São Paulo, Quarta-feira, 22 de Dezembro de 1999


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ELIO GASPARI
Cuidado com as vivandeiras

Que há uma crise militar na Aeronáutica, isso só os avestruzes não vêem. Aqui não será dita uma só palavra a respeito dessa controvérsia. Aliás, o propósito deste artigo é sustentar a tese segundo a qual assim como os militares não devem falar de assuntos políticos, os civis não devem se meter em encrencas militares. Isso é coisa de vivandeira.
Essa expressão foi trazida ao vocabulário político brasileiro pelo marechal Humberto Castello Branco, em agosto de 1964, no auditório da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Reclamando dos civis que chamavam seu governo de militarista, disse o seguinte:
"Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar".
As vivandeiras sumiram da política nacional em 1985, quando o último dos generais-presidentes deixou o palácio pela porta dos fundos. É compreensível que, passados 14 anos, surjam cócegas. Quem sabe, um dia...
Nunca é demais lembrar o que acontece às vivandeiras. Percorrendo o passado recente, por ordem cronológica, sucede-lhes o seguinte:
1) João Goulart. Empossado na Presidência da República em 1961, a despeito da oposição dos três ministros militares, meteu-se a montar um dispositivo nos quartéis. Acreditava que se o Congresso não lhe desse as reformas que pedia, poderia valer-se da tropa fiel e emparedá-lo. Acabou no Uruguai.
Voltou morto ao Brasil, em 1976. O carro que trouxe seu caixão teve que atravessar um pedaço do Rio Grande do Sul em alta velocidade, sem qualquer parada, até São Borja, onde está sepultado.
2) Carlos Lacerda. Foi a maior vivandeira da história republicana. Boliu com os granadeiros em 1954 e abriu uma crise que acabou no suicídio de Getúlio Vargas. Aliou-se à extravagância de 1964 achando que ela o levaria à Presidência da República. Acabou preso, em 1968, num jirau do quartel da PM do Estácio. Isso noves fora a denúncia de que o oficial que lhe organizara a resistência no Palácio Guanabara, em março de 1964, planejava matá-lo em setembro de 1968.
Esses dois casos podem levar à impressão, falsa, de que são as vivandeiras quem provocam as extravagâncias do poder militar. Esse foi o erro do marechal Castello Branco. Vacilou na hora de baixar o chanfalho nos vivandados.
São vivandandos os granadeiros que saem à procura das buliçosas vivandeiras.
Enquanto lhe conveio, o marechal Costa e Silva usou os políticos para chegar à Presidência da República. Uma vez lá, por inepto, fechou o Congresso e jogou o país numa ditadura. (Isso fazendo-se de conta que o consulado de Castello não era ditadura.) O vivandado passou a perna nas vivandeiras.
Vivandaram o empresariado, a banca e todas as instituições sindicais do patronato. Repetindo: todas. Sabiam perfeitamente que havia centrais de torturas nos quartéis. Financiaram-nas com caraminguás. Quando veio a conta do porão, cadê a plutocracia? Conhecem-se nomes de oficiais que se meteram em torturas, mas não se conheceu um só empresário que os estimulasse. (As montadoras do ABC paulista, por exemplo, trocavam listas negras de trabalhadores com o aparelho de repressão política.)
As vivandeiras passaram a perna nos vivandados. Deixaram a conta da repressão política nas costas dos militares e foram tomar champanhe com a turma da Nova República.
Acredita-se que houve uma rebelião de empresários contra a ditadura. Lorota.
A primeira manifestação do grande empresariado em defesa da democracia é de junho de 1978. O general Sylvio Frota, ministro do Exército, fora demitido em outubro do ano anterior. Os estudantes tinham ido para a rua em março de 1977. O comandante do 2º Exército, general Ednardo D'Avilla Mello, fora exonerado em janeiro de 1976, depois da morte do operário Manuel Fiel Filho.
Arrombaram uma porta aberta. Levaram mais de quatro anos para entender que o presidente Ernesto Geisel pretendia acabar com a anarquia instalada nos bivaques.
Vivandeiras e vivandados são vírus mutantes de uma mesma praga. Deve-se aos presidente civis, de José Sarney a FHH, a condução dos negócios do Estado sem recursos a esse tipo de malandragem política. Não é necessário que esse avanço da democracia brasileira seja ameaçado.
Vive-se muito bem numa situação como a que ocorreu numa conversa do general Geisel com um curioso. Ele lhe perguntou quem era o novo general promovido à quarta estrela. (Chamava-se Jorge Sá Freire de Pinho.) O presidente respondeu:
- É um grande oficial e a maior prova disso está no fato de você não saber quem ele é.


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