São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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ELIO GASPARI

É contra o PT? É armação

Em janeiro, quando foi assassinado o prefeito de Santo André, Celso Daniel, Lula disse que o seguinte: "Não foi uma mera coincidência. Tem gente graúda por trás disso e nós descobriremos". Lula não foi o único grão-petista a lançar a suspeita de que havia no sequestro e na morte do prefeito algo mais que a ação de bandidos. Na hora de denunciar e de lançar suspeitas, a nação petista é rápida no gatilho. Acaba de editar um livrinho com 45 casos de corrupção onde a vítima é o governo de FFHH. Admita-se que os casos não sejam 45, mas 4.555, o fato é que o PT usa esse tipo de propaganda quando ela lhe traz proveito.
Quando as denúncias são contra ele, tudo faz parte de um complô. Oito procuradores denunciam a existência de um propinoduto na prefeitura de Santo André, com base inclusive no depoimento de um irmão do prefeito assassinado, e o líder do PT na Câmara diz que é "muito estranho que a denúncia tenha sido feita exatamente no dia em que o PT fechou a aliança com o PL". Não faz nexo, há oito promotores na investigação de Santo André. O presidente do PT, José Dirceu, também foi na linha da maquinação eleitoral, endossando a teoria segundo a qual há uma "armação contra o PT".
A denúncia de que havia um propinoduto pelo qual passavam achaques praticados contra fornecedores da prefeitura e companhias de ônibus (coisa de alguns milhões de reais) vem de empresários. Tudo bem, pode-se dizer que são interesses contrariados. Ela foi aceita pelos promotores. Tubo bem, são oito armadores. Foi endossada pelo irmão do prefeito assassinado. Vêm os acusados e dizem que ele padece de "desequilíbrio emocional". Somando-se tudo, montou-se uma seleção de empresários contrariados, oito promotores indignos de confiança, um médico desequilibrado e, no comando de tudo, os adversários do PT. Se fosse pouco, há até um vereador petista reconhecendo que atos praticados na prefeitura haviam sido questionadas dentro do próprio partido.
Há uma acusação contra o presidente do PT, José Dirceu, dizendo-o receptador de propinas destinadas a alimentar o caixa dois do partido. Ela remontaria à campanha de Marta Suplicy pela Prefeitura de São Paulo. Ninguém acusou Lula. Mesmo nos piores murmúrios ouvidos na investigação não se ouviu seu nome. Quando conveio a Lula dizer que havia "gente graúda" metida no assassinato de Celso Daniel, o PT achou boa a idéia de lançar um véu de suspeita sobre seus adversários. Agora, Lula tem no colo o irmão da vítima lançando a suspeita de que tenha havido uma reação do propinoduto contra Celso Daniel. A "gente graúda", se é que havia, estava no campo do PT.
Corrupção em prefeitura é coisa que pode acontecer em qualquer partido. Caixa dois é outra coisa, até porque há a dois e a três, sendo esta a que, em nome da outra, destina-se a engordar patrimônios pessoais. Houve uma corrente dentro do PT que defendeu a entrada na campanha deste ano com a proclamação de que nem Lula nem outro candidato gastaria dinheiro não declarado à Justiça Eleitoral. Isso ainda pode ser feito colocando-se o balancete das finanças do partido na internet. Nenhum candidato quis fazê-lo. Há tempo para que o façam.
Essa providência tem duas vantagens. Primeiro, torna as campanhas mais limpas. Segundo, dá ao eleito a tranquilidade de governar sem viver assombrado pelo fantasma do ervanário ilegal, de suas sobras, transferências e destinos.
Dois e dois são quatro: o eleito de outubro pagará caro pelo que vier a receber (ou que já tenha recebido) por baixo da mesa. Quando isso acontecer, dirão que é armação de "gente grossa". É nada. É corrupção mesmo.

Grande Rondon

Nota à margem da derrota da seleção inglesa por um time de dez jogadores:
Quando percorria a Amazônia instalando linhas telefônicas, Cândido Rondon tinha um costume. Se dez peões não conseguiam levantar um poste, ele tirava um. Nunca teve de tirar o segundo. Com nove os postes subiam.

O lucro do medo

Na quinta-feira, um papel da dívida externa brasileira chamado de C-Bond foi novamente desvalorizado e caiu a US$ 0,58. Para os leigos, isso é grego escrito às avessas. Explicado, esse número mostra o tamanho do lucro que o medo do risco Brasil oferece.
Um papel de US$ 100 vale, em tese, US$ 100. Se alguém desconfia que a dívida não será paga, passa a vendê-lo por menos. No início de maio, o dólar de C-Bond estava cotado a US$ 0,80.
O sujeito que comprou esse papel em maio e vendeu-o na quinta-feira perdeu US$ 0,22 para cada dólar que aplicou. Preferiu perder uma parte a correr o risco do calote. Já o outro, que comprou, apostou que o papel será pago, com os juros do contrato, na data de seu vencimento, em 2013. Admitindo-se que isso aconteça, ao final do jogo, ele terá aplicado US$ 58 e receberá US$ 540. Lucrará US$ 482.
Isso significa que essa pessoa entra com um apartamento de dois quartos e sala (R$ 58 mil) e sai com uma cobertura na Barra (R$ 540 mil).
Nunca é demais lembrar que quem aplicou o valor de um automóvel no início do Plano Real tem hoje três.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota. Ouviu falar que as autoridades da ilha de Jersey informaram oficialmente ao governo brasileiro que há uma conta no Citibank local com US$ 200 milhões em depósitos, cujo titular chama-se Paulo Maluf.
O idiota informa às autoridades de Jersey, ao governo brasileiro e ao distinto público que Maluf disse a verdade quando informou que não tem um centavo em Jersey. Disse e repetiu.
Mais uma vez, Eremildo pede que se dê crédito ao que disse o ex-governador de São Paulo.
Qualquer quantia que esteja depositada em Jersey em nome de Maluf, pertence, na verdade, a Eremildo. Por idiota, abriu-a com o nome de outra pessoa com a única finalidade de não ser descoberto.
Está disposto a pagar pelo erro que cometeu, mas quer o seu dinheiro de volta. Disseram-lhe que o ervanário, bloqueado, ainda está lá.

O chute dos computecas bateu na trave

O governo de São Paulo escapou de uma boa. Testava um novo sistema capaz de levar computadores aos bairros populares. A idéia parecia simples: como as engenhocas são caras, oferecia-se à periferia terminais burros, capazes de navegar na internet e de rodar programas básicos.
O cidadão entraria num posto, pagaria uma mixaria por hora e faria o que precisasse. Caso quisesse guardar suas mensagens eletrônicas ou documentos, usaria um pequeno cartão com 32 megabytes de memória. Essa despesa ficaria por conta do usuário. No barato, R$ 60.
Parecia tudo muito bonito. Com 32 Mb de memória, guarda-se um texto equivalente a mil cópias do que está escrito nesta página. Quem precisa dessa memória em Itaquera, onde está um dos terminais? O preço do cartão equivale a uma taxa de R$ 5 por mês, admitindo-se que entre extravios, acidentes e defeitos, um cartão desses dure um ano.
Esse sistema poderia ter grande utilidade para a rede bancária, estimulando operações eletrônicas que permitiriam mandar ao desemprego mais alguns milhares de funcionários. Grande idéia: o andar de baixo pagaria a rede de terminais (com o dinheiro de seus impostos) e os cartões de memória (com o do bolso) e o andar de cima ficaria com a produtividade.
Testava-se esse caminho sabendo-se que há dezenas de sítios onde, de graça, qualquer um pode conseguir uma memória virtual de 2 Mb (capaz de guardar 50 textos como os desta página).
A maluquice foi abatida em vôo. Os usuários terão acesso à memória gratuita e, possivelmente, poderão usar disquetes nos novos terminais. O negócio fica para outra.

Um bispo criou o consórcio antidívida

Deu no "The Wall Street Journal", graças à repórter Ellen Graham, e vale a pena que mais gente saiba. Trata-se de um caso bem-sucedido de rebelião da patuléia contra as taxas de juros dos banqueiros e dos cartões de crédito. O bispo batista Vernie Russell Jr., pastor da igreja de Monte Carmelo, na cidade de Norfolk, organizou um movimento de ressurreição das dívidas. Um terço dos seus 3.000 fiéis, quase todos afro-americanos de classe média, picotaram seus cartões de crédito e colocaram-nos numa urna de vidro no meio da igreja. Além disso, comprometeram-se a só fazer dívidas para a compra de casa ou de carro.
Vernie Russell montou um consórcio espiritual-comunitário. Tendo-se comprometido a não dever, os fiéis fazem doações para um fundo e o pastor, ouvindo a voz do Senhor, seleciona as famílias que serão resgatados. Já conseguiu quitar 56 dívidas que somavam US$ 318 mil. Numa noite de culto ele chega a recolher US$ 16 mil.
Quando Russell seleciona as famílias, o coro da igreja canta: "Asmodeu foi derrotado, Asmodeu foi derrotado". Ele disse à repórter: "Você não pode servir ao Senhor (Master, em inglês) e ao MasterCard ao mesmo tempo".
Em economês, Russell impôs aos fiéis uma Lei de Responsabilidade Fiscal e aumentou a taxa de poupança da comunidade. Em sociologuês, foi favorecido por um um grupo coeso (boa parte do seu rebanho trabalha na base naval da cidade).
Russell deveria ser chamado para o Ministério da Fazenda do próximo presidente brasileiro. Tirando os fiéis do inferno dos juros, a caixa geral de sua igreja aumentou sua arrecadação em 25% e acumulou US$ 2 milhões num ano. Com menos juros comendo-lhes o orçamento, os fiéis doam mais. Esse dinheiro vai para iniciativas que alimentam e vestem pessoas que não tem onde morar.
Nos Estados Unidos, os juros dos cartões de crédito estão em 20% ao ano. Em Pindorama chegam a 13% ao mês. Quem começa o ano devendo R$ 1.000 termina-o com um espeto de R$ 42 mil. Como diz a marquetagem de José Serra, "Quero Mais".

Memória

Saiu um tremendo livro. É "Um Médico Brasileiro no Front" (Imprensa Oficial de São Paulo). Trata-se do diário que o médico paulista Massaki Udihara manteve, como tenente da Força Expedicionária Brasileira, entre junho de 1944, quando foi para a Itália, e junho de 1945, quando retornou ao Brasil.
Udihara tinha 31 anos e reunia diversas singularidades. Filho de japoneses, era católico devoto. Formado pela Universidade de São Paulo, foi convocado como reservista e serviu no 6º RI como infante, não como médico. Escrevia poesias em inglês e falava francês. Seu refinamento intelectual leva-o, por exemplo, a citar Dante sem mencioná-lo e a ler o "Diário de um Pároco de Aldeia", de George Barnanos, na frente de batalha.
Participava da maior guerra de todos os tempos, mas tentou impedir a compra de três carneiros para alimentar uma tropa que tinha pouca comida ("são o símbolo da meiguice"). Era um pacifista e aborrecia-se com as conversas e o comportamento dos oficiais.
Ele só viu o fogo alemão em outubro de 1944 ("medo como nunca senti"). Participou de combates, mas fala dos soldados, não dele. Enquanto ficou no meio do fogo, Udihara refletiu sobre o tédio da guerra e mostrou um terrível senso de humor. Nesses meses, estão os melhores momentos do diário. Depois, deprime-se. Reclama mais da dificuldade para dormir do que do frio ou dos alemães: "Se se pudesse abolir a noite, se teria conseguido a melhor coisa da guerra". Voltou com três medalhas, inclusive a Cruz de Combate.
Em relação aos comandantes (sobretudo o general Zenóbio da Costa) e à maneira como montaram e chefiaram a FEB, é pau puro. Alguns trechos:

A caminho dos combates:
"Diziam que viemos preparados. Nada disso. Que trouxemos barracas. Passamos um dia ao relento por não termos trazido. Fomos recebidos com ovações de uma grande multidão. Cais desertos, sem ninguém."
"Recomendações sobre a visita próxima do nosso ministro da Guerra. Que todas as companhias providenciassem alfaiates para uma boa apresentação. Os nossos homens sem roupas e sem calçados."
"Veio o Ubirajara. Contou um fato passado com o general. Estavam em La Corchia. De lá partiram. Levou consigo uma mesa toda talhada. Bela obra, pesada que necessitou dez homens para carregá-la. Dias depois apareceu o dono, com documentos na mão e um coronel americano. Entregou. Disse que podiam levá-la de volta. Mas não mandou transportá-la de volta."

Na linha de frente
"Aqui mais que em outro lugar, dou valor à vida humana (...) Um desejo incontrolável de atirar para matar. Será que haverá justificativa para tudo isso?"
"Continuam as ordens de patrulha. E com isso ficamos hoje sem guarda e proteção. Retiraram mais uns elementos e acham que tudo está resolvido, pois não temos necessidade de nada. Somos muito fortes e do nada faremos tudo. Sem dar meios, proteção, pedem e exigem tudo. Não há dúvida que esta guerra está divertida."
"O [regimento] Mallet está proibido de baixar doentes. Até parece mentira. Não se tem mais direito de ficar doente."
"Um cabo nosso foi condecorado pelos americanos. Os jornais deram. No momento da entrega da condecoração, precisava assinar o nome. Não sabia escrever."



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