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DOMINGUEIRA
Madame Globalização
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
Encontro meu amigo tucano
num bistrô do Jardim Europa e
logo percebo que há algo de radicalmente novo em sua vida: homem elegante, com seu bico magnífico, já avançado na casa dos
50, está acompanhado de uma
espalhafatosa comensal.
Ela usa um chapéu esquisito,
com ares asiáticos, que combina,
um tanto heterodoxamente, com
uma saia de Dior e um casaquinho escocês. Adorna o pulso com
um poderoso relógio suíço e tem
nos dedos anéis das mais variadas procedências.
Aproximo-me timidamente, e
sou saudado por meu amigo na
língua de sua predileção: "Ça va,
mon ami?"
Respondo que está tudo bem,
sem conseguir disfarçar o interesse pela bizarra acompanhante.
"Deixa eu te apresentar minha
amiga aqui", diz ele prontamente, com um sorriso de satisfação.
"De onde ela é? Que língua fala?", pergunto baixinho. "Cidadã
do mundo, fala até português",
explica entre os dentes.
Meu amigo volta a sorrir e, enfim, faz a apresentação: "Quero
que você conheça essa minha nova grande amiga, uma pessoa especialíssima, a Madame Globalização".
Bem que eu desconfiei. Com
aquele jeitão, conversando com
meu amigo tucano, só poderia
mesmo ser a tal Globalização.
Certamente estava vindo conhecer melhor o Brasil, onde começa
a se instalar, trazendo grifes famosas, como o sorvete Häagen-Dazs.
Fico encantado com a chance
de conhecê-la pessoalmente e começo a satisfazer, de forma um
pouco brusca, minha enorme curiosidade.
"É verdade que a senhora está
vindo para ficar?" (Meu amigo
tucano interfere irritado e não
deixa a Madame responder:
"Claro que veio para ficar, rapaz.
Você não sabe que ela é irreversível?")
"Irreversível?", repito alto.
"Oui, I am", ela responde cheia
de si. Prossigo a conversa.
"O que a sra. está achando do
Brasil? Afinal, estamos preparados para recebê-la?"
"Oh, wonderfull! O governo
brasiliano es mucho good people.
Están empreendendo um very
deep esforço de modernización.
Yo estou muito ok acá em Brazil". ("Ela está a-do-ran-do", traduz baixinho meu amigo tucano.
Aceno que estou entendo e continuo o papo).
"A sra já conhece bem o país?"
"Muito bom, tudo. Gostei very,
very do shopping Iguatemi, very
nice também Oscar Freire e condomínios na Barra da Tijuca."
"E o Nordeste, a sra. já conheceu?"
Madame Globalização faz uma
cara estranha. Parece um pouco
confusa e atordoada. "What és
Nordeste??", pergunta.
Meu amigo tucano, vendo a
saia justa, apresenta-se diligentemente. "Claro que madame conhece o Nordeste! Tasso's place,
do you remember? Sun, cashew,
beaches..."
"Oh, of course! Tasso's place.
Muito bom, good oportunidade
para vinhos, filtros solares, resorts e óculos escuros, não é mesmo?"
"É, mas a sra. já ouviu falar em
seca? Em calango, em corrupção,
fome? O que a sra. pode fazer
para ajudar a melhorar essa situação?"
"Sorry, yo non entendo. Que
passa? Seca? Fome? Nunca ouvi it
before..."
Meu amigo tucano tenta contemporizar e começa uma longa
explicação sociológica sobre a
formação social do Brasil colônia. Madame Globalização parece completamente alheia. Seus
olhos fitam o infinito.
Meu amigo prossegue a aula e
eu aproveito a deixa para pedir
licença e ir ao toalete -de onde
escapo rapidamente à francesa.
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