOSÉ SERRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Início de 1963, aeroporto de
Congonhas, São Paulo, porta de
desembarque, sábado ensolarado. Lá estava eu aguardando a
chegada de um Convair da Ponte
Aérea que trazia o então ministro
do Planejamento, Celso Furtado,
para levá-lo a um debate sobre o
Plano Trienal, preparado por ele
mesmo para João Goulart, cujo
governo saíra fortalecido depois
da recente vitória do presidencialismo contra o sistema parlamentarista, num plebiscito.
Eu tinha 20 anos e presidia a
União Estadual dos Estudantes,
que, junto com a UNE, organizara
o seminário. Celso chegou sozinho, elogiou a iniciativa do debate
e propôs tomarmos um café, antes de seguirmos para a Cidade
Universitária. Por seus livros e,
principalmente, pela Operação
Nordeste e criação da Sudene, para nós ele já era um mito e foi uma
surpresa constatar que era um homem simples, cordial e discreto.
Na mesa, o debatedor principal
era Mário Alves, baiano da geração do ministro e dirigente nacional do Partido Comunista Brasileiro. O Plano Trienal pretendia,
de fato, combater a inflação, naquela altura superior a 50% ao
ano, promover reformas no setor
público e oferecer um caminho
para que a economia brasileira retomasse o dinamismo da segunda
metade da década anterior. Previa
deter o galope inflacionário combatendo o déficit público, controlando a expansão monetária, melhorando a oferta agrícola, atenuando o desequilíbrio externo e
freando a espiral preços-salários.
A esquerda criticava não os objetivos, mas os instrumentos e a
consistência do próprio plano,
que, embora defendesse a reforma agrária, não previa a ampliação da participação do Estado na
economia nem maiores restrições
ao capital estrangeiro, considerados por ela como fatores chave de
qualquer estratégia econômica
nacional bem-sucedida.
Para os padrões atuais, o debate
foi civilizadíssimo. Mário Alves,
que poucos anos depois morreria
assassinado sob tortura nos porões da ditadura, falou de forma
crítica mas bem-educada, e as
perguntas e comentários do público seguiram a mesma linha. As
pessoas, principalmente estudantes, estavam a fim de se informar,
de aprender. Celso fez uma exposição clara, com domínio de conceitos e perspectiva histórica, rebateu de forma suave as críticas,
esclareceu dúvidas e respondeu
com clareza e elegância a todas as
questões. Um poço de racionalidade. Ganhou o debate e mesmo
aqueles que não se convenceram
de suas teses devem ter saído de lá
desejando que sua razão fosse a
verdadeira. A maioria, estivesse
ou não fora da realidade, não
apostava no quanto pior melhor.
Naquela tarde, assistindo ao debate (e até falando, imaginem!),
decidi que, depois de concluir
meu curso de engenharia, iria estudar economia. Ficara fascinado
pelo duelo entre Mário e Celso, e,
mais ainda, com a complexidade
da economia e dos problemas
econômicos do país, cuja compreensão pareceu-me essencial
para a construção do Brasil que
ambiciosamente sonhávamos.
No bojo da instabilidade política e sob o impacto da aceleração
da inflação, que já estava em andamento, as diretrizes do Plano
Trienal mal saíram do papel. No
segundo semestre daquele ano,
Celso já havia voltado para a Sudene. Em abril do ano seguinte,
rumava para o exterior, depois do
golpe militar que cassou seus direitos políticos e vitimou a democracia brasileira do pós-guerra.
Já nos primeiros meses angustiados do exílio, inicialmente na
França, debrucei-me sobre três livros do ex-ministro brasileiro:
"Formação Econômica do Brasil", "Desenvolvimento e Subdesenvolvimento" (um conjunto de
ensaios que, para mim, são o melhor livro de Celso Furtado) e "A
Pré-Revolução Brasileira".
Ele combinava os instrumentos
da melhor análise econômica
cambridgeana, o conhecimento
histórico, o domínio e a confiança
na razão como elemento mobilizador e transformador das sociedades. Um estilo seco, objetivo,
sem qualquer grandiloqüência.
Nenhum intelectual exerceu
tanta influência entre nós quanto
Celso Furtado, e nenhum brasileiro foi tão reconhecido, ouvido e
publicado no exterior como ele,
com sua obsessão pela compreensão histórico-estrutural do processo de subdesenvolvimento e
das condições complexas para superá-lo. Um dos fundadores da
"escola" estruturalista latino-americana, ele foi seu mais profícuo formulador.
Com Celso, aliás, vai o último
grande personagem dessa escola,
que firmou o que há de identidade latino-americana na segunda
metade do século passado: Raul
Prebisch, Jorge Ahumada, Juan
Loyola e o grande Aníbal Pinto.
Como disse ontem seu principal
auxiliar na Sudene, Francisco de
Oliveira, "poucos cientistas sociais podem se orgulhar de terem
visto suas idéias transformarem-se em força social e política; a obra
de Furtado passou por essa dura
prova da história. Contra ou a favor, ela exige que se tome posição
a seu respeito".
Uma obra cuja valorização é extremamente oportuna quando
nosso país vai completando um
quarto de século de semi-estagnação econômica, a pior fase desde o
ultimo terço do século 19 -e,
mais ainda, quando a falta de um
projeto nacional de desenvolvimento chega a ser apreciada pelo
pensamento dominante como
virtude nacional. Como se as
grandes questões do país pudessem ser resolvidas pela combinação de "inativismo" estatal, sinalizações amigas ao mercado e assistencialismo, estigmatizando-se o
debate sobre políticas macroeconômicas alternativas.
A última vez que encontrei Celso Furtado foi em abril último, no
seu pequeno apartamento em Paris, que visitei em companhia dos
jornalistas Reale Júnior e Mario
Sergio Conti. Sua lucidez estava
intacta, ao contrário de suas condições físicas. Entre outros temas,
numa conversa despretensiosa,
ele falou de sua formação, da figura de seu pai. Mas começou esclarecendo-me que a poltrona de
couro já havia sido aposentada,
houvera poucas semanas.
Explico: quando houve o golpe
no Chile, em 1973, antes de ser
preso, eu havia enviado móveis e
livros para a França, para onde
iria com minha família, convidado para trabalhar em universidade. Depois da prisão e de uma
longa reclusão numa embaixada,
mudei os planos. Uma vez na Europa, visitei-o em Paris, onde ele
morava, e depois em Cambridge,
na Inglaterra, onde passou um
tempo como professor visitante.
Hospedou-me alguns dias em sua
casa. Numa conversa descontraída, eu lamentei: "Se for mesmo
para os Estados Unidos (como
veio a acontecer), vou acabar perdendo meus móveis. Você não
quer guardar, e usar, uma poltrona de couro nova, que eu gosto
tanto e mal cheguei a usar?" Ele
topou e, no final, é obvio, eu nunca quis a poltrona de volta, a mesma que durante 30 anos foi usada
por ele, Rosa e suas visitas, para
minha enorme satisfação.
José Serra, 62, é prefeito eleito de São
Paulo e presidente nacional do PSDB
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