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ENTREVISTA DA 2ª
MICHELLE BACHELET
Para a presidente do Chile, país precisa de mais investimentos sociais para corrigir desigualdade
Prosperidade tem de chegar aos mais pobres, diz Bachelet
RAUL JUSTE LORES
ENVIADO ESPECIAL A SANTIAGO
Filha de uma antropóloga e de
um general fiel ao presidente deposto Salvador Allende, que foi
torturado e morto sob a ditadura
do general Augusto Pinochet, a
nova presidente do Chile, Michelle Bachelet, 54, promete melhorar o modelo chileno, para que a
riqueza chegue a todos. Desde o
fim da ditadura, há 16 anos, a coalizão de centro-esquerda Concertación está no poder. Sucesso de
crescimento econômico -6% ao
ano na última década-, a pobreza foi reduzida pela metade, mas a
distribuição de renda ainda é
muito ruim -é o país mais desigual da América Latina, junto a
Brasil e México.
A novidade não terminou com a
eleição da primeira mulher presidente do Chile. Ela nomeou um
ministério com o mesmo número
de homens e mulheres. No que
era o país mais conservador da
América Latina, onde o divórcio
ficou proibido até 2004 e filmes
eram censurados, a presidente
não foi batizada, é agnóstica e
nunca se casou no religioso. Entre
sues ministros há sete ateus e três
judeus -os católicos, surpreendentemente, são minoria.
Bachelet teve dois filhos com
seu primeiro marido, com quem
se casou na antiga Alemanha
Oriental, onde ficou exilada. De
volta ao Chile, namorou por dois
anos o porta-voz de um grupo
guerrilheiro. Já na última década,
teve sua terceira filha com um
médico, colega dela na Comissão
Nacional de Aids. "Sou mãe solteira", costuma dizer.
Leia trechos da entrevista que a
presidente do Chile deu à Folha
em seu gabinete, no Palácio de la
Moneda.
Folha - Em qualquer fórum internacional, os três países considerados modelos de estabilidade e crescimento econômico na América Latina são Brasil, Chile e México. Justamente os três com a pior distribuição de renda na região. O que se
fez de errado?
Bachelet - Não me atrevo a falar
de Brasil e México, pois não conheço os casos tão profundamente. No Chile, o que aconteceu é
que o crescimento econômico nos
anos 80, que continuou nos anos
90, aconteceu junto com uma
concentração de poder político e
econômico muito forte. Tratamos
de reduzir isso, por meio de políticas sociais. Mas a desigualdade
social é ainda muito forte no Chile. Os 20% mais ricos ainda são 14
vezes mais ricos que os 20% mais
pobres. Mas, quando você mede
os efeitos das políticas sociais e
dos subsídios para a saúde, habitação, educação, a diferença diminui muito.
Não há coesão social de graça. O
povo tem que se sentir parte de
um projeto. As pessoas mais vulneráveis têm que sentir que sua situação melhora também. Quero
dar muita força às políticas sociais. Os benefícios do crescimento econômico, a prosperidade
precisam chegar aos mais pobres.
Folha - Como fazer com que o
crescimento econômico chegue para valer aos mais pobres?
Bachelet - Quero promover
mais emprego digno e decente,
não emprego precário. Lancei um
pacote de 36 medidas para os cem
primeiros dias do governo. São
medidas de economia, emprego,
meio ambiente, políticas sociais,
competitividade, que vão da criação de um fundo estatal para
mandar professores de inglês para estudar um semestre no exterior a trazer mais professores de
língua inglesa para docência no
Chile. Um programa que vai dar
bolsas aos mil formandos com as
melhores notas das universidades
chilenas para que façam doutorado nas melhores universidades do
mundo. Criaremos o programa
de Serviço Cidadão, que juntará
jovens de diferentes classes sociais em trabalhos comunitários,
como alternativa ao serviço militar obrigatório.
Folha - Como melhorar a vida dos
que ainda não ganharam com o
crescimento do Chile?
Bachelet - Vou criar um fundo
para ajudar empreendimentos ou
capacitação profissional de todo o
maior de 40 anos que tenha perdido o emprego. Também quero
que nossas etnias, nossos povos
originais, tenham programas de
apoio, que se sintam muito mais
incluídos no crescimento econômico do país. Que as mulheres
não sejam discriminadas. Para
mesma função, o mesmo salário.
Reajustaremos as pensões mais
baixas do país, beneficiando um
milhão de pensionistas.
Folha - Mas a Previdência chilena
precisa de reformas urgentes. O
que a senhora pretende fazer?
Bachelet - O mundo inteiro está
discutindo a Previdência Social.
Queremos um modelo que seja
sustentável a longo prazo. Só sei
que quero garantir pensões dignas para chilenos e chilenas que
estão em um mercado de trabalho
muito diferente de quando se formulou esse sistema. Temos uma
enorme quantidade de trabalhadores autônomos, que não estão
inscritos no sistema, ou que não
têm renda permanente. O sistema
previdenciário não dá conta deles.
Isso nos obriga a ter um grande
pilar solidário.
Folha - De onde vai sair o dinheiro para esses programas sociais?
Bachelet - Nós acreditamos que,
com o crescimento econômico
que temos, com os preços altos do
cobre, com a luta contra a sonegação, teremos recursos suficientes
para avançar nesse plano de igualdade. O que não está contemplado aí é a reforma previdenciária.
Porque não dá para contemplar
sem saber ainda qual a profundidade da reforma, quanto vai custar depois dela. Vou manter os
19% do IVA (o ICMS chileno). Os
candidatos sempre dizem que vão
diminuir os impostos. Eu não disse essa mentira.
Folha - A senhora falou várias vezes em aumentar os gastos sociais,
quase um palavrão para muitos
que defendem o modelo chileno. E
o estado de bem-estar social europeu está em crise. É possível crescimento com o aumento de gastos?
Bachelet - Historicamente, o
mundo da economia neoliberal
mais ortodoxa diz que você tem
que fazer uma troca ou uma concessão. Ou há crescimento, ou há
eqüidade. Eu estou convencida de
que o crescimento tem que acontecer com mais eqüidade. Fizemos muitos avanços nos últimos
anos, especialmente no governo
Lagos. Se continuarmos a crescer,
daremos passos muito importantes. Somos uma democracia, não
só por escolher seus representantes, mas por dar mais oportunidades a seus filhos e filhas.
Folha - Como são as comissões de
especialistas que a senhora formou
para colaborar no governo?
Bachelet - Convidamos especialistas em todas essas áreas. Temos
que estar de acordo sobre o que
queremos como país. Da reforma
da Previdência à reforma eleitoral, quero saber o que pensam e o
que propõem os mais diferentes
setores. O Parlamento fará seu papel, discutirá tudo o que tem que
discutir. Mas não quero projetos
que fiquem dez anos parados.
Quero apresentar projetos que já
tenham uma análise de consenso.
No Chile temos uma experiência.
Quando conseguimos construir
grandes acordos nacionais, diante
de grandes temas, damos certo.
Quando não somos capazes de
nos colocar de acordo, a história
nos demonstra que não fomos
nada bem.
Folha - E a decisão de colocar o
mesmo número de ministros e ministras?
Bachelet - Eu escolhi um ministério paritário. O tema do gênero
é indispensável. Quando fui ministra da Defesa, preocupei-me
com a situação das mulheres, que
não estavam à altura dos homens.
E conseguimos muitos avanços.
No próximo ano, pela primeira
vez na história do Chile, entrarão
mulheres na Escola Naval. Fui a
primeira mulher o ocupar a pasta
da Saúde no país, mas ninguém
deu muita importância. Mas,
quando fui ministra da Defesa, isso chamou a atenção, como se as
mulheres tivessem ultrapassado
uma barreira importante.
Folha - Como o Chile pretende
continuar crescendo?
Bachelet - Temos que continuar
a fazer tudo o que já fazemos bem,
mas introduzir coisas novas. Inovação, ciência, tecnologia; descobrir quais são os nichos de oportunidade para nós. Somos um
país pequeno, ao contrário da potência que é o Brasil. Portanto
precisamos de trabalhadores bem
qualificados e capacitados, bem
pagos. O que sempre tratamos de
ser é extraordinariamente responsáveis. Que haja disciplina fiscal muito importante, superávit
estrutural, é uma regra que vamos
manter. Um sistema tributário
mais adequado, mais racional.
Folha - O Chile está com problemas com a Argentina por causa do
fornecimento de gás. A falta de
energia pode ser um obstáculo para o crescimento do país?
Bachelet - Nós estamos desenvolvendo uma política energética
"multi". Multifontes, multipaíses... Procuramos as fontes mais
baratas possíveis e menos poluentes. Vamos continuar a usar gás
natural, mas diversificando nossas fontes fornecedoras. Queremos avançar em fontes renováveis de energia, eólica, solar, geotérmica.
Foi um dos assuntos de que tratei com o presidente Lula. Sei da
experiência do Brasil com o álcool; temos muita vontade de
cooperação nessa área. Espero
que consigamos fazer um anel
energético na região. A reserva
global de energia na América Latina é suficiente, mas, como cada
país tenta resolver o problema sozinho, encontra dificuldades.
Folha - A senhora permitiria o
acesso ao mar da Bolívia em troca
de fornecimento de gás natural,
que lá existe de sobra?
Bachelet - A Bolívia tem acesso
ao mar, por conta de alguns tratados, depois do conflito bélico. É a
soberania que é questionada. Mas
nós podemos continuar a trabalhar com muita força em melhorar a qualidade desse acesso. O
que nós falamos para a Bolívia é
que estamos abertos a uma agenda sem exclusões. Uma agenda de
futuro. Nós gostaríamos de reatar
as relações diplomáticas, mas sem
condições. E aí termos um mecanismo para conversar sobre todos
os assuntos de interesse bilateral.
Folha - A senhora falou de reparação das vítimas da violência política. O que falta para reparar o legado da ditadura?
Bachelet - Vamos reparar as vítimas dos dois lados, demos passos
importantes. Houve reparação
econômica para muitas famílias,
reparação moral, monumentos
pelo país. A memória histórica
não pode desaparecer. Não com
afã revanchista; não é o espírito
do presidente Lagos nem o meu.
O povo tem que tirar lições do que
fizemos de errado no passado. E
que nunca mais se passe por cima
da democracia.
Folha - E o sistema eleitoral, criado por Pinochet?
Bachelet - Temos democracia,
escolhemos nossos representantes. Mas nosso sistema não é perfeito; precisamos de um sistema
proporcional. Quero eliminar as
exclusões. Partidos políticos representativos que têm força na
sociedade não conseguem ter
uma cadeira no Parlamento. As
mulheres têm poucas possibilidades, temos escassa representação.
Só 4% dos senadores -dois- e
11% dos deputados. Quero mecanismos para garantir mais espaço.
Necessitamos quorum muito alto
para fazer essas mudanças. Vamos procurar o apoio de setores
da direita, que estejam convencidos de que este país merece um
sistema mais proporcional.
Sempre se fala em "aproximar" o
Chile do Brasil e do Mercosul. O Chile é distante? O que falta fazer para
efetivar essa aproximação?
Bachelet - Reconheço e estou
certa de que uma relação profunda entre Chile e Brasil é uma garantia para a estabilidade regional
e para que nossas vozes sejam escutadas no contexto mundial. Por
isso estaremos em todos os níveis
de integração regional, com a Argentina, com o México, com os
demais países. Tenho uma proximidade especial com o Brasil, aos
15 anos estudei no Centro de Estudos Brasileiros em Santiago, sabia músicas brasileiras de cor.
Folha - Como foi seu encontro
com o presidente Lula?
Bachelet - Falei ao presidente
Lula da minha plena vontade de
continuar a desenvolver mais intensamente uma série de pontos
-comerciais, culturais, educacionais, serviços... Além de termos uma perspectiva comum de
como estamos olhando o comércio multilateral. Apoiamos fortemente a iniciativa do G20.
Folha - O Chile era o país mais
conservador da América Latina.
Até há pouco, o divórcio era proibido, filmes e livros eram censurados. Sua eleição foi tida como um
sinal de liberação. Ainda falta muito para o país não ser considerado
retrógrado?
Bachelet - Não podemos ter um
país que queira ser moderno no
mundo da economia e continuar
a ser extremamente pouco moderno em outras áreas. O Chile se
modernizou em seu conjunto. Há
mais conscientização de seus direitos. Que seja uma boa pátria,
ou, como as feministas diriam,
uma "mátria". Quero que a diversidade seja considerada algo enriquecedor. E que não haja exclusões.
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