São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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POR DENTRO DA ALFÂNDEGA
Folha acompanha por 5 dias a saga dos passageiros para desembarcar no aeroporto de Cumbica
Chegada do exterior vira inferno em SP

MÁRIO MAGALHÃES
em São Paulo


A chegada de passageiros de vôos internacionais ao aeroporto de Guarulhos, na Grande São Paulo, transformou-se num inferno.
Com a obrigatoriedade da apresentação da DBA (Declaração de Bagagem Acompanhada) desde 1º de dezembro, as filas da alfândega aumentaram, provocando demora de até uma hora e 40 minutos, sem contar o tempo de espera pela bagagem e para revista das malas, no caso dos passageiros selecionados pela Receita Federal.
No total, muitas vezes são necessárias mais de três horas para sair do aeroporto, após vôos que podem durar um dia inteiro.
No domingo passado, houve tumulto de manhã no setor de desembarque internacional do terminal 1, onde cerca de mil passageiros se amontoavam com seus carrinhos num espaço médio individual de 1,8 metro quadrado.
Com apenas dois funcionários da Infraero (Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária) para organizar a fila única, que se subdividia desordenadamente em várias outras, em forma de galhos, houve revolta.
"Isto é uma esculhambação!", berrou um passageiro, seguido por outros: "É uma falta de respeito!". "Olha a bagunça!" "Que barbaridade!" "Gringo, pára de furar a fila ou vai levar porrada!"
Dezenas de pessoas começaram a gritar "Vamos invadir!". Invadiram mesmo, furando vários "galhos" da fila.

Um dia antes, no terminal 2, uma mulher desmaiou às 9h56, depois de passar aproximadamente 48 minutos na fila da alfândega.
Ao chegar ao posto do supervisor da Receita, que determina quem terá a bagagem revistada ou inspecionada em raios-X, a passageira caiu no chão.
Atendida pela equipe médica do aeroporto, acordou menos de dez minutos depois.
Durante cinco dias, de sábado retrasado até a última quarta-feira, a Receita promoveu a sua primeira auditoria de qualidade do serviço da alfândega de passageiros nos aeroportos internacionais de São Paulo-Guarulhos e do Rio.
Em Guarulhos, a auditoria foi coordenada pelo chefe da Corregedoria da 1ª Região Fiscal, localizada em Brasília, Rudinei Junkes.
A convite da Receita, a Folha acompanhou a operação. A atenção da Corregedoria se deteve em procedimentos e normas, não em questões disciplinares. Em 1996, seis fiscais foram afastados sob acusação de corrupção.
Depois de receber o relatório dos auditores e os comentários dos inspetores dos aeroportos, o secretário da Receita, Everardo Maciel, vai estudar novas regras para facilitar a vida dos passageiros.

Duas situações ilustram a debilidade da estrutura física e de pessoal com que os fiscais trabalham.
Os tripulantes que chegam ao terminal 2 têm o espaço determinado para colocar as suas declarações de bagagem: uma caixa pequena de papelão, onde antes havia uma garrafa de uísque escocês Royal Salute.
Ao lado, numa caixa grande de outro scotch, Johnnie Walker de rótulo vermelho, são colocadas as declarações dos passageiros, depois de recebidas pelo supervisor da Receita.

A Receita é responsável pela emissão da Declaração de Saída de Bens Estrangeiros, o documento que o viajante recebe comprovando que partiu do Brasil com produto importado, não precisando pagar imposto ao voltar ao país.
Em Guarulhos, no entanto, quem despacha nos balcões de atendimento são guardas da empresa de segurança privada Officio, contratada pelo Ministério da Fazenda, ao qual é subordinada a Receita Federal.
A Folha flagrou seguranças com bolos de declarações carimbadas e pré-assinadas por fiscais. Os guardas entregam os atestados a passageiros que chegam a formar filas com dezenas de pessoas.
No aeroporto paulista, as declarações ainda são preenchidas a mão, ao contrário do que ocorre no Rio, onde se usa computador.

Falta pessoal na alfândega. Em cada turno de 24 horas consecutivas de trabalho (há 72 horas de folga), há em média cinco fiscais por terminal, incluindo o supervisor e funcionários que, na verdade, são técnicos do Tesouro.
Como na temporada de férias existe reforço, diariamente há 12 fiscais em serviço, um para cada mil passageiros, nos dias de pico de movimento (sábado, domingo e segunda-feira) na temporada de férias.
Entre as 7h30 e as 12h30, o terminal 2 chega a receber 4.500 passageiros -900 por hora, 15 a cada minuto.
No ano passado, chegaram do exterior 2,848 milhões de passageiros, com média diária de 7.802.
Foram vistoriados 340 mil (11,9%), dos quais 20 mil (0,007%) foram tributados, pagando R$ 9,425 milhões em imposto de importação e multa, no caso dos que traziam compras acima do valor permitido.
Até dezembro, não havia obrigatoriedade de declarar a bagagem. Com a DBA, as filas aumentaram, e a arrecadação diminuiu.

Nos sete últimos dias de novembro, a alfândega do terminal 1, que concentra de 35% a 40% do movimento total de chegadas do exterior, arrecadou R$ 59.402,88.
De 10 a 16 de janeiro, com um movimento de passageiros no mínimo superior em 8%, segundo projeção da Infraero, houve tributação de R$ 36.156,88 -uma redução de 39,13%.
De acordo com os fiscais da Receita, a existência da declaração inibe tentativas de entrada ilegal no país com produtos acima dos US$ 500 permitidos, daí a queda.
Se uma pessoa chega com US$ 1.000 em produtos eletrônicos importados, por exemplo, ela precisa pagar imposto de importação de 50% relativo à diferença sobre os US$ 500. Nesse caso, desembolsará, em real, o equivalente a US$ 250.
Caso não tenha descrito na DBA o conteúdo da bagagem, além do imposto de importação pagará multa de 25%: US$ 125. No total, recolherá US$ 375 à União.
Com a DBA, foi mantida a média de fiscalização, abrindo-se malas ou as examinando em aparelhos de raios-X. Para diminuir as filas, a checagem tem de ser mais rápida.
As filas também levam alguns supervisores da Receita a liberar passageiros sem declaração -se os mandarem voltar, haverá mais demora. Entre a liberação e o rigor, eles preferem evitar tumultos como os de domingo.

Um dos maiores obstáculos ao passageiro que desembarca em Guarulhos vindo do exterior é a desinformação. Não há um só aviso de que o passageiro é obrigado a apresentar a DBA -a isenção é restrita aos menores de 16 anos desacompanhados.
Empresas aéreas como Varig e American, de acordo com dezenas de depoimentos, não informam sobre a necessidade da declaração, informam incorretamente ou, muitas vezes, não distribuem os formulários a bordo.
Um dos poucos cartazes visíveis na alfândega alerta o passageiro para o artigo 332 do Código Penal: "Exploração de prestígio (carteirada). Pena de reclusão de um a cinco anos e multa".
No domingo à tarde, no terminal 2, havia sobre uma mesa a carta da chefe de gabinete de uma deputada federal, pedindo "agilidade" na liberação da parlamentar, que chegaria de Lisboa e teria compromissos "urgentes" em Brasília, para onde seguiria.
Anteontem, uma passageira não queria pagar imposto relativo ao vestido de US$ 50 mil comprado em Paris para um casamento, alegando que a peça não era para ela.

A maior parte das apreensões resulta de denúncias -o contrabando (importação de produtos proibidos) e o descaminho (importação de produtos permitidos sem o pagamento do imposto devido) se concentram no setor de cargas.
Às vezes, a idiossincrasia dos suspeitos atrapalha. O dono de uma loja em Miami telefonou para a Receita denunciando uma "sacoleira" que comprara US$ 150 mil em roupas.
A "sacoleira" era loira. Segundo os fiscais, quase todas as compradoras de produtos em Miami que tentam burlar a fiscalização são loiras. Resultado: em meio a muitas loiras, não se encontrou a suposta "sacoleira".
Em algumas revistas, os servidores da Receita flagram passageiros constrangidos com a revelação de intimidades, como um homem que portava um instrumento de auto-satisfação sexual e uma passageira, com fotos à vontade junto a uma parceira.

O secretário Everardo Maciel disse que, ao encomendar a auditoria, "quis fazer um serviço melhor, mesmo se expondo, o que não é usual no serviço público". Quando recebeu as conclusões preliminares, na sexta-feira, ele antecipou algumas propostas e recomendações.
A principal reclamação dos 95 passageiros entrevistados pelos auditores foi em relação às filas. A maioria (87,9%) considerou ótimo ou bom o atendimento.
Para diminuir as filas, Maciel reafirmará uma norma já publicada que determina a revista da bagagem de 5% dos passageiros, menos do que a metade do índice registrado em 1998.
De acordo com o secretário, a queda na arrecadação ocorrida com a DBA era esperada.
"A aduana não é para arrecadar, mas para exercer controle. Quando arrecada demais, o país está perdido. É como a multa de trânsito. Se cresce significativamente, é porque o trânsito está desorganizado."
"O problema das filas não é da DBA, mas da infra-estrutura. Há problema antes, na espera da bagagem, não há placas claras."
Everardo Maciel reconhece ser "errado" permitir que seguranças privados façam atendimento que deveria ser de fiscais.
Uma das idéias que podem ser encaminhadas é o recolhimento dos impostos em máquinas, e não com preenchimento do formulário por funcionário da Receita, e o pagamento numa agência bancária no aeroporto.
Na opinião do secretário, o caos nas filas da alfândega é responsabilidade da Infraero, que diz ser seu papel apenas apoiar a Receita.
A Varig reconhece problema na falta de distribuição de formulários. A empresa afirma ter impresso 200 mil DBAs, por "não ter recebido da Receita o número suficiente". Segundo Everardo Maciel, a companhia é obrigada a imprimir e fornecer as declarações.



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