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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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ELIO GASPARI

A privataria explodiu e querem culpar o Lula

"É necessário, senhor presidente, republicanizar a República." Essa frase não é de Babá, o perigoso petista que assusta o Planalto. Ela foi dita pelo pai da privataria brasileira, o ministro da Fazenda Joaquim Murtinho, em 1897.
Murtinho estatizou as ferrovias deixadas pelo Império, pagou bom dinheiro aos concessionários e depois privatizou-as, em alguns casos para os mesmos afortunados.
Lula precisa republicanizar a República porque está dura a vida da pobre senhora. Dolarizaram-lhe as tarifas e terceirizaram-lhe a fiscalização. Privatizaram-lhe o patrimônio e estatizaram-lhe o desemprego e a violência.
Credor virou pedinte, caloteiro é investidor. O doutor Pio Borges, ex-presidente do BNDES, figura fácil nas fotografias em que o tucanato batia martelos nos leilões do patrimônio da Viúva, é hoje consultor e defensor público da AES, dona da Eletropaulo. Em 1998, como presidente do banco, emprestou R$ 1 bilhão à empresa. Agora, como sábio, defende os interesses da companhia, que caloteou US$ 85 milhões.
O atual presidente do BNDES, Carlos Lessa, diz que a AES praticou uma gestão temerária na Eletropaulo. Borges responde: "Idiotice". Supremo elogio a Lessa. Por idiota chama de temerário um administrador que não paga o que deve. O doutor Pio, que nada tem de idiota, emprestou o dinheiro do andar de baixo às terças e quintas e defende as rolagens das dívidas do andar de cima às segundas e quartas.
Se a Eletropaulo estivesse nas mãos de um empresário brasileiro, não haveria dúvida, o BNDES seria acusado de hospitalizar maganos ineptos, apadrinhados por políticos corruptos e burocratas corporativistas. Como o calote tem sotaque inglês, idiota é quem reclama.
A privataria tucana está se dissolvendo em fraudes, degradação de serviços, grampos e calotes. Algumas privatizações vão bem, obrigado. Outras desandaram. No caso da Eletropaulo, deve-se lembrar que ela não era nenhuma maravilha quando estava na mão do Estado. Em 1995 devia US$ 5 bilhões.
As empresas que arremataram o patrimônio da companheira Viúva sempre são rápidas para lembrar ao governo que os contratos devem ser respeitados. Tudo bem. Quando veio a hora de as ferrovias honrarem as metas contratadas, babau. Com algumas rodovias, a mesma coisa. Quando chega a hora de as empresas pagarem o que devem ao BNDES, rola-se.
O embuste do tucanato esteve em vender o patrimônio nacional dizendo o seguinte à patuléia:
-Os compradores trarão investimentos.
Em muitos casos, isso não sucedeu. A Eletropaulo, por exemplo, pegou US$ 1,2 bilhão no velho e bom BNDES. A Telemar pegou outro bom bocado e as ferrovias, o que puderam.
-O dinheiro da privatização será usado para abater a dívida.
Pena. Graças à competência da ekipekonômica, a dívida dobrou.
-A gestão privada melhorará o serviço.
Isso aconteceu na telefonia, mas não se deu com as distribuidoras de energia. Há poucas semanas a Eletropaulo deixou um pedaço de São Paulo sem luz por cinco horas. Houve um dia do ano passado em que o teleatendimento da empresa registrou a incrível marca de 0,06% de resposta aos consumidores. Um pedaço da malha da rede ferroviária foi comprado pelo Noel Group, empresa americana jejuna em transportes, mas com interesses no fabrico de pipoca caramelada e barbantes coloridos.
Infelizmente a ruína da privataria coincide com o aparecimento de uma nova modalidade de petista, o peteca. É aquele que, bem empurrado, vai para qualquer lado. Há petecas em Brasília com medo dos concessionários que ameaçam devolver as empresas ao governo. O peteca tem medo do seu próprio estratagema. É um personagem perigoso, de duplo risco. Primeiro pelo que pensa e não diz. Depois, pelo que diz, mas não pensa.
Proposta: "É necessário, senhor presidente, republicanizar a República".

Mr. Silva e o companheiro Fischer

Desde a terça-feira, quando se encontraram em Brasília, há dois novos amigos de infância no mundo do papelório: Lula e Stanley Fischer, ex-vice-diretor do FMI, atual vice-presidente do Citibank.
Fischer pode ter se enganado quando propôs a dolarização da economia brasileira, durante a crise cambial de 1999, mas acertou quando se recusou a falar mal de Lula, dizendo o seguinte:
"O que importa são o mercado e as políticas adotadas, e não o nome do candidato".
Fischer ficou frio quando o atual presidente disse, num seminário na Universidade de Oxford, que faltava a Fernando Henrique Cardoso "autoridade moral para governar", pois estava "totalmente perdido", submetido ao FMI.
Lula propunha "um debate nacional com economistas de diferentes matizes, menos o FMI Äesse não conhece o problema social, não está preocupado com a fome e a misériaÄ, para discutir o caráter do Estado, a quem ele deve servir".
Passou o tempo, e agora é a autoridade moral de Lula que está no pano verde, recebendo dos adversários um tratamento que não deu aos presidentes a quem fez oposição.

Boa notícia

Durante quase 20 anos o governo estimulou, por palavras e atos, o aumento do mercado informal de trabalho. Felizmente, entre 1991 e 2001, cresceu o número de trabalhadores brasileiros sindicalizados. Pindorama foi um dos poucos países onde se deu esse fato. Metade dos brasileiros não tem carteira assinada, mas, na metade que a tem, o número de sindicalizados cresceu 22%. Infelizmente, a taxa de trabalhadores urbanos sindicalizados caiu. Não tem nada a ver uma coisa com outra, mas as coisas melhoram quando se sabe que está aumentando o número de mulheres nas diretorias dos sindicatos.

Saudades tucanas

Vivendo o fim do doce exílio francês, Fernando Henrique Cardoso listou as saudades pessoais que deixou em Brasília. São as seguintes:
1) O Palácio da Alvorada. (Ele foi o primeiro presidente a gostar do caixote de vidro e lambris.)
2) A piscina do palácio. (Ela livrou-o de uma velha dor nas costas.)
3) O cinema do palácio. (A sala do Alvorada funciona como o velho Cineac Trianon: o espetáculo começa quando você chega.) 4) O helicóptero da Presidência. (A maior sensação de poder que a Presidência dava ao professor Cardoso era o prazer de descer de um avião em Cumbica, tomar o helicóptero e pousar no gramado do estádio do Pacaembu, iluminado para a chegada da imperial aeronave.)

ENTREVISTA

Marco Antônio Meyer

(59 anos, editor. Ex-militante do Colina, preso em 1969, testemunhou a famosa aula de tortura do "tenente Ailton" na Vila Militar, no Rio de Janeiro. Foi banido em 1970 e regressou ao Brasil em 1979. Signatário do processo 46.010.001769/95, no qual requer uma pensão pelos males que a ditadura lhe fez.)

-O senhor viveu como refugiado na Suécia e daqui a seis anos terá direito a requerer uma aposentadoria ao governo sueco. Em compensação, o seu direito ainda não foi reconhecido no Brasil. O que há de errado com as aposentadorias das vítimas da ditadura?
-Desordem, ganância e privilégios. Eu acho que essas aposentadorias deveriam ter um limite. É inconcebível que num país com tantos pobres uma pessoa receba uma aposentadoria de R$ 10 mil mensais. Ou que outra seja aposentada pela universidade onde lecionou, pela Câmara dos Deputados e pela anistia. Eu acho errado o presidente acumular seu salário com os R$ 2.900 de sua aposentadoria como anistiado. Minha mãe, viúva de comerciante, recebia R$ 112 mensais. Essas pensões deveriam ter um teto. Digamos R$ 2.500. As indenizações já têm. Teve gente que deu o dinheiro para a Pastoral da Criança. Proponho o teto e o desestímulo à cumulatividade.
O governo deve atender primeiro a quem precisa mais, quem reivindica quantias pequenas, coisa de menos de R$ 1.000 mensais. Teve gente que passou à frente na fila e gente, como eu, que foi apenada bobamente. Eu era microempresário quando fui preso. Tinha sido bancário. Fui tesoureiro de banco e participei de três assaltos a agências, coisas da militância. Negaram-me a aposentadoria porque, como microempresário, não teria direito. Sou uma pessoa que a ditadura prendeu e baniu, como ao ministro José Dirceu, cujo processo já tramitou.
-O que o Planalto poderia fazer para resolver esses casos?
-Antes vamos deixar uma coisa clara: Fernando Henrique Cardoso deixou uma bomba de efeito retardado. Entre 2001 e 2002 os tucanos julgaram 453 processos. Nos últimos dois meses de governo, aprovaram 2.285 casos. Fizeram barretada com o chapéu petista. Tem gente pedindo indenização de R$ 1,5 milhão. Tem gente pedindo aposentadoria de acordo com uma projeção do que seria sua carreira. Eu era tesoureiro do Bamerindus. Faz sentido querer me aposentar como diretor do HSBC? Fiz papéis radicais na vida, mas nunca fiz papéis ridículos. Há centenas de pobres trabalhadores que foram perseguidos e ainda não conseguiram receber seus direitos porque não conseguem advogados. Não têm um bom lobby. É essa gente que deve ser atendida.
-Como é a sua pensão sueca?
-Quando fui banido, deixaram-me na Argélia. De lá fui para a Suécia. Foram para lá, como refugiados, uns 200 brasileiros, inclusive o Fernando Gabeira, que nas férias era motorneiro de metrô em Estocolmo. Alguns já eram idosos. A esses, uns dez ou 20, o governo deu uma pensão. Na época era de US$ 850 dólares. Eu casei com uma sueca e meu filho nasceu na Suécia. Quando eu completar 65 anos, poderei requerer uma pensão.
Ela deve estar em torno dos US$ 200. Eu poderia ter a cidadania sueca e, com isso, uma pensão cinco vezes maior. Parece generosidade do Estado, mas não é. Lá ninguém se aposenta com 40 anos nem com US$ 10 mil por mês. Essas coisas só acontecem no Brasil.


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