São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2000


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ELIO GASPARI
A mobília ortopédica do faraó

Pode parecer implicância, mas, enquanto um presidente não mandar pintar de preto a parede de espelhos dourados da entrada do Palácio da Alvorada, os monarcas de Pindorama padecerão de uma incontrolável tendência ao desparafusamento de suas cabeças.
É o seguinte: o presidente acorda, veste a roupa e vai para o Planalto. Lá, o destino o obriga a uma audiência com o ministro Rafael Greca. Depois, a uma reunião com artistas arrebanhados pelo ministro Francisco Weffort. Salvo a astúcia de não assinar nada durante a audiência com Greca e o cuidado de não acreditar nos elogios que lhe faz Weffort, seu pensamento poderá vagar livremente, pois sabe que está perdendo seu tempo. Na hora do almoço, sentindo-se inútil, ele volta para o Alvorada. Pára o carro, desce e se vê refletido naquela parede de ouro. É uma visão capaz de transformar um mendigo no barão de Charlus. Se a parede fosse negra, o monarca veria a sombra de quem saiu de casa para se encontrar com Greca e a banda de Weffort, programa capaz de transformar Charlus num mendigo.
Se a parede fosse negra, FFHH haveria de ver o que realmente está virando: um adversário do salário mínimo de R$ 180.
Pior: haveria de lembrar o desembaraço com que alterna duas personalidades, a de faraó e a de contador de padaria.
No sábado, falando sobre a necessidade de dinheiro para a construção do rodoanel de São Paulo, ele disse que, se faltarem recursos, "eu os dou". Eu quem, divino faraó? Quem dá dinheiro para rodoanel, Proer e publicidade oficial é a patuléia. Vossa divindade apenas o gasta.
Em seguida, falando sobre o salário mínimo, disse que isso não era com ele, pois cabia ao ministro da Previdência resolver o problema de caixa que tal aumento provocaria. Falso. É com ele mesmo. O ministro da Previdência é o encarregado de cuidar da caixa dos aposentados. Quem pediu para ser reeleito foi o monarca.
Quando FFH se comporta alternadamente como faraó e contador de padaria, é provável que o problema esteja na sua própria personalidade. Ele acha que é os dois, que é um ou outro e, quem é, não sabe.
É falta de educação falar da casa alheia, mas, quem já viu o seu apartamento, garante que FFH sempre viveu num ambiente de bom gosto pessoal. Estilo limpo, típico do refinamento sua geração, com algumas gravuras das confeiteiras do MAM, estantes simples, umas poucas cerâmicas, coisas de índio (toc, toc), muita luz e sentadas macias.
Pois o mesmo cidadão contempla os móveis que ele acabou de comprar para o Alvorada e não acredita no que vê. Cadeiras Barcelona de entrada de agência de publicidade que não tem diretor de criação. (São lindas e confortáveis, sobretudo para mutilados de guerra que deixaram os braços nos campos de batalha, pois, para quem os têm, não há onde colocá-los.) Mesas de centro de salão de cabeleireiro que não aceita cartão de crédito.
Um sofá de psicanalista que cobra hora de 35 minutos, cujo conforto para quem está sentado é inferior ao de um camburão. (Camburão tem encosto, o sofá real não tem.) Essa peça é uma maca forrada de couro preto, com uma almofada cilíndrica na cabeceira. A menos que nela se recline Paolina Bonaparte, só serve para guerra de travesseiros.
Velharia, sem vestígio da criatividade nacional. (Vale lembrar que os desenhistas de móveis brasileiros, na média, têm sido muito mais competentes que os presidentes da República.)
Teria feito tudo melhor se mandasse estofar os sofás rasgados. Daria serviço a trabalhadores brasileiros, em vez de comprar patíbulos de napa. Se o presidente americano levar semelhante brechó para a Casa Branca, será infernizado por mau gosto, perdularismo e macaquice.
FFH já sentou nas pequenas poltronas do salão oval da Casa Branca. Sabe que são confortáveis. (Sabe também que o banheiro do presidente Clinton é menor que o seu.) Já usou a mobília de Camp David. Sabe que lá os móveis são mais parecidos com os de sua casa de Ibiúna do que com as vitrines que atraem milionários mexicanos e árabes na Madison Avenue.
Sabendo disso tudo, deixou que meia dúzia de cortesãos comprassem para o Alvorada peças de museu de ortopedia retrô. Fez isso por causa do espelho dourado. É ele quem desparafusa as personalidades.
O contador de padaria deixa que lhe comprem móveis de faraó porque acha que é os dois, que é um ou outro e, quem é, não sabe.
O mesmo contador de padaria lançou-se com a pompa do faraó contra o salário mínimo de R$ 180. Disso resulta apenas um simulacro. Seu governo ornamenta-se com o estilo que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss percebeu na arquitetura de pomposa indigência da São Paulo dos anos 30:
"Uma sensação de irrealidade, como se tudo aquilo não fosse uma cidade, mas um simulacro de construções edificadas às pressas para atender a uma filmagem cinematográfica ou a uma representação teatral."
Se alguém pintar de preto os espelhos da entrada do Alvorada, resolverá um grande problema de FFH. Ele deixará de se ver como um governante estrangeiro chegando à casa do presidente brasileiro. No dia seguinte, sancionará o salário mínimo de R$ 180.


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