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ARQUIVOS DO NAZISTA
Carta a nazista, parte do arquivo obtido pela Folha, revela relação dele com austríaco que cedeu documentos para o fugitivo viver no Brasil
Doente, Mengele tentou volta à Europa em 74
ANA FLOR
ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Após viver 26 anos longe da Europa, 14 deles no Brasil, o médico
nazista Josef Mengele quase retornou para a Áustria em 1974. A
tentativa de voltar para perto da
família e de seu país -não concretizada e que fez o médico ficar
no Brasil até sua morte por afogamento, em 1979- pode ser percebida nas cartas recebidas por
Mengele e que foram apreendidas
entre os 85 documentos esquecidos na sede da Superintendência
da Polícia Federal em São Paulo.
Os documentos, cuja existência
foi revelada ontem pela Folha,
mostram detalhes inéditos sobre
Mengele, chefe do serviço médico
do campo de concentração de
Auschwitz (Polônia) de 1943 a
1945. No campo, Mengele usou
prisioneiros como cobaias em experimentos pseudo-centíficos.
A maior parte das mais de 20
cartas escritas a Mengele apreendidas pela PF são do amigo Wolfgang Gerhard, cujo nome Mengele usava no Brasil. Austríaco, Gerhard esteve nos quadros do partido nazista. Nunca foi um fugitivo
de guerra, mas decidiu morar no
Brasil após a Segunda Guerra
Mundial por não concordar com
a política imposta pelos aliados.
Em uma carta de quatro páginas escrita em novembro de 1974,
Gerhard, que havia voltado para a
Áustria em 1971, aconselhava
Mengele a fazer o mesmo o quanto antes, "antes que esteja muito
velho para a viagem". O amigo dizia ainda que, na Europa, Mengele poderia se tratar e ser operado.
Segundo biografia publicada
em 1986, Mengele ficou doente
em 1972. Por causa da tensão de
estar em constante fuga, ele desenvolveu o hábito de morder a
ponta do seu bigode. O costume
fez com que uma bola de cabelo
obstruísse seu intestino, que lhe
causava grande dor. Mengele chegou a procurar um hospital no
Brasil, apesar do risco.
Na carta, Gerhard relatava ainda com detalhes a doença da mulher, Ruth, que sofria de câncer.
Escreve sobre dificuldades financeiras e de uma viagem de tratamento feita a Beirute (Líbano).
A longa explanação sobre a falta
de dinheiro parece ser uma forma
de explicar ao amigo no Brasil a
razão da impossibilidade de lhe
enviar dinheiro. Nesta época, segundo cartas enviadas por Mengele, o médico já vivia uma difícil
situação financeira.
Gerhard conheceu Mengele no
Brasil. Antes de voltar para a Europa, deixou com o nazista seus
documentos de identificação.
Mais tarde, teria voltado ao Brasil
para renovar os documentos.
Gerhard chegava a dizer a Mengele que a ida para a Áustria não
era tão difícil como poderia imaginar, e que insistia na idéia porque "jamais daria um conselho
que prejudicasse o amigo".
Gerhard quase sempre começava suas cartas referindo-se ao médico como "Lieber Alter" (querido velho), expressão que mostra a
proximidade dos dois.
Dos quatro laudos produzidos
pela polícia na época, o de número 09516 assinala a análise dos registros manuscritos e mecanografados encontrados entre os pertences de Mengele. Na página 35,
está a confirmação da autoria das
cartas que o nazista recebeu do
amigo Wolfgang Gerhard.
O laudo informa que "a identificação [dos escritos encontrados
entre os pertences de Mengele] se
deu graças aos exames preliminares realizados entre as assinaturas
constantes nos documentos (carteira de identidade para estrangeiro, carteira profissional e carteira Nacional de Habilitação)
apreendidos, em nome de Wolfgang Gerhard, adulterados quanto às fotografias neles constantes,
que serão objeto de laudo próprio, e aquelas lançadas nos documentos (missivas) com os números 16, 23 e 28, possibilitando, assim, a individualização gráfica do
punho de Wolfgang Gerhard
também para os documentos
com os números 15, 17 a 22, 24 a
27, 29 e 30, bem como lançamentos manuscritos apostos nos documentos mecanografados de
número 40".
Vida abastada
Durante quase toda a vida,
Mengele viveu longe de apertos financeiros. Seu pai, Karl, era dono
de uma empresa de equipamentos agrícolas. Quando, em 1948,
Mengele decidiu sair da Alemanha, foi seu pai quem teve a idéia
mandá-lo para a Argentina.
Com bons contatos no país sul-americano, Karl viu a possibilidade de Mengele ser seu representante nos negócios, o que deu ao
nazista uma vida confortável para
um fugitivo. Anos depois, no Paraguai, Menguele já não dispunha
de recursos como antes. Sua situação tornou-se crítica no Brasil,
por volta de 1974, quando precisou vender o apartamento que tinha em São Paulo -e cujo aluguel era vital- para comprar documentos falsificados.
A partir da mesma época, as
quantias que precisava pagar pelo
silêncio de quem conhecia sua
verdadeira identidade passaram a
ficar mais pesadas. Anotações de
1976 em excertos de um diário
manuscrito mostram que Mengele passou por momentos em que
faltou dinheiro para pagar a gasolina necessária para uma viagem
de carro ao Rio de Janeiro.
Sua volta para a Europa, em
uma provável tentativa de se esconder com Gerhard na Áustria,
era ainda mais difícil. Além dos
documentos falsificados de maneira bastante imperfeita, havia a
falta de dinheiro para a viagem.
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