São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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HERZOG - 30 ANOS

Márcio José de Moraes não aceitou o conselho de amigos para só anunciar a decisão após o fim do AI-5

Juiz que condenou a União temia ser morto

FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Às vésperas dos 30 anos da morte de Vladimir Herzog, o juiz federal Márcio José de Moraes, 60, revela que, nas semanas em que se isolou para julgar a ação condenando a União pela morte do jornalista, ele temeu ser seqüestrado e torturado pelo mesmo esquema paramilitar que matou Herzog.
Desembargador e ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Moraes admite que a sentença o redimiu da alienação da juventude. Antes da morte de Herzog, relutava em crer que havia tortura no Brasil. Ele não aceitou o conselho de amigos para "segurar" a decisão até 1979, quando o AI-5 deixaria de vigorar, o que reduziria os riscos pessoais: "O gesto só teria valor, como uma espécie de grito político, de revolta contra a ditadura, se fosse dado sob o clima da ditadura, sob o AI-5".
 

Folha - O sr. tinha alguma atuação política na universidade? Como o sr. via o clima de repressão?
Márcio Moraes -
Eu venho da classe média do interior paulista. Meu pai tinha uma loja de ferragens em Jacareí. Minha família é católica. Eu vim para USP, em São Paulo, com o firme propósito de estudar. Não me envolvi na política na faculdade. Não fiz parte de nenhum partido. Meu irmão estudava história na USP e tinha mais participação política que eu.

Folha - Algum parente ou amigo do sr. foi preso, torturado?
Moraes -
Não. Alguns conhecidos da faculdade tiveram problemas. Eu me formei em 1968. A ditadura militar estava extremada, começaram as perseguições.

Folha - O sr. acreditava, na época, que havia prisões e tortura?
Moraes -
Mesmo depois da formatura, desinformado, eu ainda resistia a acreditar que havia tortura e morte. Eu ainda admitia que pudesse haver perseguição política. Mas, na verdade, a tortura e a morte eram coisas que eu tinha dificuldade em acreditar.

Folha - Como o sr. tomou conhecimento da morte de Herzog?
Moraes -
Em 1975, eu estava no escritório de advocacia, compro o jornal e vejo que Vladimir Herzog morreu. Eu realmente fiquei chocadíssimo. Não só pela notícia em si. Mas porque ficou absolutamente claro, para mim, que, na verdade, ele morreu torturado.

Folha - O sr. teve a convicção, então, de que não foi um suicídio?
Moraes -
Já naquele momento. Não era possível que a pessoa tivesse entrado no DOI-Codi, de manhã, e estivesse morto à tarde.

Folha - Qual foi o impacto?
Moraes -
Foi um choque pessoal. Caiu por terra a resistência que eu tinha em acreditar que a ditadura estava perseguindo, prendendo, matando prisioneiros políticos. Percebi claramente que tudo era verdade. Tive uma certa crise de consciência, por não ter participado politicamente para tentar evitar que aquilo acontecesse.

Folha - Qual foi o efeito?
Moraes -
Uma semana depois da morte do Herzog, eu participei do culto ecumênico na praça da Sé. Mas ainda um tanto quanto receoso, porque depois que se deu aquela conscientização pessoal, política, em decorrência da morte do Herzog, eu ainda tinha uma certa dificuldade de me engajar.

Folha - Mas o sr. foi ao ato?
Moraes -
Mas eu não fiquei dentro da igreja. Fiquei no lado, perto de uma pastelaria... Até mesmo, pensando comigo, veja só até onde ia a minha covardia política naquele momento: "Se a cavalaria da Polícia Militar invadir a praça da Sé, como se noticiava, eu me ponho aqui dentro da pastelaria e como um pastel". Alegaria que estava comendo um pastel...

Folha - Então, não foi por dificuldade de chegar à igreja...
Moraes -
Eu poderia ter me posto no meio da praça da Sé. Eu fiquei de lado, como participante direto do ato. Participando, mas ao mesmo tempo tendo o álibi do pastel... Imagine a minha surpresa, quando, três anos depois, em 1978, eu recebo o processo do caso Herzog para sentenciar...

Folha - Por que o juiz titular, João Gomes Martins, foi impedido de dar a sentença no processo?
Moraes -
Foi um fato sui generis na literatura mundial: um mandado de segurança para impedir um juiz de ler a sentença...

Folha - Por que o governo suspeitava que ele condenaria a União?
Moraes -
Porque o dr. João estava às vésperas da aposentadoria compulsória. Iria completar 70 anos. Depois que o processo terminou, ele marcou uma audiência de leitura da sentença, dias antes da aposentadoria dele...

Folha - Essa audiência de leitura é uma prática comum?
Moraes -
Não é comum. Ele queria marcar, mesmo.

Folha - A interpretação era que ele responsabilizaria a União?
Moraes -
O governo militar fez a seguinte leitura: ele, estando no final de carreira, teria muito mais liberdade para condenar a União do que o juiz substituto dele, que estava em início de carreira.

Folha - Qual era o perfil do juiz?
Moraes -
O dr. João não era um jurista, mas era um humanista. Um homem de uma cultura vasta, de grande experiência de vida. Trabalhei com ele oito anos. Fizemos uma grande amizade. Tornei-me quase um filho dele.

Folha - O sr. percebia a expectativa da ditadura de que poderia dar uma sentença favorável à União?
Moraes -
Percebi. Ficou muito claro para todo o mundo na Justiça Federal que a aposta do governo militar foi exatamente entregar o caso a um juiz mais novo, que, em função de carreira, e do clima, tinha muito mais a perder.

Folha - Com o AI-5 em vigor, quais eram os riscos para os juízes?
Moraes -
Naquele período, tudo podia acontecer. O AI-5 permitia cassar a cidadania, cassar os direitos políticos. O juiz poderia perder o cargo. Depois, nem era tanto a aplicação do AI-5, que já dava respaldo à ditadura. Era o medo, na verdade, de que poderia acontecer [com o juiz] o que aconteceu com tantos outros: simplesmente de ser seqüestrado e torturado, como aconteceu com Herzog. Havia um clima muito opressivo, quer pelo AI-5, que permitia ao governo fazer qualquer coisa, como manter alguém preso e incomunicável, quer pela própria repressão paramilitar, que, naquela época, em função mesmo do caso Herzog, tornou-se pública e notória. Todo o mundo sabia que havia esse aparato paramilitar que era o braço executor do governo.

Folha - Quando o sr. soube que iria julgar o processo, quais cuidados tomou? Havia preocupação com a sua integridade física?
Moraes -
Ah, tinha sim, sem dúvida. Mas, eu também tinha, a meu favor, a minha mocidade. Ou seja, essa volúpia no sentido de poder exercer a magistratura com todas as suas condições, apesar do regime militar. Era a força da juventude, de se rebelar contra isso. Quando eu percebi que aqueles anos eu tinha sido quase um alienado político, queria exercer esse caso com toda a liberdade de um juiz que quer melhorar seu país.

Folha -Quais foram os cuidados pessoais que o sr. tomou?
Moraes -
Tomei algumas precauções. Levei minha família para o interior. Tirei férias e dediquei-me exclusivamente à sentença. Eu fiquei na minha casa, um pouco na casa de meus pais.

Folha - Tinha segurança pessoal?
Moraes -
Nessa época, não existia isso. Na verdade, estávamos desprotegidos completamente.

Folha - O sr. recebeu apoio?
Moraes
Alguns colegas vieram conversar comigo. Alguns parlamentares federais sugeriram: "Não sentencie agora, porque ainda está na vigência do AI-5. O governo te pega". O AI-5 deixaria de ter vigência em 1º de janeiro de 1979. Estávamos em outubro de 1978. "A notícia que se tem em Brasília é que, se você condenar a União, vai sofrer represálias."

Folha - O que o sr. fez?
Moraes -
Dei a sentença com o AI-5 em vigor. Essa visão eu me orgulho de ter tido. Seria uma reação, um grito de independência do Poder Judiciário. Já tinha formado a minha convicção, iria condenar a União. O gesto só teria valor, como uma espécie de grito político, de revolta contra a ditadura, se fosse dado sob o clima da ditadura, sob o AI-5.

Folha - O sr. recebeu pressões?
Moraes -
Recebi vários telefonemas anônimos. Mas nenhuma ameaça. Eram xingamentos.

Folha - O que eles diziam?
Moraes -
"Veja lá o que vai fazer... estou de olho em você". E mais palavrões. "Cabeludo, filho daquilo"... Do regime militar não recebi nenhuma insinuação.

Folha - Como estava o processo, quando o sr. recebeu o caso?
Moraes -
As audiências já tinham sido feitas. O processo estava pronto para a sentença. Eu já tinha a convicção formada, era matéria que eu dominava. Fui advogado de banco e estudei muito o tema da responsabilidade civil do Estado. Sabia que, na sentença do caso Herzog, eu podia dar um passo muito importante na questão da responsabilidade civil.

Folha - O sr. trocou informações ou consultou o juiz anterior?
Moraes -
Não, mas seria normal. Ele perguntou: "Quer ler a minha sentença?" Agradeci, mas não quis. Quando ele passou o processo para mim, escreveu um bilhete: "Ao me proibirem de ler a sentença, mal sabem eles que sua mão é muito mais capaz e pesada".

Folha - O sr. conversava sobre o caso com outras pessoas?
Moraes -
Não sobre o mérito. Eu mostrei a minha sentença alguns dias antes de publicar a um grande amigo meu, que foi ministro do Superior Tribunal de Justiça: Miguel Jerônymo Ferrante. Era um juiz mais antigo, muito respeitado. Pedi a opinião dele. Ele me devolveu, no mesmo dia, com um bilhete: "Você fez uma obra jurídica. Não tenho nada a dizer".

Folha - Foi uma decisão solitária?
Moraes -
Foi uma decisão solitária e muito difícil. Todos aqueles anos de alienação caíram sobre mim: "Agora você tem que mostrar quem você é: no sentido de dar a decisão, seja qual for, o mais livre possível, sem amarras políticas, sem preconceito político, sem qualquer tipo, o mais consciente. E para responder a essa ditadura. Está aí na sua mão". Na verdade, foi a hora que eu cheguei para mim mesmo e disse que, politicamente, eu não poderia mais ficar comendo pastel. Quando tirei essa armadura de dentro de mim, pude ser capaz de dar a sentença.

Folha - No processo, o que mais pesou para a sua decisão?
Moraes -
O laudo era imprestável, assinado apenas por um perito. O perito-chefe assinou sem fazer a autópsia. O laudo, a principal prova da União, não tinha validade. As testemunhas disseram o que acontecia naquelas dependências. Alguns ouviram os gritos de Herzog. Isso foi prova suficiente para me convencer de que Herzog morreu por causa da tortura.

Folha - O que sustentou a responsabilidade da União?
Moraes -
O Estado era responsável, independente de qualquer circunstância, porque tinha alguém sob sua guarda.

Folha - O sr. também foi além, ao determinar a investigação criminal em relação aos responsáveis.
Moraes -
Primeiro, eu anulei o laudo. Segundo, valorizei as provas para mostrar que havia tortura naquelas circunstâncias. Terceiro, determinei a abertura de Inquérito Policial Militar para verificar os responsáveis, todas as autoridades policiais e militares que se encontravam no local e que foram responsáveis pela tortura.


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