São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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ARTIGO

Lula, os negócios e a imobilidade da China

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA


No rádio e na TV, tem sido um bombardeio. Lá vai o Lula à China, diz a propaganda, "para ajudar o Brasil". Não sei se os publicitários do governo perderam o desconfiômetro de uma vez por todas, mas fica bem exagerado fazer dessa viagem uma expedição épica, um ato de estadista. E o slogan é uma piada pronta, como se diz: o presidente ajuda o país indo para bem longe...
Não chego a tanto. O fato é que por aqui ele anda perdido, e quando se está desorientado a China talvez seja um bom destino. A menos que Lula encontre, como no poema de Álvaro de Campos, "um oriente ao oriente do oriente..." - o que significaria andar em círculos, ou dar guinadas de 180 graus, como tem acontecido desde a posse.
No imaginário comercial, a China é o lugar das oportunidades imperdíveis e do pragmatismo sem limites. No mundo literário, talvez seja o lugar da imobilidade, da indiferença, da apatia.
Por via das dúvidas, o presidente tem muitas vezes pedido paciência (chinesa) à população. Não se muda o país do dia para noite, afirma; e pode-se acrescentar que nem mesmo no curso de um mandato. É obra de longo prazo, que faz lembrar um conto de Kafka sobre a Muralha da China: os pedreiros nunca paravam de meditar sobre a obra e, "desde a primeira pedra enfiada na terra, sentiam-se consubstanciados com a empresa". A muralha ia sendo feita aos pedaços, em trechos separados, e cada vez que um trecho era unido a outro, havia festas, comemorações, fanfarras. O que diminuía o ceticismo e o desânimo dos pedreiros.
Também nas especulações de Jorge Luís Borges haveria um fundo propagandístico na Muralha da China. O autor argentino comenta que um mesmo imperador, Shih Huang Ti, ordenou a construção da Muralha e a destruição de todas as bibliotecas. Talvez fossem dois empreendimentos simétricos: visando a preservar a memória do imperador, "a muralha tenaz é a sombra de um César que ordenou que a mais reverente das nações queimasse o seu passado".
Renegar o passado é coisa que se faz com facilidade, talvez mais aqui do que na China; mas lá também, dos antigos programas revolucionários, restam apenas as bandeiras vermelhas.
Do ponto de vista comercial, a viagem é promissora. Negociar com a China nem sempre foi fácil, entretanto. O antropólogo Marshall Sahlins analisa as dificuldades que o embaixador de sua Majestade Britânica, o visconde Mc Cartney, teve de enfrentar em fins do século 18 ao pleitear a abertura do comércio em Cantão. Levava ao imperador amostras da melhor tecnologia britânica. Garfos, facas e colheres, por exemplo; carruagens; um globo terrestre; espadas capazes de cortar ferro.
Espantou-se com o pouco interesse que aquilo suscitou. Os chineses entenderam aqueles presentes como tributos de um súdito exótico. Mostraram depois a Mc Cartney um pavilhão de caça, longe da capital. Lá se acumulavam toda sorte de bugigangas ocidentais, caixas de música, brinquedos automáticos, lembrancinhas: há séculos eram guardados ali, apenas para atestar a variedade do mundo. Serviam como souvenirs do universo -sobre o qual o poder do imperador se exercia sem contestação e sem maior interesse.
Hoje, é da China que nos vêm as quinquilharias tecnológicas mais inúteis, a que consumimos como autômatos. A variedade do universo diminuiu bastante. Lula se entedia no Planalto Central. O brinquedinho que ganhou não funciona direito. Está tudo imóvel. Nos corredores, enxames de mandarins se esgotam em explicações e intrigas, raciocínios, reverências e censuras. Para consumo externo, capricha-se na conversa de camelô.


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