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QUESTÃO AGRÁRIA
O "kit massacre"
PLINIO ARRUDA SAMPAIO
ESPECIAL PARA FOLHA
O governo federal criou, anos
atrás, um "kit" de providências
destinadas a administrar as crises
provocadas por massacres de posseiros, sem-terra, seringueiros e
indígenas -ocorrências freqüentes nos "grotões" do país. O "kit
massacre" inclui: declarações indignadas do presidente e seus ministros; presença dos ministros da
área no local do incidente (se possível acompanhando o enterro);
promessa de punição "implacável" aos criminosos; prisão de três
ou quatro suspeitos (logo soltos
por falta de provas); e anúncio de
"factóides" destinados a dar à opinião pública a impressão de que o
governo está agindo energicamente.
A vida média de um "kit massacre" é de 15 a 20 dias. Depois disso,
a matéria sai das páginas nobres
dos grandes jornais e, em conseqüência, o "kit" é engavetado até o
massacre seguinte. O governo Lula herdou essa metodologia e a está aplicando à risca.
O "kit" da irmã Dorothy, por
exemplo, já está quase completo.
Já teve declarações pungentes, viagem de ministros, semblantes de
circunstância, prisão de suspeitos.
Nesta semana surgiu o "pacote de
factóides".
A "pièce de force" do "pacote" é
a criação de cinco reservas florestais na região amazônica, abrangendo uma área de cerca de 8 milhões de km2, uma extensão comparável à área agrícola do Chile!
Por que se trata de um factóide?
Porque não há qualquer condição de impedir a invasão dessas
reservas sem que, ao mesmo tempo, se desenvolva um efetivo processo de reforma agrária. Isoladas,
elas serão invadidas pelos mesmos
grileiros e madeireiros que assassinaram a irmã Dorothy. Basta
lembrar que reserva 25 vezes menor -a do Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo- foi
reduzida a menos de 10% de sua
área original em poucos anos.
Quem é ingênuo a ponto de
acreditar que o governo federal vai
fiscalizar área tão grande, sabendo-se que, em junho do ano passado, irmã Dorothy pedia em carta
ao ministro da Justiça o envio de
R$ 1.000 (isso mesmo: mil reais!) à
Polícia Federal para comprar óleo
diesel, a fim de que o veículo da
delegacia de Anapu pudesse ir
atrás dos pistoleiros?
A opinião pública precisa saber
que esses factóides não passam de
cortina de fumaça para esconder
falta de coragem das mais altas autoridades da República em tomar
as providências que podem, de fato, evitar massacres de pessoas no
meio rural.
Há menos de dois meses, quando pistoleiros mataram cinco trabalhadores rurais sem terra em
Felisburgo (MG), uma comissão
reunindo OAB, CNBB, ABI, CPT,
Abra e dezenas de outras entidades realizou uma "romaria cívica"
pelos gabinetes dessas altas autoridades, pedindo, a cada uma delas,
apenas uma providência -e uma
providência de sua exclusiva competência.
Ao presidente Lula, que não recebeu a comissão, entregou-se um
documento pedindo a publicação
de um decreto com atualização
dos índices técnicos de aferição da
produtividade dos imóveis rurais.
Os índices vigentes são de 1975, e é
óbvio que desde então a produtividade média dos imóveis rurais
aumentou substancialmente. A
atualização foi feita, separadamente, por equipes da Unicamp e
da Embrapa, que chegaram a cifras coincidentes. Só falta publicar
o decreto, e isso depende unicamente do presidente da República. Se for publicado, agilizará a desapropriação de terras.
Ao senador José Sarney e ao deputado João Paulo, então presidentes do Senado e da Câmara dos
Deputados, pediu-se a aceleração
dos trâmites de um projeto de lei
que determina a imissão imediata
do Incra na posse dos imóveis desapropriados, resolvendo-se, pela
via da compensação financeira,
eventuais reclamações dos interessados. Não há outra maneira de
evitar que milhares de famílias fiquem acampadas durante meses e
até anos em terras ocupadas ou
nas margens de estradas, à mercê
das agressões dos jagunços.
Ao ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal, que também não recebeu a
comissão, solicitou-se algo ainda
mais simples: reunir os presidentes de Tribunais de Justiça estaduais e federais, para sugerir
meios de acelerar as ações de terras.
Nenhuma das autoridades visitadas dignou-se sequer a dar uma
resposta às entidades que os procuraram, civilizadamente, no
exercício de um direito consagrado na Constituição da República.
Esta semana, as mesmas entidades e mais dezenas de outras entidades que se juntaram à "romaria
cívica" irão novamente peregrinar
pelos altos gabinetes com as mesmas demandas, pois só elas, segundo a experiência dos técnicos e
funcionários que lidam com a matéria, podem solucionar o problema.
A dificuldade decorre do veto do
latifúndio e do agronegócio às medidas eficazes. Os factóides, entretanto, exigem apenas um bom dispositivo de propaganda.
Plinio Arruda Sampaio, 74, advogado e
economista, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Foi
deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e
consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
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