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ENTREVISTA
Dupas diz que presidente se comporta como "animador do auditório Brasil"
EUA tentam evitar "Lula populista", diz economista
FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL
O coordenador-geral do Grupo
de Conjuntura Internacional da
USP, o economista Gilberto Dupas, 60, entende que os EUA pretendem evitar um confronto com
o governo brasileiro. "Embora
Lula tenha elevado o tom e mostrado independência, ao acenar
com negociações com a Índia e
com a China, a impressão é a de
que o governo Bush não gostaria
de "empurrar" o presidente Lula
para um discurso de retórica populista na América Latina", diz.
Ex-coordenador de um dos grupos de campanha de FHC em
1994 e amigo do tucano José Serra, Dupas acha que Lula "está
enredado numa armadilha", ao
imaginar que é possível conciliar
uma política econômica ortodoxa, para tranquilizar os mercados,
com a expectativa de reversão da
pobreza, para acalmar as massas.
"Isso é uma fantasia", diz. Segundo ele, Lula pode vir a ser cobrado pelo mercado e pelas bases
de apoio do PT, que apostaram
numa mudança. Dupas diz que
Lula se comporta como o animador do "grande programa de auditório Brasil". "Para as elites internacionais, ele é um produto
maravilhoso", diz.
Folha - Qual é a sua avaliação sobre a viagem do presidente Lula
aos Estados Unidos?
Gilberto Dupas - Há um aspecto
que foi bem detectado por Lula.
Aparentemente, os EUA não querem criar hostilidades com o Brasil. Embora Lula tenha elevado o
tom, isso parece ter sido bem absorvido pelo governo Bush. Ouvindo assessores de Bush, a impressão é a de que o governo dos
EUA não gostaria de, mediante
um tratamento não-inteligente,
"empurrar" Lula para um discurso populista. O quanto isso abre
espaço para uma negociação pró-ativa é difícil dizer.
Folha - Como o sr. avalia o discurso internacional do governo Lula?
Dupas - O discurso internacional
do PT me parece inteligente e estrábico. Um olho para fora e outro
para dentro. É independente, é
mais agressivo, foi muito ajudado
pela nova política de segurança
americana. Apesar das posições
duras do Brasil, os EUA não querem problemas com o Brasil.
Folha - Qual é a sua avaliação dos
seis meses de governo Lula?
Dupas - Lula seduziu as elites nacionais e internacionais. Um líder
popular, ainda não populista, diz
que é possível conciliar radical ortodoxia fiscal e monetária com reversão da pobreza.
Folha - A herança do governo FHC
foi muito pesada?
Dupas - Foi muito pesada. Não
porque o governo FHC foi incompetente. O discurso hegemônico
da abertura econômica, com as
corporações globais, exigia mercados globais. Prometia-se uma
luz no fim do túnel com a abertura e as privatizações.
Folha - Como o sr. avalia, hoje, esse discurso da abertura?
Dupas - Esse discurso hegemônico não me parece que era feito
de má-fé. Mas os grandes países
da periferia acabaram caindo numa armadilha. Ampliaram as exportações muito menos do que
aumentaram as importações.
Folha - O que isso representou na
herança do governo FHC?
Dupas - Esses países, inclusive o
Brasil, tiveram um agravamento
sensível das suas balanças comerciais. Endividaram-se. O que levou FHC a entregar a Lula um
país com brutal agravamento da
vulnerabilidade externa.
Folha - O sr. também atribui essa
herança a erros do governo FHC?
Dupas - Esse aumento da vulnerabilidade externa se deveu muito
mais a um impasse na lógica da
abertura econômica, embora o
governo FHC pudesse ter cometido menos erros.
Folha - Havia alternativa no início
do governo Lula ao receituário ortodoxo de política econômica?
Dupas - Havia uma grande nuvem sobre a cabeça das elites brasileiras e internacionais: Lula vai
mudar o modelo? Isso exigiu de
Lula uma mudança de postura
durante a campanha e a definição
de uma política monetária e fiscal
profundamente ortodoxa, o que
certamente tem seu pedaço de
aprendiz de feiticeiro: "Preciso
mostrar aos outros que sei fazer".
Pode significar erros de dosagem.
Folha - O governo Lula foi eficiente ao acalmar o mercado?
Dupas - Para sepultar qualquer
idéia de que iria mudar o modelo,
Lula propôs, como moeda de troca, o Fome Zero. Foi alçado como
um grande programa nacional,
uma contrapartida ao aperto monetário e fiscal. Infelizmente, é assistencialista. Corre o risco de desagradar mais do que agradar.
Folha - Bom comunicador, Lula
tem sido o maior instrumento de
defesa do governo. Essa habilidade
pode esgotar-se rapidamente?
Dupas - Lula se comporta como
o animador do "grande programa
de auditório Brasil", como um Silvio Santos, tentando manter um
certo elã, "vamos lá, gente, é possível". Mas, ao responder à entrevista de FHC, Lula mostrou que
começa a dar sinais de alguma
exasperação. O capital político de
Lula ainda é muito grande. A
questão é saber quanto dura.
Folha - Como o sr. vê a oposição a
esse discurso no próprio PT?
Dupas - Pareceu-me emblemáticos os pronunciamentos de Paulo
Arantes e de Chico de Oliveira.
Em síntese, usando uma caricatura, seria um pouco assim: "Um
governante como Lula, que promete o que não pode entregar,
corre o risco de fomentar uma espécie de guerra civil", embora não
tenham usado esse termo.
Essa análise põe o dedo na contradição essencial. Se Lula acredita que, usando instrumentos ortodoxos, com a intensidade que
está utilizando, conseguirá reverter o quadro econômico, promover o desenvolvimento e aliviar a
questão social, ele pode acabar no
pior dos mundos.
Ao manter essa política de juros
ainda altos num período de recessão, com aumento de desemprego, ele pode vir a ser malhado pelos dois lados.
Folha - O crédito de confiança das
lideranças empresariais esconderia um descontentamento maior?
Dupas - A Fiesp mudou de tom.
Os empresários em geral, e a CNI
também, não querem um confronto. Querem uma mudança de
política. Há uma clivagem mais
clara entre o setor chamado produtivo e o setor financeiro. Eles
pedem a retomada de políticas
para o crescimento econômico.
Folha - Como o governo Lula poderá manter a confiança dos mercados e alimentar as expectativas
de mudança criadas na eleição?
Dupas - Lula colocou todas as fichas no desmonte do núcleo da
inflação. A segunda aposta são as
reformas. Na primeira, está sendo
bem-sucedido às custas da forte
recessão. É um custo muito alto.
Folha - A expectativa com as reformas poderá trazer frustração semelhante à criada, no governo
FHC, com o aceno da privatização?
Dupas - O governo Lula tinha o
desafio de aprovar o mínimo de
avanço nas reformas, o que FHC
nos oito anos não conseguiu fazer. Lula deve lidar com as contradições do seu partido. No momento em que tenta ampliar o leque de apoio no Congresso, tem
que fazer concessões. O risco é,
depois, constatar um resultado
não animador.
Folha - Como o sr. imagina que
será a alegada fase de transição?
Dupas - Existe alternativa? Uma
vez domada a inflação e baixada a
taxa de juros, isso será suficiente
para o Brasil voltar a crescer? Governar bem nos países da periferia
muitas vezes significa escolher o
ruim contra o péssimo. Se nós pudéssemos acabar com os subsídios lá fora, seria diferente? Não
tenho certeza -65% do fluxo de
comércio internacional está nas
mãos de transnacionais.
Folha - Qual o espaço que o governo Lula teria, domada a inflação, para voltar a crescer?
Dupas - Imaginava-se que o
BNDES seria um instrumento
fundamental de uma nova política de desenvolvimento. Esperava-se que o presidente do BNDES
fosse o economista Luciano Coutinho, que havia estudado a lógica
das cadeias produtivas. A opção
foi [Carlos] Lessa, que eu respeito
como economista da velha-guarda. Mas, o que está acontecendo
no BNDES, a gente não sabe.
Folha - O que Lula deveria ter feito, a seu ver, no início de governo?
Dupas - Na campanha eleitoral,
o discurso do PT e o discurso de
[José] Serra indicavam que a gente só desamarra essa lógica perversa com um grande choque exportador. O mercado impôs uma
desvalorização cambial imensa. O
descasamento entre passivos [dívidas] em dólares e receitas em
reais causou uma desestruturação
brutal em vários setores. Você só
desmonta isso quando dá um
choque de valor adicionado.
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