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São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 2003

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ENTREVISTA

Dupas diz que presidente se comporta como "animador do auditório Brasil"

EUA tentam evitar "Lula populista", diz economista

FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, o economista Gilberto Dupas, 60, entende que os EUA pretendem evitar um confronto com o governo brasileiro. "Embora Lula tenha elevado o tom e mostrado independência, ao acenar com negociações com a Índia e com a China, a impressão é a de que o governo Bush não gostaria de "empurrar" o presidente Lula para um discurso de retórica populista na América Latina", diz.
Ex-coordenador de um dos grupos de campanha de FHC em 1994 e amigo do tucano José Serra, Dupas acha que Lula "está enredado numa armadilha", ao imaginar que é possível conciliar uma política econômica ortodoxa, para tranquilizar os mercados, com a expectativa de reversão da pobreza, para acalmar as massas.
"Isso é uma fantasia", diz. Segundo ele, Lula pode vir a ser cobrado pelo mercado e pelas bases de apoio do PT, que apostaram numa mudança. Dupas diz que Lula se comporta como o animador do "grande programa de auditório Brasil". "Para as elites internacionais, ele é um produto maravilhoso", diz.
 

Folha - Qual é a sua avaliação sobre a viagem do presidente Lula aos Estados Unidos?
Gilberto Dupas -
Há um aspecto que foi bem detectado por Lula. Aparentemente, os EUA não querem criar hostilidades com o Brasil. Embora Lula tenha elevado o tom, isso parece ter sido bem absorvido pelo governo Bush. Ouvindo assessores de Bush, a impressão é a de que o governo dos EUA não gostaria de, mediante um tratamento não-inteligente, "empurrar" Lula para um discurso populista. O quanto isso abre espaço para uma negociação pró-ativa é difícil dizer.

Folha - Como o sr. avalia o discurso internacional do governo Lula?
Dupas -
O discurso internacional do PT me parece inteligente e estrábico. Um olho para fora e outro para dentro. É independente, é mais agressivo, foi muito ajudado pela nova política de segurança americana. Apesar das posições duras do Brasil, os EUA não querem problemas com o Brasil.

Folha - Qual é a sua avaliação dos seis meses de governo Lula?
Dupas -
Lula seduziu as elites nacionais e internacionais. Um líder popular, ainda não populista, diz que é possível conciliar radical ortodoxia fiscal e monetária com reversão da pobreza.

Folha - A herança do governo FHC foi muito pesada?
Dupas -
Foi muito pesada. Não porque o governo FHC foi incompetente. O discurso hegemônico da abertura econômica, com as corporações globais, exigia mercados globais. Prometia-se uma luz no fim do túnel com a abertura e as privatizações.

Folha - Como o sr. avalia, hoje, esse discurso da abertura?
Dupas -
Esse discurso hegemônico não me parece que era feito de má-fé. Mas os grandes países da periferia acabaram caindo numa armadilha. Ampliaram as exportações muito menos do que aumentaram as importações.

Folha - O que isso representou na herança do governo FHC?
Dupas -
Esses países, inclusive o Brasil, tiveram um agravamento sensível das suas balanças comerciais. Endividaram-se. O que levou FHC a entregar a Lula um país com brutal agravamento da vulnerabilidade externa.

Folha - O sr. também atribui essa herança a erros do governo FHC?
Dupas -
Esse aumento da vulnerabilidade externa se deveu muito mais a um impasse na lógica da abertura econômica, embora o governo FHC pudesse ter cometido menos erros.

Folha - Havia alternativa no início do governo Lula ao receituário ortodoxo de política econômica?
Dupas -
Havia uma grande nuvem sobre a cabeça das elites brasileiras e internacionais: Lula vai mudar o modelo? Isso exigiu de Lula uma mudança de postura durante a campanha e a definição de uma política monetária e fiscal profundamente ortodoxa, o que certamente tem seu pedaço de aprendiz de feiticeiro: "Preciso mostrar aos outros que sei fazer". Pode significar erros de dosagem.

Folha - O governo Lula foi eficiente ao acalmar o mercado?
Dupas -
Para sepultar qualquer idéia de que iria mudar o modelo, Lula propôs, como moeda de troca, o Fome Zero. Foi alçado como um grande programa nacional, uma contrapartida ao aperto monetário e fiscal. Infelizmente, é assistencialista. Corre o risco de desagradar mais do que agradar.

Folha - Bom comunicador, Lula tem sido o maior instrumento de defesa do governo. Essa habilidade pode esgotar-se rapidamente?
Dupas -
Lula se comporta como o animador do "grande programa de auditório Brasil", como um Silvio Santos, tentando manter um certo elã, "vamos lá, gente, é possível". Mas, ao responder à entrevista de FHC, Lula mostrou que começa a dar sinais de alguma exasperação. O capital político de Lula ainda é muito grande. A questão é saber quanto dura.

Folha - Como o sr. vê a oposição a esse discurso no próprio PT?
Dupas -
Pareceu-me emblemáticos os pronunciamentos de Paulo Arantes e de Chico de Oliveira. Em síntese, usando uma caricatura, seria um pouco assim: "Um governante como Lula, que promete o que não pode entregar, corre o risco de fomentar uma espécie de guerra civil", embora não tenham usado esse termo.
Essa análise põe o dedo na contradição essencial. Se Lula acredita que, usando instrumentos ortodoxos, com a intensidade que está utilizando, conseguirá reverter o quadro econômico, promover o desenvolvimento e aliviar a questão social, ele pode acabar no pior dos mundos.
Ao manter essa política de juros ainda altos num período de recessão, com aumento de desemprego, ele pode vir a ser malhado pelos dois lados.

Folha - O crédito de confiança das lideranças empresariais esconderia um descontentamento maior?
Dupas -
A Fiesp mudou de tom. Os empresários em geral, e a CNI também, não querem um confronto. Querem uma mudança de política. Há uma clivagem mais clara entre o setor chamado produtivo e o setor financeiro. Eles pedem a retomada de políticas para o crescimento econômico.

Folha - Como o governo Lula poderá manter a confiança dos mercados e alimentar as expectativas de mudança criadas na eleição?
Dupas -
Lula colocou todas as fichas no desmonte do núcleo da inflação. A segunda aposta são as reformas. Na primeira, está sendo bem-sucedido às custas da forte recessão. É um custo muito alto.

Folha - A expectativa com as reformas poderá trazer frustração semelhante à criada, no governo FHC, com o aceno da privatização?
Dupas -
O governo Lula tinha o desafio de aprovar o mínimo de avanço nas reformas, o que FHC nos oito anos não conseguiu fazer. Lula deve lidar com as contradições do seu partido. No momento em que tenta ampliar o leque de apoio no Congresso, tem que fazer concessões. O risco é, depois, constatar um resultado não animador.

Folha - Como o sr. imagina que será a alegada fase de transição?
Dupas -
Existe alternativa? Uma vez domada a inflação e baixada a taxa de juros, isso será suficiente para o Brasil voltar a crescer? Governar bem nos países da periferia muitas vezes significa escolher o ruim contra o péssimo. Se nós pudéssemos acabar com os subsídios lá fora, seria diferente? Não tenho certeza -65% do fluxo de comércio internacional está nas mãos de transnacionais.

Folha - Qual o espaço que o governo Lula teria, domada a inflação, para voltar a crescer?
Dupas -
Imaginava-se que o BNDES seria um instrumento fundamental de uma nova política de desenvolvimento. Esperava-se que o presidente do BNDES fosse o economista Luciano Coutinho, que havia estudado a lógica das cadeias produtivas. A opção foi [Carlos] Lessa, que eu respeito como economista da velha-guarda. Mas, o que está acontecendo no BNDES, a gente não sabe.

Folha - O que Lula deveria ter feito, a seu ver, no início de governo?
Dupas -
Na campanha eleitoral, o discurso do PT e o discurso de [José] Serra indicavam que a gente só desamarra essa lógica perversa com um grande choque exportador. O mercado impôs uma desvalorização cambial imensa. O descasamento entre passivos [dívidas] em dólares e receitas em reais causou uma desestruturação brutal em vários setores. Você só desmonta isso quando dá um choque de valor adicionado.


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