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ENTREVISTA EXCLUSIVA
"Falta análise, falta criatividade, falta ver o que acontece"
Esquerda intelectual carece
de reflexão criadora, diz FHC
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
DA REDAÇÃO
O presidente Fernando Henrique Cardoso identifica uma mudança na estrutura produtiva do
país, vê com bons olhos a formação de uma nova classe empresarial em seu governo e critica a "insolência" de seus colegas intelectuais que, presos a clichês da velha
esquerda, "não enxergam o que
está acontecendo". Sobre a acusação frequente de que seu governo
não cumpriu as promessas sociais, é taxativo: "Fizemos muito
mais comparativamente na área
social do que na área econômica".
Folha - Um dos efeitos de seu governo foi uma recomposição das
classes proprietárias: identifica-se
uma enorme transferência patrimonial no Brasil nos últimos anos.
Quem é essa nova burguesia?
FHC - Você é um dos raros que
ainda fala em burguesia [risos".
Folha - As empresas continuam
tendo donos. Essa é uma burguesia
dependente e associada, como a
que o sr. identificou nos anos 60?
Qual o papel de seu governo nisso?
FHC - Vamos separar as coisas.
Uma coisa é o governo, outras são
as estruturas que se movem, sem
que isso dependa só de políticas
de governo. A sociedade brasileira é muito dinâmica. Luciano
Martins [sociólogo, amigo de
FHC] fez um estudo sobre a durabilidade das grandes fortunas
brasileiras. Elas não duram muito. O que está acontecendo? Você
tem a formação de uma camada
nova de empresários. No interior
do país, isso é muito evidente.
As estruturas de representação
do empresariado também mudaram. A Fiesp fala muito mais dos
pequenos e médios empresários
do que dos grandes. Os últimos
falam sozinhos.
Folha - A Fiesp não perdeu seu peso específico?
FHC - Ela está procurando um
caminho. E ecoando interesses,
nem tanto dos novos, que estão
ganhando, mas dos antigos, que
estão perdendo. Não estou criticando isso, não. Todo mundo tem
que ter expressão na sociedade.
Nossa estrutura sindical é a mesma do Estado Novo. É corporativa. Não é representativa da nova
dinâmica, nem a sindical, nem a
empresarial. Por que eu observei
que a expressão burguesia me
soou estranha? Porque ela se refere a um momento da sociedade
em que você tinha uma consciência de classe e uma oposição de
classes fortes. Hoje esses vários
segmentos se juntam todos e,
quase que independentemente da
posição de classe, atuam como sociedade civil. Contra o governo.
Folha - E continuam sendo dependentes e associados?
FHC - Sem dúvida. Pegue a relação das 50 maiores empresas brasileiras: 28 são controladas por
brasileiros. Não houve desnacionalização, mas interconexão. Era
inevitável. Bastava ter lido Marx
ou Rosa Luxemburgo para saber
que era inevitável. As pessoas,
quando vêem a realidade, dizem:
"Ai, meu Deus, não é o que eu
pensava". Pior para o que você
pensava. As pessoas têm uma certa insolência intelectual. O país
precisa de sociólogos analisando
isso. Eu, infelizmente, não sou
mais...
Folha - O sr. não é mais?
FHC - Não tenho tempo para dedicar à análise.
Folha - O sr. diz que o país precisa
de sociólogos, mas, do lado da oposição, dizem que houve uma paralisia do pensamento crítico desde
que o sr. chegou ao Planalto. O sr.
teria entorpecido os intelectuais...
FHC - Mas eu só vejo pensamento crítico [risos]. O problema não
é ser crítico ou não, é o pensamento ser criador. Falta criatividade, falta análise, falta ver o que
está acontecendo no país.
Acho que a questão que vocês
colocaram é muito importante,
porque diz respeito à mudança do
padrão societário. Qual é a discussão que está havendo nas grandes
empresas? É o que eles chamam
de "a boa governança corporativa" -não gosto da expressão-,
que se aplica tanto a empresas de
propriedade estatal quanto de
propriedade privada. O desafio
delas agora é o da chamada governança transparente. Isso implica
que a noção da burguesia, do dono individual e da família, vai desaparecer, porque você vai ter outros critérios, vai profissionalizar.
Folha - Além da diversificação da
estrutura social, estão surgindo
novas formas de associação...
FHC - Isso mesmo. Isso é muito
importante também.
Folha - E há também um apelo individualista muito forte, que prevalece sobre o coletivo...
FHC - Eu não sei se é apelo do individualismo, porque as ONGs
não são individualistas.
Folha - Talvez sejam uma reação
despolitizada ao individualismo.
FHC - Elas não são individualistas, são a expressão de um novo
comunitarismo. Essa idéia difusa
de comunitarismo que se expande significa que a experiência comum vale mais do que a posição
de classe. A sociedade tem ingredientes novos também nesse aspecto. Hoje o Estado e não é só o
Estado. É cada vez mais alguma
coisa permeada por essas formas
novas da sociedade.
Folha - O seu governo é criticado
por não ter atacado a desigualdade, apesar da estabilização.
FHC - Quando você fala de desigualdade, fala de um processo estrutural, de longo prazo. Eu li há
muitos anos um estudo sobre a
relação capital/trabalho na Inglaterra. Em cem anos, não variou. O
bom, o ideal é você ter no longo
prazo uma melhoria na distribuição de renda, e, o quanto antes,
um aumento do piso da população. Não são processos excludentes. Você tem de fazer as duas coisas. Só que um é de longo prazo, e
outro, de médio prazo. Saíram
dados do IBGE nos jornais. A renda média do brasileiro melhorou
em termos reais 40% na década
passada. E tem gente falando na
década perdida. Perdidos são eles,
na cabeça. A renda média melhorou. Mas o piso também.
Folha - O sr. se sente injustiçado
com a avaliação de que pouco foi
feito na área social em sua gestão?
FHC - Vai haver esse clichê por
parte da oposição, e é muito bom
porque a mídia gosta. Gosta porque gosta do que é mal. Não é só
aqui, é no mundo. "Good news,
no news." Manchete não é sobre
coisa positiva. Isso é ruim, porque
dá a sensação de que as coisas não
estão avançando. Estão. Poderiam avançar mais? Poderiam,
mas sempre comparativamente.
Fizemos muito mais na área social, comparativamente, do que
na área econômica. Dizer que o
governo se preocupou com a estabilidade só não é verdade, é falso.
Eu não me incomodo quando um
político diz essas coisas: "FHC
não tem sensibilidade social". Isso
é da regra deles. Quem sabe da
minha sensibilidade? Só eu.
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