São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2002

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ELIO GASPARI

A ekipekonômica embolou com a cartomante

O próximo presidente bem que poderia proibir os seus ministros de bater boca com escritórios de quiromancia financeira. A nota divulgada pelo Ministério da Fazenda e pelo Banco Central rebatendo a reavaliação que a consultoria americana Fitch fez da economia brasileira é uma catedral de provincianismo a serviço da indigência intelectual.
A Fitch baixou a sua cotação das dívidas brasileiras de B+ para B. Isso significa que, a juízo da empresa, os papéis da dívida brasileira são do tipo que queima os dedos, ou "especulativos". Nem são de boa qualidade, nem carregam alto risco de calote. Grosseiramente, se a melhor nota disponível fosse 10, o papelório nacional tirou um 4. A ekipekonômica zangou-se e classificou a decisão de "extemporânea e equivocada". Como a Fitch divulgou uma longa argumentação, a nota debate a metodologia dos analistas, mas padece de um mal de origem: alguém já imaginou ministro de país rebaixado dizendo que o gesto é "oportuno e clarividente"?
A Fitch tem todo o direito de classificar os créditos brasileiros. Ela faz isso para um mercado de aplicadores que acreditam no que dizem seus analistas. É gente que sabe o que vem a ser uma taxa de juros de 21% ao ano. Sabem que uma boca-rica dessas não pode durar muito.
Para ficar num exemplo manjado: conta a lenda que em 1626 os holandeses compraram a ilha de Manhattan aos índios do pedaço. Pagaram em mercadorias que valiam US$ 24. Se os índios tivessem colocado aquele dinheiro a juros anuais de 7,4% (pouco mais de um terço do que paga o dr. Armínio), hoje eles teriam US$ 10 trilhões, ervanário suficiente para comprar a ilha -com todos os seus imóveis- de volta. O mundo funciona de outro jeito. Se os índios tivessem botado o dinheiro a juros, é provável que o tivessem perdido umas dez ou 20 vezes. Sem risco, não haveria capitalismo.
Havendo risco, nada mais razoável do que acreditar na capacidade dos mercados de medi-lo. Fazendo de conta que não aconteceu nada com a Nasdaq e que as empresas ".com" continuam valendo o que os holandeses dos anos 90 pagaram aos índios que lhes venderam a ilha de Net, deve-se separar o que é risco do que é uma malandragem inerente aos mercados.
Na primeira metade do século passado, um banqueiro escocês (Gregor McGregor) lançou em Londres papéis do Reino de Poyais, do qual se intitulava cazique. Eram comprados a 80% de seu valor de face. Estiveram em 67%. Poyais seria um reino, com bulevar, casa de ópera e princesa, situado em algum ponto de América Central. Algumas centenas de ingleses -inclusive um sapateiro que serviria à Casa Real- chegaram a emigrar para suas terras. Quando regressaram, contando que nada existia além de pântanos e mosquitos, os papéis de Poyais tiveram uma queda e, por alguns meses, foram trocados a 15 centavos por libra. Ou seja: se uma coisa não existe, pode custar 15% do seu valor de face.
Tanto no caso dos juros quanto no de superstições dos mercados, poderiam ser mencionados exemplos mais recentes. Abundam, mas teriam a desvantagem de dar a impressão de que esses fenômenos são coisa de um mundo globalizado. Nada, são coisa velha, tão velha quanto todas as combinações possíveis de espertos, otários, informados e ignorantes.
Tendo perdido uma excelente oportunidade de ficar calada, a ekipekonômica, bem como sua provável sucessora, poderiam desobrigar os eleitores de vê-los festejar classificações laudatórias. Enquanto o Brasil viveu a aventura do populismo cambial (de 1994 a 1998), nenhuma empresa de quiromancia financeira disse que o país ia à garra. Nenhum banqueiro (muito menos os inscritos para o certame de seleção do presidente do Banco Central petista) advertiram para a leviandade que se estava praticando, em nome de um projeto eleitoral.
Não é por nada não, mas, se Lula for eleito, poderia colocar como pré-requisito para qualificar os quadros de sua equipe o fato de eles terem feito pelo menos uma ressalva ao dólar de R$ 1,20. Uma ressalvazinha -pública- é suficiente. Quem fez, tudo bem. Quem não a fez, ou era muito despreparado, ou (pior) estava preparado demais.


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