São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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DOMINGUEIRA
Madame Globalização

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

Encontro meu amigo tucano num bistrô do Jardim Europa e logo percebo que há algo de radicalmente novo em sua vida: homem elegante, com seu bico magnífico, já avançado na casa dos 50, está acompanhado de uma espalhafatosa comensal.
Ela usa um chapéu esquisito, com ares asiáticos, que combina, um tanto heterodoxamente, com uma saia de Dior e um casaquinho escocês. Adorna o pulso com um poderoso relógio suíço e tem nos dedos anéis das mais variadas procedências.
Aproximo-me timidamente, e sou saudado por meu amigo na língua de sua predileção: "Ça va, mon ami?"
Respondo que está tudo bem, sem conseguir disfarçar o interesse pela bizarra acompanhante.
"Deixa eu te apresentar minha amiga aqui", diz ele prontamente, com um sorriso de satisfação.
"De onde ela é? Que língua fala?", pergunto baixinho. "Cidadã do mundo, fala até português", explica entre os dentes.
Meu amigo volta a sorrir e, enfim, faz a apresentação: "Quero que você conheça essa minha nova grande amiga, uma pessoa especialíssima, a Madame Globalização".
Bem que eu desconfiei. Com aquele jeitão, conversando com meu amigo tucano, só poderia mesmo ser a tal Globalização. Certamente estava vindo conhecer melhor o Brasil, onde começa a se instalar, trazendo grifes famosas, como o sorvete Häagen-Dazs.
Fico encantado com a chance de conhecê-la pessoalmente e começo a satisfazer, de forma um pouco brusca, minha enorme curiosidade.
"É verdade que a senhora está vindo para ficar?" (Meu amigo tucano interfere irritado e não deixa a Madame responder: "Claro que veio para ficar, rapaz. Você não sabe que ela é irreversível?")
"Irreversível?", repito alto.
"Oui, I am", ela responde cheia de si. Prossigo a conversa.
"O que a sra. está achando do Brasil? Afinal, estamos preparados para recebê-la?"
"Oh, wonderfull! O governo brasiliano es mucho good people. Están empreendendo um very deep esforço de modernización. Yo estou muito ok acá em Brazil". ("Ela está a-do-ran-do", traduz baixinho meu amigo tucano. Aceno que estou entendo e continuo o papo).
"A sra já conhece bem o país?"
"Muito bom, tudo. Gostei very, very do shopping Iguatemi, very nice também Oscar Freire e condomínios na Barra da Tijuca."
"E o Nordeste, a sra. já conheceu?"
Madame Globalização faz uma cara estranha. Parece um pouco confusa e atordoada. "What és Nordeste??", pergunta.
Meu amigo tucano, vendo a saia justa, apresenta-se diligentemente. "Claro que madame conhece o Nordeste! Tasso's place, do you remember? Sun, cashew, beaches..."
"Oh, of course! Tasso's place. Muito bom, good oportunidade para vinhos, filtros solares, resorts e óculos escuros, não é mesmo?"
"É, mas a sra. já ouviu falar em seca? Em calango, em corrupção, fome? O que a sra. pode fazer para ajudar a melhorar essa situação?"
"Sorry, yo non entendo. Que passa? Seca? Fome? Nunca ouvi it before..."
Meu amigo tucano tenta contemporizar e começa uma longa explicação sociológica sobre a formação social do Brasil colônia. Madame Globalização parece completamente alheia. Seus olhos fitam o infinito.
Meu amigo prossegue a aula e eu aproveito a deixa para pedir licença e ir ao toalete -de onde escapo rapidamente à francesa.



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