São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2006

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ENTREVISTA DA 2ª

MICHELLE BACHELET

Para a presidente do Chile, país precisa de mais investimentos sociais para corrigir desigualdade

Prosperidade tem de chegar aos mais pobres, diz Bachelet

RAUL JUSTE LORES
ENVIADO ESPECIAL A SANTIAGO

Filha de uma antropóloga e de um general fiel ao presidente deposto Salvador Allende, que foi torturado e morto sob a ditadura do general Augusto Pinochet, a nova presidente do Chile, Michelle Bachelet, 54, promete melhorar o modelo chileno, para que a riqueza chegue a todos. Desde o fim da ditadura, há 16 anos, a coalizão de centro-esquerda Concertación está no poder. Sucesso de crescimento econômico -6% ao ano na última década-, a pobreza foi reduzida pela metade, mas a distribuição de renda ainda é muito ruim -é o país mais desigual da América Latina, junto a Brasil e México.
A novidade não terminou com a eleição da primeira mulher presidente do Chile. Ela nomeou um ministério com o mesmo número de homens e mulheres. No que era o país mais conservador da América Latina, onde o divórcio ficou proibido até 2004 e filmes eram censurados, a presidente não foi batizada, é agnóstica e nunca se casou no religioso. Entre sues ministros há sete ateus e três judeus -os católicos, surpreendentemente, são minoria.
Bachelet teve dois filhos com seu primeiro marido, com quem se casou na antiga Alemanha Oriental, onde ficou exilada. De volta ao Chile, namorou por dois anos o porta-voz de um grupo guerrilheiro. Já na última década, teve sua terceira filha com um médico, colega dela na Comissão Nacional de Aids. "Sou mãe solteira", costuma dizer.
Leia trechos da entrevista que a presidente do Chile deu à Folha em seu gabinete, no Palácio de la Moneda.

 

Folha - Em qualquer fórum internacional, os três países considerados modelos de estabilidade e crescimento econômico na América Latina são Brasil, Chile e México. Justamente os três com a pior distribuição de renda na região. O que se fez de errado?
Bachelet -
Não me atrevo a falar de Brasil e México, pois não conheço os casos tão profundamente. No Chile, o que aconteceu é que o crescimento econômico nos anos 80, que continuou nos anos 90, aconteceu junto com uma concentração de poder político e econômico muito forte. Tratamos de reduzir isso, por meio de políticas sociais. Mas a desigualdade social é ainda muito forte no Chile. Os 20% mais ricos ainda são 14 vezes mais ricos que os 20% mais pobres. Mas, quando você mede os efeitos das políticas sociais e dos subsídios para a saúde, habitação, educação, a diferença diminui muito.
Não há coesão social de graça. O povo tem que se sentir parte de um projeto. As pessoas mais vulneráveis têm que sentir que sua situação melhora também. Quero dar muita força às políticas sociais. Os benefícios do crescimento econômico, a prosperidade precisam chegar aos mais pobres.

Folha - Como fazer com que o crescimento econômico chegue para valer aos mais pobres?
Bachelet -
Quero promover mais emprego digno e decente, não emprego precário. Lancei um pacote de 36 medidas para os cem primeiros dias do governo. São medidas de economia, emprego, meio ambiente, políticas sociais, competitividade, que vão da criação de um fundo estatal para mandar professores de inglês para estudar um semestre no exterior a trazer mais professores de língua inglesa para docência no Chile. Um programa que vai dar bolsas aos mil formandos com as melhores notas das universidades chilenas para que façam doutorado nas melhores universidades do mundo. Criaremos o programa de Serviço Cidadão, que juntará jovens de diferentes classes sociais em trabalhos comunitários, como alternativa ao serviço militar obrigatório.

Folha - Como melhorar a vida dos que ainda não ganharam com o crescimento do Chile?
Bachelet -
Vou criar um fundo para ajudar empreendimentos ou capacitação profissional de todo o maior de 40 anos que tenha perdido o emprego. Também quero que nossas etnias, nossos povos originais, tenham programas de apoio, que se sintam muito mais incluídos no crescimento econômico do país. Que as mulheres não sejam discriminadas. Para mesma função, o mesmo salário. Reajustaremos as pensões mais baixas do país, beneficiando um milhão de pensionistas.

Folha - Mas a Previdência chilena precisa de reformas urgentes. O que a senhora pretende fazer?
Bachelet -
O mundo inteiro está discutindo a Previdência Social. Queremos um modelo que seja sustentável a longo prazo. Só sei que quero garantir pensões dignas para chilenos e chilenas que estão em um mercado de trabalho muito diferente de quando se formulou esse sistema. Temos uma enorme quantidade de trabalhadores autônomos, que não estão inscritos no sistema, ou que não têm renda permanente. O sistema previdenciário não dá conta deles. Isso nos obriga a ter um grande pilar solidário.

Folha - De onde vai sair o dinheiro para esses programas sociais?
Bachelet -
Nós acreditamos que, com o crescimento econômico que temos, com os preços altos do cobre, com a luta contra a sonegação, teremos recursos suficientes para avançar nesse plano de igualdade. O que não está contemplado aí é a reforma previdenciária. Porque não dá para contemplar sem saber ainda qual a profundidade da reforma, quanto vai custar depois dela. Vou manter os 19% do IVA (o ICMS chileno). Os candidatos sempre dizem que vão diminuir os impostos. Eu não disse essa mentira.

Folha - A senhora falou várias vezes em aumentar os gastos sociais, quase um palavrão para muitos que defendem o modelo chileno. E o estado de bem-estar social europeu está em crise. É possível crescimento com o aumento de gastos?
Bachelet -
Historicamente, o mundo da economia neoliberal mais ortodoxa diz que você tem que fazer uma troca ou uma concessão. Ou há crescimento, ou há eqüidade. Eu estou convencida de que o crescimento tem que acontecer com mais eqüidade. Fizemos muitos avanços nos últimos anos, especialmente no governo Lagos. Se continuarmos a crescer, daremos passos muito importantes. Somos uma democracia, não só por escolher seus representantes, mas por dar mais oportunidades a seus filhos e filhas.

Folha - Como são as comissões de especialistas que a senhora formou para colaborar no governo?
Bachelet -
Convidamos especialistas em todas essas áreas. Temos que estar de acordo sobre o que queremos como país. Da reforma da Previdência à reforma eleitoral, quero saber o que pensam e o que propõem os mais diferentes setores. O Parlamento fará seu papel, discutirá tudo o que tem que discutir. Mas não quero projetos que fiquem dez anos parados. Quero apresentar projetos que já tenham uma análise de consenso. No Chile temos uma experiência. Quando conseguimos construir grandes acordos nacionais, diante de grandes temas, damos certo. Quando não somos capazes de nos colocar de acordo, a história nos demonstra que não fomos nada bem.

Folha - E a decisão de colocar o mesmo número de ministros e ministras?
Bachelet -
Eu escolhi um ministério paritário. O tema do gênero é indispensável. Quando fui ministra da Defesa, preocupei-me com a situação das mulheres, que não estavam à altura dos homens. E conseguimos muitos avanços. No próximo ano, pela primeira vez na história do Chile, entrarão mulheres na Escola Naval. Fui a primeira mulher o ocupar a pasta da Saúde no país, mas ninguém deu muita importância. Mas, quando fui ministra da Defesa, isso chamou a atenção, como se as mulheres tivessem ultrapassado uma barreira importante.

Folha - Como o Chile pretende continuar crescendo?
Bachelet -
Temos que continuar a fazer tudo o que já fazemos bem, mas introduzir coisas novas. Inovação, ciência, tecnologia; descobrir quais são os nichos de oportunidade para nós. Somos um país pequeno, ao contrário da potência que é o Brasil. Portanto precisamos de trabalhadores bem qualificados e capacitados, bem pagos. O que sempre tratamos de ser é extraordinariamente responsáveis. Que haja disciplina fiscal muito importante, superávit estrutural, é uma regra que vamos manter. Um sistema tributário mais adequado, mais racional.

Folha - O Chile está com problemas com a Argentina por causa do fornecimento de gás. A falta de energia pode ser um obstáculo para o crescimento do país?
Bachelet -
Nós estamos desenvolvendo uma política energética "multi". Multifontes, multipaíses... Procuramos as fontes mais baratas possíveis e menos poluentes. Vamos continuar a usar gás natural, mas diversificando nossas fontes fornecedoras. Queremos avançar em fontes renováveis de energia, eólica, solar, geotérmica.
Foi um dos assuntos de que tratei com o presidente Lula. Sei da experiência do Brasil com o álcool; temos muita vontade de cooperação nessa área. Espero que consigamos fazer um anel energético na região. A reserva global de energia na América Latina é suficiente, mas, como cada país tenta resolver o problema sozinho, encontra dificuldades.

Folha - A senhora permitiria o acesso ao mar da Bolívia em troca de fornecimento de gás natural, que lá existe de sobra?
Bachelet -
A Bolívia tem acesso ao mar, por conta de alguns tratados, depois do conflito bélico. É a soberania que é questionada. Mas nós podemos continuar a trabalhar com muita força em melhorar a qualidade desse acesso. O que nós falamos para a Bolívia é que estamos abertos a uma agenda sem exclusões. Uma agenda de futuro. Nós gostaríamos de reatar as relações diplomáticas, mas sem condições. E aí termos um mecanismo para conversar sobre todos os assuntos de interesse bilateral.

Folha - A senhora falou de reparação das vítimas da violência política. O que falta para reparar o legado da ditadura?
Bachelet -
Vamos reparar as vítimas dos dois lados, demos passos importantes. Houve reparação econômica para muitas famílias, reparação moral, monumentos pelo país. A memória histórica não pode desaparecer. Não com afã revanchista; não é o espírito do presidente Lagos nem o meu. O povo tem que tirar lições do que fizemos de errado no passado. E que nunca mais se passe por cima da democracia.

Folha - E o sistema eleitoral, criado por Pinochet?
Bachelet -
Temos democracia, escolhemos nossos representantes. Mas nosso sistema não é perfeito; precisamos de um sistema proporcional. Quero eliminar as exclusões. Partidos políticos representativos que têm força na sociedade não conseguem ter uma cadeira no Parlamento. As mulheres têm poucas possibilidades, temos escassa representação. Só 4% dos senadores -dois- e 11% dos deputados. Quero mecanismos para garantir mais espaço. Necessitamos quorum muito alto para fazer essas mudanças. Vamos procurar o apoio de setores da direita, que estejam convencidos de que este país merece um sistema mais proporcional.

Sempre se fala em "aproximar" o Chile do Brasil e do Mercosul. O Chile é distante? O que falta fazer para efetivar essa aproximação?
Bachelet -
Reconheço e estou certa de que uma relação profunda entre Chile e Brasil é uma garantia para a estabilidade regional e para que nossas vozes sejam escutadas no contexto mundial. Por isso estaremos em todos os níveis de integração regional, com a Argentina, com o México, com os demais países. Tenho uma proximidade especial com o Brasil, aos 15 anos estudei no Centro de Estudos Brasileiros em Santiago, sabia músicas brasileiras de cor.

Folha - Como foi seu encontro com o presidente Lula?
Bachelet -
Falei ao presidente Lula da minha plena vontade de continuar a desenvolver mais intensamente uma série de pontos -comerciais, culturais, educacionais, serviços... Além de termos uma perspectiva comum de como estamos olhando o comércio multilateral. Apoiamos fortemente a iniciativa do G20.

Folha - O Chile era o país mais conservador da América Latina. Até há pouco, o divórcio era proibido, filmes e livros eram censurados. Sua eleição foi tida como um sinal de liberação. Ainda falta muito para o país não ser considerado retrógrado?
Bachelet -
Não podemos ter um país que queira ser moderno no mundo da economia e continuar a ser extremamente pouco moderno em outras áreas. O Chile se modernizou em seu conjunto. Há mais conscientização de seus direitos. Que seja uma boa pátria, ou, como as feministas diriam, uma "mátria". Quero que a diversidade seja considerada algo enriquecedor. E que não haja exclusões.


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