São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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ELIO GASPARI

O apagado pagará pelo apagão

Quando resolveram privatizar as estatais do setor elétrico, os sábios do tucanato prometiam mais investimentos e melhores serviços. Interessados em atrair dólares para sustentar o populismo cambial, ofereceram aos eventuais compradores contratos que cobriam quaisquer riscos. Garantiram tarifas e aceitaram moedas podres. Passados sete anos, a política de energia do governo resultou em aumentos de tarifas, dois apagões continentais e um racionamento africano. Até aí, tudo bem. Resta a conta.
Nessa transação havia quatro interessados. O governo, as geradoras de energia (que são do governo na hora de pedir dinheiro e empresas privadas na hora de gastá-lo como bem entendem), as distribuidoras e, finalmente, a choldra.
O racionamento fez com que as geradoras não entregassem às distribuidoras a energia que tinham contratado. As distribuidoras calcularam que isso lhes provocou uma perda de receita de R$ 5 bilhões. Juntaram-se e foram à Viúva. Ela deu às distribuidoras empréstimos do velho e bom BNDES.
Como nas bodas de Canaã, a água virou vinho. A repórter Leila Coimbra mostrou que, pelas simulações já feitas de seu balanço, a Eletropaulo caminhava para um prejuízo de R$ 600 milhões. Transformou-o num lucro de R$ 1 bilhão. A Light registrará um faturamento adicional de R$ 407 milhões como se resultasse de venda de energia, quando resulta do empréstimo.
Para as empresas, a água virou vinho. Para a patuléia, o vinho virou vinagre. Como havia outra defasagem, cambial, a choldra tomou um aumento de tarifas (2,9% para os consumidores residenciais e 7,9% para as indústrias). Disseram que vigoraria por três anos. Lorota. Fala-se agora em mantê-lo por mais 12 ou 18 meses.
Os gênios que fizeram os contratos da privatização continuam bem, obrigado, quase todos trabalhando na banca ou na sua periferia chique. As geradoras não pagaram pela mercadoria que não entregaram e as distribuidoras foram compensadas por aquilo que não lhes foi entregue.
A privataria do tucanato transformou os brasileiros numa espécie rara. Pagam mais pela energia, porque foram obrigados a consumir menos. Nesse ritmo, um dia vão cobrar taxa a quem não almoça.
Os oito anos de FFHH ainda não terminaram. E não terminarão sem que as companhias concessionárias de serviços de telefonia saiam por aí defendendo a revisão de seus contratos. Dizem que planejaram vender serviços a um mercado de 100 milhões de brasileiros que ora não os compram, ora não os pagam. Esse é um dos argumentos da Embratel para justificar os R$ 554 milhões de seu prejuízo no ano passado. Não contam que sua diretoria cometeu o erro crasso de obrigar os consumidores a procurar os bancos para pagar suas contas, enquanto seu concorrente, a Intelig, cobrava-as em consórcio com a conta telefônica convencional. (A Embratel torrou R$ 595 mil no famoso Reveillón de 1999, avec FFHH.)
Já apareceu um telebarão dizendo que, sem a revisão dos contratos, não poderá manter seu programa de investimentos. Alô, alô, esse é o primeiro miado dos concessionários. Depois, ou o Estado faz o que eles querem, ou começam a negociar a reestatização.
Está muito certa a propaganda do Planalto, "oito anos construindo o futuro". É a melhor maneira de evitar que a escumalha discuta o presente.


A inocência de Inocêncio Oliveira

O ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, desativou uma bomba que poderia ter provocado uma nova explosão nas relações entre o PFL e o governo. Mobilizados pelo Ministério Público, seus fiscais bateram na fazenda Caraíbas, de propriedade do deputado Inocêncio Oliveira. Uma denúncia acusava-o de escravizar trabalhadores. O que os fiscais acharam ainda não contaram, pois o relatório só ficará pronto nos próximos dias. Para evitar uma repetição dos vazamentos da empresa Lunus, Dornelles esclareceu que não havia "elementos que caracterizassem a existência de trabalho escravo" na Caraíbas. No barato, os peões que trabalhavam na fazenda do doutor Inocêncio não tinham carteira assinada. Nada demais, porque dois empregados de FFHH na sua fazenda mineira só tiveram o registro assinado no dia seguinte ao lançamento de sua candidatura à Presidência da República, em 1994.
O repórter Mauro Albano contou que 25 ex-trabalhadores da fazenda queixaram-se de ter servido por dois meses num roçado da Caraíbas em troca de R$ 20 de remuneração flexibilizada.
A fazenda do deputado tem 8.000 hectares, 2.800 cabeças de gado e cinco funcionários, todos com os papéis em ordem. Segundo Inocêncio, "como em toda fazenda da região e do Brasil" os serviços temporários são gerenciados por um "gato" que contrata mão de obra avulsa. "Não tenho nenhuma relação com esse processo", informou o deputado. Ou seja, Inocêncio Oliveira tem tanto a ver com as relações de trabalho na fazenda Caraíbas como uma pessoa que está perdendo uma parte de seu domingo para ler este texto.
O deputado sabe que entre a hora da requisição e a chegada dos fiscais à sua propriedade passaram-se pouco mais de 24 horas, quando uma operação dessas demora em geral três dias. A chefe do serviço de fiscalização nada sabia da diligência e, de acordo com as boas normas, os fiscais não sabiam para onde iam.
Tudo isso não elimina o fato de que há contra a fazenda Caraíbas uma denúncia de ter pago R$ 20 por dois meses de trabalho a um lote de 25 brasileiros. Essa denúncia está devidamente protocolada numa Delegacia do Trabalho do Piauí. Dela resulta que cada um desses trabalhadores custaria R$ 130 por ano (admitindo-se que lhe pagassem o 13º salário). A esse preço, uma existência de 30 anos de trabalho flexibilizado na fazenda do líder do PFL valem R$ 3.900.
O deputado escandalizou-se porque surgiu a insinuação de que estaria usando mão-de-obra escrava. Injustiça. Disso não podem ser acusados os escravocratas. Em 1860 um negro custava o equivalente a R$ 12 mil em dinheiro de hoje. Na Caraíbas (e em todas as fazendas assemelhadas), com esse dinheiro compra-se o trabalho de três brasileiros por 30 anos e sobra troco. É provável que, em quase quatro séculos de escravidão, o negro nunca tenha sido cotado a um preço tão baixo. Isso sem levar em conta que os senhores de escravos não flexibilizaram suas relações com os escravos. Quando os negros jovens adoeciam, prestavam-lhe alguma assistência (para preservar o investimento). Um negro imprestável acabava encostado na fazenda, ao passo que no regime atual o trabalhador inválido vai para a folha do INSS, para a qual nem Inocêncio, nem seus "gatos" contribuem. Não se faça tamanha descortesia à escravidão.
A fazenda Caraíbas situa-se na divisa dos municípios de Senador Alexandre Costa (MA) e Gonçalves Dias (PI). Em homenagem ao poeta, Inocêncio Oliveira poderia por uma inscrição na entrada de sua propriedade. Diria o seguinte:
"E nós -Homens- Brasileiros,
Nós sujeitos -nós curvados,
Fomos servos largos anos,
Largos anos -negregados!"


Quiromancia

O PTB está conversando com o PFL para formar uma coligação em torno da candidatura de Ciro Gomes. Por enquanto, essas conversas ainda não chegaram a ter a densidade de uma nuvem e continuarão desse jeito enquanto Roseana Sarney estiver no palanque.
O senador Roberto Freire, presidente do PPS, detesta a idéia. Ciro Gomes não acredita que ela possa se materializar formalmente. Na cúpula do PFL, ela parece perda de tempo.
Apesar de todas essas inviabilidades, não é coisa impossível. Sobretudo se Roseana Sarney decidir deixar a disputa com o desejo expresso de subir no palanque de Ciro Gomes.


Coisa de doido

Há uma crise entre o governo e o PFL, e ela pode resultar no fim da candidatura do partido à Presidência da República.
O mais longo discurso de defesa da candidata do PFL (Roseana Sarney) veio de um senador do PMDB (José Sarney). Ocorreu no dia em que o seu partido estava fechando uma coligação com o PSDB.


O pulo do "gato"

Aconteceu, mas não se pode dizer onde:
Uma distribuidora de energia bateu firme nas ligações clandestinas e botou os bairros populares a pagar pela luz que recebiam.
Apareceram alguns fiscais e descobriram que a empresa não recolhia o ICMS desse novo nicho de mercado. Tentaram uma conversa com a empresa e foram apanhados por uma empresa de segurança.
Ia-se abrir um inquérito quando se viu que um pedaço do dinheiro que a empresa recebia não estava em sua contabilidade. Esqueceu-se o assunto.


O leitor esclarece

O governador do Piauí, Hugo Napoleão, informa: no início de 1997, levou a FFHH um dossiê denunciando irregularidades nos contratos do DNER no seu Estado. A documentação básica do papelório vinha de um parecer de consultoria do Ministério dos Transportes. O deputado Luís Eduardo Magalhães sabia do assunto, mas não esteve na cena da entrega do dossiê a FFHH.
Na época, o DNER piauiense terceirizara seus interesses, sublocando-os ao PMDB local. As principais denúncias, partidas de servidores públicos, relacionavam-se a obras entregues à empreiteira Sucesso.


ENTREVISTA
Lula
(56 anos, candidato a presidente da República pelo PT)

-Como vítima de algumas das maiores baixarias já praticadas em campanhas presidenciais, o que o senhor sugere aos seus adversários para impedir que a disputa deste ano vire uma briga na lama?
-Vamos respeitar o povo. Ele tem o direito de escolher entre propostas e idéias, em vez de ser bombardeado por insultos. Em 1986, na campanha pelo governo de São Paulo, o Maluf, o Quércia e o Antônio Ermírio de Moraes passaram meses chamando-se de tudo. Se metade fosse verdade, os três deveriam ter sido presos antes do dia da eleição. O Quércia venceu e todos esqueceram as acusações que tinham feito. Já teve caso de candidato acusado de mandar matar gente, com testemunhas. Foram ver, era mentira. Teve também candidato que fez o que bem entendeu durante a campanha e foi condenado oito anos depois, quando já tinha exercido o mandato. A baixaria destina-se a evitar o debate. O que eu sugiro é um esforço para que se discuta mais e se xingue menos.
-O senhor tem algo a propor?
-O PT vem propondo há quase dez anos o financiamento público das campanhas, acabando com as doações privadas. Essa é uma das melhores fórmulas para acabar com a corrupção política no Brasil. O TSE poderia tomar iniciativas para que as denúncias provadas tramitassem com rapidez, para que o eleitor pudesse ver a ação da Justiça. Veja esse caso do R$ 1,3 milhão achado no cofre do Jorge Murad. É coisa grave e inexplicada, mas quantos R$ 1,3 milhão estão zanzando por aí? Quantos 1,3 milhão custa essa campanha de publicidade que o governo está fazendo? Gastam o dinheiro das estatais e se recusam a informar quanto ela custa. Quer dizer que R$ 1,3 milhão, quando é gasto pelo governo, faz parte da vida normal? É o caso de pensar se não seria útil o TSE formar uma comissão com representantes de partidos e da sociedade para acompanhar a campanha, vigiando os gastos, prestando atenção no equilíbrio dos meios de comunicação. Não precisa chamar a ONU. Nós mesmos podemos fazer.
-O que a imprensa poderia fazer?
-De saída, sugiro que as faculdades de comunicação organizem grupos de estudo para analisar o comportamento da imprensa durante a campanha. Será uma grande oportunidade para os estudantes. Na campanha de 1989, eu e o Covas aparecíamos suados, enquanto o Collor estava sempre penteadinho, com uma samambaia ao fundo. A imprensa pode acompanhar os gastos. Uma vez eu fui a Governador Valadares num aviãozinho que acabou caindo em Juiz de Fora. Quando o Collor foi lá, pousaram 11 aviões. A gente deveria começar a discutir a questão dos debates. Eu falo com a autoridade de candidato que jamais recusou um convite para debater. O formato no qual aparecem dez candidatos respondendo por dois minutos já se mostrou ineficaz. Por que não fazemos debates como no futebol, com disputas dois a dois? Podemos também pensar na volta do palanque eletrônico. O cara senta diante de jornalistas e personalidades e responde a perguntas feitas por eles e pelos telespectadores. A gente precisa botar na cabeça que a eleição é uma oportunidade para estimular a consciência política do povo. As baixarias e a falta de debate destinam-se a evitar que isso aconteça.



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