São Paulo, sábado, 23 de março de 2002

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LIVROS

A era Vargas sem desencantamento

PAI DOS POBRES? O BRASIL E A ERA VARGAS
Autor: Robert M. Levine
Editora: Cia. das Letras
Páginas: 272
Preço: R$ 32,00

PEDRO PUNTONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Resta um pedaço do nosso passado político que atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. O legado da era Vargas."
Em dezembro de 1994, no seu discurso de despedida do Senado, o então presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, sinalizava que seu governo significaria o "fim da era Vargas".
Mais do que completar o processo de transição democrática, segundo ele, a sua vitória permitiria ao país romper com o modelo de Estado centrado no que o sociólogo identificava com "a pilhagem dos "interesses estratégicos", das "conquistas sociais" exclusivistas, do corporativismo -numa palavra, dos privilégios que distorcem a distribuição de renda".
Trocando em miúdos, buscava-se o fim do intervencionismo estatal na economia. O que se faria com o engajamento no mercado globalizado e a superação do corporativismo que, nessa visão, amarrava o mercado de trabalho, prejudicando sua modernização.
O que temos visto, recentemente, é que tal discurso modernizador tem se associado a outro, mais conservador. O nosso ultraliberalismo tupiniquim sempre considerou os direitos sociais inconvenientes, uma vez que automaticamente identificados com a regulação do mercado de trabalho.
No fundo, tal raciocínio se apóia nos interesses do capital. E, para piorar, vamos desancando direitos que nunca se universalizaram: hoje, menos da metade dos trabalhadores brasileiros dispõe de carteira assinada. A informalidade de nossa economia é retrato da nossa barbárie social.
Mas exatamente o que foi a era Vargas? E qual foi o seu legado? É o que procura responder o historiador norte-americano Robert M. Levine em um belo livro de duzentas e poucas páginas que a Cia. das Letras há pouco publicou.
Bem escrito, de leitura fluente, agradável, o livro é sobretudo destinado ao público estrangeiro. Mas funciona bem para nós. Seu primeiro estudo sobre Vargas ("Regime de Vargas: os anos críticos, 1934-1938") foi publicado nos EUA em 1970. Por conta da estupidez de nossa ditadura, esperamos ainda dez anos para que os censores resolvessem permitir sua edição no Brasil. Agora, o leitor tem em mãos um trabalho mais abrangente. Uma síntese interpretativa que procura entender o papel de Getúlio Vargas na formação e evolução de nosso Estado moderno e, em que medida, seu legado político ainda hoje está presente, seja na vida, ou, ao menos, no espírito dos brasileiros.
O livro está dividido em seis capítulos. Em apêndice, há uma seleção de fotografias e alguns documentos transcritos. Apesar de o ensaio bibliográfico ater-se apenas à literatura em língua inglesa (que já impressiona pelo seu volume), o autor, como é natural, utiliza os estudos pátrios. Baseia seu trabalho em ampla e variada pesquisa documental. Realiza uma síntese proveitosa, tanto ao acadêmico, como ao interessado.
A tese é clara: para Levine, o Brasil nasceu em 1930, com a revolução que enterrou a república oligárquica, e atingiu sua maturidade com a morte daquele que foi construtor desse Estado moderno. Referindo-se ao desenvolvimentismo dos anos 30 -e por sabujice diplomática-, Franklin D. Roosevelt disse que Vargas podia ser considerado "um dos inventores do New Deal". Segundo Levine, o nosso "new dealer", ao contrário, não procurou realizar uma síntese dos opostos. Se Getúlio foi considerado o "pai dos pobres", era também a "mãe dos ricos". Seus diversos mandatos (atribuídos ou eletivos) serviram para que pudesse aprofundar o processo de estruturação do Estado e da economia industrial. O Brasil de 1930 era rural, agrário e fragmentado politicamente. Em 1954, tínhamos já uma nação fortemente industrial e urbana, com mecanismos centralizados de poder.
O primeiro capítulo procura situar esse enigma: Vargas, ao mesmo tempo "herege ortodoxo e reformista conservador". Um homem apegado ao pragmatismo, desdenhoso da ideologia e, portanto, caracterizado pela imprevisibilidade e pela facilidade com que mudava de posição, com que se comprometia com grupos de interesse às vezes contraditórios.
Os três capítulos seguintes apresentam, de maneira sucinta, os diversos momentos da sua carreira política. Sua ascensão ao poder pela Revolução de 1930. O golpe que inaugura o Estado Novo. Sua atividade no período democrático: a eleição e o suicídio.
Levine nos mostra como Vargas transitou da crítica liberal que fazia à República oligárquica, passando pelo seu namoro com o integralismo, para um populismo corporativista que, nos anos 50, ganhou feições mais sociais. Mesmo assim, fica claro como Vargas, em nenhum momento, abandonou sua crença no autoritarismo, seu desprezo pela democracia.
Os dois últimos capítulos analisam as visões sobre Vargas. Ricos e pobres, empresários e trabalhadores, incluídos e marginalizados, cada qual com uma imagem, uma crença na atitude desse político.
Por fim, Levine analisa o que chama de a "revolução incompleta" de Vargas. Em termos políticos, "sua revolução foi parcial, uma revolução em que novos eleitorados e novas regras foram enxertados nas práticas políticas tradicionais". Para o historiador, se Vargas, paradoxalmente, manteve intacta a "estrutura hierárquica arcaica da oligarquia brasileira", ele foi o primeiro político a "levar dignidade ao povo brasileiro".
Como o leitor pode notar, há no livro de Levine uma certa visão voluntarista deste personagem. Cabe aqui um reparo. Seus crimes contra a liberdade não podem ser absolvidos ou atenuados pela sua certa preocupação social.
Precisamos conhecer melhor nossa história. Nesta tarefa, uma dose de desencantamento se faz necessária para que o conhecimento de nosso passado nos ajude a construir uma república. Livres das mistificações. Livres desse horror à política que tem congelado as virtudes da democracia.
Relatando sua experiência no cárcere, Graciliano Ramos, vítima do mais abjeto ódio político, refletia sobre o Brasil. Para ele, Getúlio "era um prisioneiro como nós; puxavam-lhe os cordões e ele se mexia, títere, paisano movido por generais". Precisamos, com efeito, entender essa prisão. Esse país.


Pedro Puntoni é professor de história do Brasil na USP e pesquisador do Cebrap



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