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ELIO GASPARI
A mobília ortopédica do faraó
Pode parecer implicância, mas,
enquanto um presidente não
mandar pintar de preto a parede
de espelhos dourados da entrada
do Palácio da Alvorada, os monarcas de Pindorama padecerão
de uma incontrolável tendência
ao desparafusamento de suas cabeças.
É o seguinte: o presidente acorda, veste a roupa e vai para o Planalto. Lá, o destino o obriga a
uma audiência com o ministro
Rafael Greca. Depois, a uma reunião com artistas arrebanhados
pelo ministro Francisco Weffort.
Salvo a astúcia de não assinar nada durante a audiência com Greca e o cuidado de não acreditar
nos elogios que lhe faz Weffort,
seu pensamento poderá vagar livremente, pois sabe que está perdendo seu tempo. Na hora do almoço, sentindo-se inútil, ele volta
para o Alvorada. Pára o carro,
desce e se vê refletido naquela parede de ouro. É uma visão capaz
de transformar um mendigo no
barão de Charlus. Se a parede fosse negra, o monarca veria a sombra de quem saiu de casa para se
encontrar com Greca e a banda
de Weffort, programa capaz de
transformar Charlus num mendigo.
Se a parede fosse negra, FFHH
haveria de ver o que realmente está virando: um adversário do salário mínimo de R$ 180.
Pior: haveria de lembrar o desembaraço com que alterna duas
personalidades, a de faraó e a de
contador de padaria.
No sábado, falando sobre a necessidade de dinheiro para a
construção do rodoanel de São
Paulo, ele disse que, se faltarem
recursos, "eu os dou". Eu quem,
divino faraó? Quem dá dinheiro
para rodoanel, Proer e publicidade oficial é a patuléia. Vossa divindade apenas o gasta.
Em seguida, falando sobre o salário mínimo, disse que isso não
era com ele, pois cabia ao ministro da Previdência resolver o problema de caixa que tal aumento
provocaria. Falso. É com ele mesmo. O ministro da Previdência é o
encarregado de cuidar da caixa
dos aposentados. Quem pediu para ser reeleito foi o monarca.
Quando FFH se comporta alternadamente como faraó e contador de padaria, é provável que o
problema esteja na sua própria
personalidade. Ele acha que é os
dois, que é um ou outro e, quem é,
não sabe.
É falta de educação falar da casa alheia, mas, quem já viu o seu
apartamento, garante que FFH
sempre viveu num ambiente de
bom gosto pessoal. Estilo limpo,
típico do refinamento sua geração, com algumas gravuras das
confeiteiras do MAM, estantes
simples, umas poucas cerâmicas,
coisas de índio (toc, toc), muita
luz e sentadas macias.
Pois o mesmo cidadão contempla os móveis que ele acabou de
comprar para o Alvorada e não
acredita no que vê. Cadeiras Barcelona de entrada de agência de
publicidade que não tem diretor
de criação. (São lindas e confortáveis, sobretudo para mutilados de
guerra que deixaram os braços
nos campos de batalha, pois, para
quem os têm, não há onde colocá-los.) Mesas de centro de salão de
cabeleireiro que não aceita cartão
de crédito.
Um sofá de psicanalista que cobra hora de 35 minutos, cujo conforto para quem está sentado é
inferior ao de um camburão.
(Camburão tem encosto, o sofá
real não tem.) Essa peça é uma
maca forrada de couro preto, com
uma almofada cilíndrica na cabeceira. A menos que nela se recline Paolina Bonaparte, só serve
para guerra de travesseiros.
Velharia, sem vestígio da criatividade nacional. (Vale lembrar
que os desenhistas de móveis brasileiros, na média, têm sido muito
mais competentes que os presidentes da República.)
Teria feito tudo melhor se mandasse estofar os sofás rasgados.
Daria serviço a trabalhadores
brasileiros, em vez de comprar
patíbulos de napa. Se o presidente
americano levar semelhante brechó para a Casa Branca, será infernizado por mau gosto, perdularismo e macaquice.
FFH já sentou nas pequenas
poltronas do salão oval da Casa
Branca. Sabe que são confortáveis. (Sabe também que o banheiro do presidente Clinton é menor
que o seu.) Já usou a mobília de
Camp David. Sabe que lá os móveis são mais parecidos com os de
sua casa de Ibiúna do que com as
vitrines que atraem milionários
mexicanos e árabes na Madison
Avenue.
Sabendo disso tudo, deixou que
meia dúzia de cortesãos comprassem para o Alvorada peças de
museu de ortopedia retrô. Fez isso
por causa do espelho dourado. É
ele quem desparafusa as personalidades.
O contador de padaria deixa
que lhe comprem móveis de faraó
porque acha que é os dois, que é
um ou outro e, quem é, não sabe.
O mesmo contador de padaria
lançou-se com a pompa do faraó
contra o salário mínimo de R$
180. Disso resulta apenas um simulacro. Seu governo ornamenta-se com o estilo que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss
percebeu na arquitetura de pomposa indigência da São Paulo dos
anos 30:
"Uma sensação de irrealidade,
como se tudo aquilo não fosse
uma cidade, mas um simulacro
de construções edificadas às pressas para atender a uma filmagem
cinematográfica ou a uma representação teatral."
Se alguém pintar de preto os espelhos da entrada do Alvorada,
resolverá um grande problema de
FFH. Ele deixará de se ver como
um governante estrangeiro chegando à casa do presidente brasileiro. No dia seguinte, sancionará
o salário mínimo de R$ 180.
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