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LIVROS
A era Vargas sem desencantamento
PAI DOS POBRES? O BRASIL E A ERA
VARGAS
Autor: Robert M. Levine
Editora: Cia. das Letras
Páginas: 272
Preço: R$ 32,00
PEDRO PUNTONI
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Resta um pedaço do nosso passado político que atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. O legado da era Vargas."
Em dezembro de 1994, no seu
discurso de despedida do Senado,
o então presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, sinalizava
que seu governo significaria o
"fim da era Vargas".
Mais do que completar o processo de transição democrática,
segundo ele, a sua vitória permitiria ao país romper com o modelo
de Estado centrado no que o sociólogo identificava com "a pilhagem dos "interesses estratégicos",
das "conquistas sociais" exclusivistas, do corporativismo -numa
palavra, dos privilégios que distorcem a distribuição de renda".
Trocando em miúdos, buscava-se o fim do intervencionismo estatal na economia. O que se faria
com o engajamento no mercado
globalizado e a superação do corporativismo que, nessa visão,
amarrava o mercado de trabalho,
prejudicando sua modernização.
O que temos visto, recentemente, é que tal discurso modernizador tem se associado a outro, mais
conservador. O nosso ultraliberalismo tupiniquim sempre considerou os direitos sociais inconvenientes, uma vez que automaticamente identificados com a regulação do mercado de trabalho.
No fundo, tal raciocínio se apóia
nos interesses do capital. E, para
piorar, vamos desancando direitos que nunca se universalizaram:
hoje, menos da metade dos trabalhadores brasileiros dispõe de carteira assinada. A informalidade
de nossa economia é retrato da
nossa barbárie social.
Mas exatamente o que foi a era
Vargas? E qual foi o seu legado? É
o que procura responder o historiador norte-americano Robert
M. Levine em um belo livro de duzentas e poucas páginas que a Cia.
das Letras há pouco publicou.
Bem escrito, de leitura fluente,
agradável, o livro é sobretudo destinado ao público estrangeiro.
Mas funciona bem para nós. Seu
primeiro estudo sobre Vargas
("Regime de Vargas: os anos críticos, 1934-1938") foi publicado nos
EUA em 1970. Por conta da estupidez de nossa ditadura, esperamos ainda dez anos para que os
censores resolvessem permitir
sua edição no Brasil. Agora, o leitor tem em mãos um trabalho
mais abrangente. Uma síntese interpretativa que procura entender
o papel de Getúlio Vargas na formação e evolução de nosso Estado moderno e, em que medida,
seu legado político ainda hoje está
presente, seja na vida, ou, ao menos, no espírito dos brasileiros.
O livro está dividido em seis capítulos. Em apêndice, há uma seleção de fotografias e alguns documentos transcritos. Apesar de o
ensaio bibliográfico ater-se apenas à literatura em língua inglesa
(que já impressiona pelo seu volume), o autor, como é natural, utiliza os estudos pátrios. Baseia seu
trabalho em ampla e variada pesquisa documental. Realiza uma
síntese proveitosa, tanto ao acadêmico, como ao interessado.
A tese é clara: para Levine, o
Brasil nasceu em 1930, com a revolução que enterrou a república
oligárquica, e atingiu sua maturidade com a morte daquele que foi
construtor desse Estado moderno. Referindo-se ao desenvolvimentismo dos anos 30 -e por sabujice diplomática-, Franklin D.
Roosevelt disse que Vargas podia
ser considerado "um dos inventores do New Deal". Segundo Levine, o nosso "new dealer", ao contrário, não procurou realizar uma
síntese dos opostos. Se Getúlio foi
considerado o "pai dos pobres",
era também a "mãe dos ricos".
Seus diversos mandatos (atribuídos ou eletivos) serviram para
que pudesse aprofundar o processo de estruturação do Estado e da
economia industrial. O Brasil de
1930 era rural, agrário e fragmentado politicamente. Em 1954, tínhamos já uma nação fortemente
industrial e urbana, com mecanismos centralizados de poder.
O primeiro capítulo procura situar esse enigma: Vargas, ao mesmo tempo "herege ortodoxo e reformista conservador". Um homem apegado ao pragmatismo,
desdenhoso da ideologia e, portanto, caracterizado pela imprevisibilidade e pela facilidade com
que mudava de posição, com que
se comprometia com grupos de
interesse às vezes contraditórios.
Os três capítulos seguintes apresentam, de maneira sucinta, os diversos momentos da sua carreira
política. Sua ascensão ao poder
pela Revolução de 1930. O golpe
que inaugura o Estado Novo. Sua
atividade no período democrático: a eleição e o suicídio.
Levine nos mostra como Vargas
transitou da crítica liberal que fazia à República oligárquica, passando pelo seu namoro com o integralismo, para um populismo
corporativista que, nos anos 50,
ganhou feições mais sociais. Mesmo assim, fica claro como Vargas,
em nenhum momento, abandonou sua crença no autoritarismo,
seu desprezo pela democracia.
Os dois últimos capítulos analisam as visões sobre Vargas. Ricos
e pobres, empresários e trabalhadores, incluídos e marginalizados,
cada qual com uma imagem, uma
crença na atitude desse político.
Por fim, Levine analisa o que
chama de a "revolução incompleta" de Vargas. Em termos políticos, "sua revolução foi parcial,
uma revolução em que novos eleitorados e novas regras foram enxertados nas práticas políticas tradicionais". Para o historiador, se
Vargas, paradoxalmente, manteve intacta a "estrutura hierárquica
arcaica da oligarquia brasileira",
ele foi o primeiro político a "levar
dignidade ao povo brasileiro".
Como o leitor pode notar, há no
livro de Levine uma certa visão
voluntarista deste personagem.
Cabe aqui um reparo. Seus crimes
contra a liberdade não podem ser
absolvidos ou atenuados pela sua
certa preocupação social.
Precisamos conhecer melhor
nossa história. Nesta tarefa, uma
dose de desencantamento se faz
necessária para que o conhecimento de nosso passado nos ajude a construir uma república. Livres das mistificações. Livres desse horror à política que tem congelado as virtudes da democracia.
Relatando sua experiência no
cárcere, Graciliano Ramos, vítima
do mais abjeto ódio político, refletia sobre o Brasil. Para ele, Getúlio
"era um prisioneiro como nós;
puxavam-lhe os cordões e ele se
mexia, títere, paisano movido por
generais". Precisamos, com efeito, entender essa prisão. Esse país.
Pedro Puntoni é professor de história
do Brasil na USP e pesquisador do Cebrap
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