São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA EXCLUSIVA

"Falta análise, falta criatividade, falta ver o que acontece"

Esquerda intelectual carece de reflexão criadora, diz FHC

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

DA REDAÇÃO

O presidente Fernando Henrique Cardoso identifica uma mudança na estrutura produtiva do país, vê com bons olhos a formação de uma nova classe empresarial em seu governo e critica a "insolência" de seus colegas intelectuais que, presos a clichês da velha esquerda, "não enxergam o que está acontecendo". Sobre a acusação frequente de que seu governo não cumpriu as promessas sociais, é taxativo: "Fizemos muito mais comparativamente na área social do que na área econômica".
 

Folha - Um dos efeitos de seu governo foi uma recomposição das classes proprietárias: identifica-se uma enorme transferência patrimonial no Brasil nos últimos anos. Quem é essa nova burguesia?
FHC -
Você é um dos raros que ainda fala em burguesia [risos".

Folha - As empresas continuam tendo donos. Essa é uma burguesia dependente e associada, como a que o sr. identificou nos anos 60? Qual o papel de seu governo nisso?
FHC -
Vamos separar as coisas. Uma coisa é o governo, outras são as estruturas que se movem, sem que isso dependa só de políticas de governo. A sociedade brasileira é muito dinâmica. Luciano Martins [sociólogo, amigo de FHC] fez um estudo sobre a durabilidade das grandes fortunas brasileiras. Elas não duram muito. O que está acontecendo? Você tem a formação de uma camada nova de empresários. No interior do país, isso é muito evidente.
As estruturas de representação do empresariado também mudaram. A Fiesp fala muito mais dos pequenos e médios empresários do que dos grandes. Os últimos falam sozinhos.

Folha - A Fiesp não perdeu seu peso específico?
FHC -
Ela está procurando um caminho. E ecoando interesses, nem tanto dos novos, que estão ganhando, mas dos antigos, que estão perdendo. Não estou criticando isso, não. Todo mundo tem que ter expressão na sociedade. Nossa estrutura sindical é a mesma do Estado Novo. É corporativa. Não é representativa da nova dinâmica, nem a sindical, nem a empresarial. Por que eu observei que a expressão burguesia me soou estranha? Porque ela se refere a um momento da sociedade em que você tinha uma consciência de classe e uma oposição de classes fortes. Hoje esses vários segmentos se juntam todos e, quase que independentemente da posição de classe, atuam como sociedade civil. Contra o governo.

Folha - E continuam sendo dependentes e associados?
FHC -
Sem dúvida. Pegue a relação das 50 maiores empresas brasileiras: 28 são controladas por brasileiros. Não houve desnacionalização, mas interconexão. Era inevitável. Bastava ter lido Marx ou Rosa Luxemburgo para saber que era inevitável. As pessoas, quando vêem a realidade, dizem: "Ai, meu Deus, não é o que eu pensava". Pior para o que você pensava. As pessoas têm uma certa insolência intelectual. O país precisa de sociólogos analisando isso. Eu, infelizmente, não sou mais...

Folha - O sr. não é mais?
FHC -
Não tenho tempo para dedicar à análise.

Folha - O sr. diz que o país precisa de sociólogos, mas, do lado da oposição, dizem que houve uma paralisia do pensamento crítico desde que o sr. chegou ao Planalto. O sr. teria entorpecido os intelectuais...
FHC -
Mas eu só vejo pensamento crítico [risos]. O problema não é ser crítico ou não, é o pensamento ser criador. Falta criatividade, falta análise, falta ver o que está acontecendo no país.
Acho que a questão que vocês colocaram é muito importante, porque diz respeito à mudança do padrão societário. Qual é a discussão que está havendo nas grandes empresas? É o que eles chamam de "a boa governança corporativa" -não gosto da expressão-, que se aplica tanto a empresas de propriedade estatal quanto de propriedade privada. O desafio delas agora é o da chamada governança transparente. Isso implica que a noção da burguesia, do dono individual e da família, vai desaparecer, porque você vai ter outros critérios, vai profissionalizar.

Folha - Além da diversificação da estrutura social, estão surgindo novas formas de associação...
FHC -
Isso mesmo. Isso é muito importante também.

Folha - E há também um apelo individualista muito forte, que prevalece sobre o coletivo...
FHC -
Eu não sei se é apelo do individualismo, porque as ONGs não são individualistas.

Folha - Talvez sejam uma reação despolitizada ao individualismo.
FHC -
Elas não são individualistas, são a expressão de um novo comunitarismo. Essa idéia difusa de comunitarismo que se expande significa que a experiência comum vale mais do que a posição de classe. A sociedade tem ingredientes novos também nesse aspecto. Hoje o Estado e não é só o Estado. É cada vez mais alguma coisa permeada por essas formas novas da sociedade.

Folha - O seu governo é criticado por não ter atacado a desigualdade, apesar da estabilização.
FHC -
Quando você fala de desigualdade, fala de um processo estrutural, de longo prazo. Eu li há muitos anos um estudo sobre a relação capital/trabalho na Inglaterra. Em cem anos, não variou. O bom, o ideal é você ter no longo prazo uma melhoria na distribuição de renda, e, o quanto antes, um aumento do piso da população. Não são processos excludentes. Você tem de fazer as duas coisas. Só que um é de longo prazo, e outro, de médio prazo. Saíram dados do IBGE nos jornais. A renda média do brasileiro melhorou em termos reais 40% na década passada. E tem gente falando na década perdida. Perdidos são eles, na cabeça. A renda média melhorou. Mas o piso também.

Folha - O sr. se sente injustiçado com a avaliação de que pouco foi feito na área social em sua gestão?
FHC -
Vai haver esse clichê por parte da oposição, e é muito bom porque a mídia gosta. Gosta porque gosta do que é mal. Não é só aqui, é no mundo. "Good news, no news." Manchete não é sobre coisa positiva. Isso é ruim, porque dá a sensação de que as coisas não estão avançando. Estão. Poderiam avançar mais? Poderiam, mas sempre comparativamente. Fizemos muito mais na área social, comparativamente, do que na área econômica. Dizer que o governo se preocupou com a estabilidade só não é verdade, é falso. Eu não me incomodo quando um político diz essas coisas: "FHC não tem sensibilidade social". Isso é da regra deles. Quem sabe da minha sensibilidade? Só eu.




Texto Anterior: Não tem "saco de bondade", diz presidente
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.