São Paulo, quinta, 24 de setembro de 1998

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ÍNTEGRA
Leia discurso de FHC sobre o país e a crise

Leia a íntegra do discurso do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, ontem, no Palácio do Itamaraty:

Senhora ministra
Senhores ministros
Senhoras e senhores
Eu resolvi aproveitar uma ocasião tão auspiciosa deste encontro, em que se vê a vitalidade do serviço público brasileiro, para fazer algumas reflexões que me parecem necessárias neste momento que o Brasil está atravessando, que é um momento importante para a definição dos nossos rumos.
Desde o final dos anos 70, o Brasil tem lutado com as consequências de problemas que, em boa medida, vêm de fora. Foi assim com os dois choques do petróleo e com a crise da dívida a partir de 1982. Mais recentemente, enfrentamos de novo crises importadas, como a do México, de 1995, e a da Ásia, em 1997, e agora a da Rússia. Essas últimas crises que ora nos afetam vêm ganhando proporções cada vez mais amplas, exigindo -como tenho insistido há algum tempo- uma ação coordenada dos principais países desenvolvidos e em desenvolvimento para evitar que se aprofunde um ambiente de retração excessiva dos fluxos internacionais de financiamento do comércio e da própria atividade econômica mundial.
Nunca me faltou determinação para responder aos choques externos com medidas duras. Nos últimos quatro anos o Brasil não ficou e nem ficará, em nenhum momento, sem direção.

Problemas internos
É preciso ter clareza, por outro lado, que existem problemas que são nossos. É sobre estes que eu gostaria de lhes falar hoje. São problemas que teremos que resolver, para tirar as dúvidas que, a cada crise externa e de forma crescente, pairam sobre a nossa capacidade de manter o rumo.
Vivemos um momento de definição. É meu dever apresentar ao povo brasileiro uma visão sobre o que precisa ser feito.
Há uma condição fundamental para qualquer plano de governo, para qualquer candidato que vença as eleições, se de fato quisermos afastar as sombras sobre o nosso futuro.
Há anos o Brasil luta contra o déficit público, mas apenas no período recente conseguimos progredir a ponto de vencer a inflação, que mascarava o real significado do déficit. Para consolidar a estabilidade e retomar o desenvolvimento é preciso avançar mais, e a crise internacional apenas fez com que a necessidade do equilíbrio nas nossas contas públicas se tornasse mais urgente.
Eu tenho a convicção de que nenhuma crise externa será capaz de nos derrotar. Nosso destino está em nossas mãos, como sempre esteve.

Déficit público
O principal problema é simples: o Estado não tem sido capaz de viver no limite de seus próprios meios. E por isso não cumpre o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro e fragiliza a nossa economia.
Os governos federal, estaduais e municipais têm tido dificuldades em restringir seus gastos totais ao que as suas receitas lhes permitem. Por isso, não atendem apropriadamente a seus cidadãos e sobrecarregam a economia privada.
Os governos gastam mais do que ganham por vários motivos. Às vezes, são maus governos e administram o seu dinheiro de forma irresponsável.
O fim da inflação tornou essas coisas mais fáceis de serem percebidas. E fez o povo entender com mais clareza o que é um bom governo e o que representa a moralidade na administração do dinheiro público. A busca do equilíbrio nas contas públicas é também uma questão de cidadania.

Gastos sociais
Por outro lado, os governos se vêem pressionados a atender demandas da sociedade, demandas perfeitamente justas em um país de muitas carências. Vêem-se também pressionados a não abusar no aumento de impostos. Ao mesmo tempo, como é o caso recente, os governos têm tido de lidar com desequilíbrios fiscais e problemas que são herdados do passado.
A sociedade quer que o governo faça muitas coisas, mas nem sempre dá os recursos suficientes para fazer. Por outro lado, nem sempre os governos gastam os impostos que arrecadam da forma mais eficiente.
Sabemos quão ilusório é recorrer à inflação para resolver esses problemas. Imprimir dinheiro produz inflação, que é uma espécie de imposto a incidir principalmente sobre os pobres.
Mas isso hoje acabou. O que acontece agora, no plano estadual, federal e municipal, é que os governos, para cobrir a diferença entre despesas e receitas, estão se endividando exageradamente. Isso não pode continuar.

Ajuste do Estado
Por isso mesmo, eu tenho insistido tanto em reformas. Reformas que mudem a maneira de os governos funcionarem e que tenham por objetivo fazer o governo federal, e também os governos estaduais e municipais, viver dentro de seus próprios meios e gastar melhor os impostos que arrecadam. O prejuízo tem de parar. O Estado tem de caber dentro dos recursos que a sociedade lhe dá, e tem que utilizá-los da melhor forma possível.
Nos últimos anos muitas reformas foram empreendidas com o propósito de alcançar esse equilíbrio. Os progressos foram muitos e, graças a eles, conseguimos controlar a inflação. Tenho insistido sempre em soluções definitivas e não paliativas, reformas que resolvam os nossos problemas pela raiz e não ataquem apenas os sintomas. Todos têm assistido às dificuldades que existem em combater as resistências e os privilégios arraigados. Mudamos e, como é sabido, continuamos empenhados em mudar a nossa Constituição em áreas importantes.

Privatizações
Temos avançado com enorme firmeza em um terreno absolutamente fundamental para o nosso futuro, a privatização. A privatização quer dizer que o Estado vai poder concentrar o dinheiro dos impostos na área social, e não em empresas estatais que dão prejuízo ou precisam de dinheiro do Tesouro para investir.
Mas a privatização não está sendo feita para resolver o descompasso que mencionei entre os recursos arrecadados e o que os governos federal, estaduais e municipais querem realizar. Há Estados que têm mais de 80% de sua receita de impostos comprometida apenas com o pagamento da folha de salários. Há Estados onde o Legislativo e o Judiciário consomem recursos muito acima do razoável. Igualmente, há municípios, onde as Câmaras de Vereadores consomem quantias injustificáveis, recursos que de outra forma poderiam estar contribuindo para resolver as carências de suas populações.
Precisamos dar um paradeiro nesses desequilíbrios.
Precisamos valorizar os recursos que o contribuinte paga na forma de impostos. E esta é uma tarefa para as três esferas de governo.
Há outra razão imperiosa para que, de uma forma definitiva, o déficit público seja colocado sob controle. É a relação que existe entre ele e a velocidade do nosso crescimento.
Sabemos que precisamos crescer. O crescimento é uma condição indispensável para a criação de empregos, que é hoje a maior preocupação dos brasileiros.
Pois bem, o déficit público é uma das maiores razões pelas quais não podemos crescer mais rapidamente, embora o país tenha condições e necessite disso. E por que é assim?

Juros
Existem pelo menos duas razões interligadas. A primeira é a alta dos juros: quando os governos se endividam, eles disputam com o setor privado os recursos disponíveis para empréstimos. Os recursos para empréstimos são escassos e, quando a procura por empréstimos aumenta, aumentam também os juros e, aí, não apenas para os empréstimos ao governo, mas para todos os empréstimos. Todos, empresários e consumidores, são prejudicados: diminuem os recursos disponíveis e aumenta o preço para obtê-los. Quanto maiores os juros, menor o crescimento, porque não é possível encontrar investimentos produtivos, que criem emprego e aumentem a renda, que sejam tão lucrativos a ponto de cobrir juros excessivamente elevados por um período prolongado de tempo.
A segunda razão é o fato de que, para crescermos, é preciso fazer investimentos no país: construir fábricas, abrir empresas, melhorar estradas, escolas, telecomunicações, portos etc. São necessários recursos para isso, ou seja, que alguém tenha poupado parte do que ganha, e é exatamente esta parte que se torna disponível para o investimento. Como gastamos mais do que arrecadamos, tomamos emprestada parte da poupança do setor privado e nem assim foi suficiente para todos os investimentos que fizemos.

Dependência externa
O país teve que recorrer à poupança do exterior. E esta é limitada por dois motivos. Primeiro, porque se dependemos muito da poupança externa, surgem dúvidas sobre nossa capacidade de geração de recursos em moeda estrangeira suficientes para honrar os compromissos financeiros que assumimos ao utilizar essa poupança. Segundo, porque dada a gravidade do atual contexto internacional, a disponibilidade de poupança externa será relativamente menor de agora em diante. Para crescermos de forma sustentada, teremos que elevar mais rapidamente nossa capacidade interna de poupar. Isso significa, essencialmente, eliminar a poupança negativa do setor público através de um rápido e decidido ajuste das contas públicas. Qualquer vulnerabilidade que possamos ter a eventos do exterior fica diminuída se o Brasil eleva sua capacidade de poupança. Se aumentarmos nossa capacidade de poupar, aumentaremos os recursos disponíveis para construir nosso futuro.
Estão em jogo não apenas a nossa estabilidade, tão duramente alcançada, mas também a nossa prosperidade. O crescimento precisa ser acelerado, precisamos aumentar a renda média do brasileiro, gerar empregos. O Brasil tem pressa e os governos têm de ajudar e não atrapalhar.

Democracia
A consolidação da nossa democracia ultrapassou diversas etapas, construiu instituições sólidas, que já passaram por muitos testes. Mas ainda existe uma outra tarefa a enfrentar, que é essencial para nosso futuro econômico e político o desafio do equilíbrio fiscal, que é tanto maior quanto se sabe que estes problemas foram acumulados durante décadas e não há mágicas que permitam resolvê-los de uma hora para a outra.
O Estado não pode ser um peso para a sociedade e para a economia privada, não pode ser dominado por privilégios e corporações. De mesma forma, não pode ser obrigado a cumprir promessas quando não tem os recursos para atendê-las. A mesma Constituição que estabelece as despesas, os direitos do cidadão e as obrigações do Estado, deve proporcionar ao Estado as condições e os instrumentos para a obtenção dos recursos para atender a estas despesas.
Precisamos fazer o Estado viver dentro de seus limites. E, para mim, este processo deverá dar-se de forma rápida, decisiva e definitiva. Precisamos resolver este problema de uma vez por todas.
O amadurecimento das práticas e instituições ligadas ao orçamento e sua execução é tarefa fundamental e inadiável. É absolutamente crucial para nós governantes, e aqui me dirijo aos governadores -atuais e futuros- e aos prefeitos do Brasil afora, que tenhamos clareza sobre os limites de nossas ações, lembrando que recursos obtidos de empréstimos não constituem receita e sim imposto no futuro, pois as dívidas têm de ser pagas.

Desafio
Lanço aqui ao país, um grande desafio, o desafio do equilíbrio fiscal. Um desafio que eu gostaria de estender aos governantes e prefeitos do Brasil afora, e aos Legislativos. Um desafio que considero essencial para o nosso futuro. Por isso, quero deixar algumas mensagens fundamentais.
A primeira é a de que estou determinado, como já disse, a fazer isso da forma mais rápida possível. A opção é simples: fazer logo o ajuste, enfrentando de uma vez as opções e sacrifícios necessários e voltar a crescer nos níveis adequados o mais cedo possível. Não fazê-lo significa prolongar o período de crescimento insatisfatório.

Reformas
Na semana passada, estive com os presidentes do Senado e da Câmara e fiquei muito satisfeito em constatar que estamos, todos nós, firmemente empenhados na continuidade do processo de votação das reformas e de sua regulamentação.
Aprovamos a reforma administrativa. Antes de dezembro, devemos aprovar algumas propostas de regulamentação.
Propusemos a reforma da Previdência Social. Ela foi aprovada no Senado, mas ainda está pendente de aprovação na Câmara. Quero informar à nação que acertei com o presidente da Câmara, deputado Michel Temer, que a reforma será voltada ainda em outubro. Apelo à consciência cívica dos deputados -independentemente dos partidos- para que compareçam e votem, não a favor do governo, mas a favor do país.
A reformulação da proposta de reforma fiscal será encaminhada ao Congresso ainda este ano.
Já avançamos nas reformas relacionadas ao mercado de trabalho. Em novembro vamos formalizar as propostas que requerem emendas constitucionais.
No início deste mês, criei a Comissão de Controle e Gestão Fiscal, uma comissão com autoridade para fazer cumprir as metas fiscais. Suas primeiras reuniões demonstraram seu potencial e sua força. Recomendo aos Estados e municípios, que têm tanta responsabilidade quanto a nossa no equilíbrio das contas públicas, que criem comissões semelhantes, dêem ciência aos cidadãos de como estão se comportando as suas contas. Ampliem, enfim, o seu grau de transparência em temas fiscais.
Quero reafirmar meu compromisso de estruturar uma proposta de ajuste fiscal para os próximos três anos. Determinei aos ministros da Fazenda e do Planejamento que acelerem esse programa para apresentá-lo o quanto antes, mesmo antes do prazo previsto. Não pedi apenas que fosse apresentado um programa, mas defini dois elementos indispensáveis, superávits primários crescentes ao longo dos próximos três anos e suficientes para impedir que a dívida pública cresça a um ritmo superior ao crescimento do PIB, mantendo estável essa relação ao longo do tempo. A melhora da situação fiscal terá que ser substancial já em 1999. Aí estará a maior parte do esforço requerido para o triênio 1999-2001 seja qual venha a ser o presidente eleito. O que fizemos no curto prazo contribuirá para solidificar a convicção íntima, interna sobre o ajuste e ampliar a credibilidade do nosso programa.

Impostos
Determinei também que sejam rapidamente efetuados estudos para definir bases legais que consagrem o princípio do equilíbrio fiscal. Vamos limitar de forma mais clara as despesas à existência de recursos necessários para financiá-las.
Vamos cortar as despesas, mas poderá ser necessário também aumentar receitas, sobretudo combatendo a sonegação e aumentando o número dos que pagam impostos. Tudo será feito com negociação e transparência. Sem surpresas. Como sempre fiz desde o Real. E sem esquecer que os que produzem e os setores menos favorecidos da população não podem ser penalizados, nem com a inflação nem com o custo do ajuste.
Novas iniciativas devem ser exploradas, bem como mecanismos automáticos para assegurar a realização desse equilíbrio. Se não formos capazes de reduzir as despesas na velocidade e volume necessários, como estamos propondo, talvez sejamos obrigados a uma discussão aberta sobre aumento de impostos.
Atacar os desequilíbrios fiscais significa também consolidar a confiança de nossos parceiros na nossa economia. É um compromisso não só com quem está investindo no Brasil, mas também com os demais países, sobretudo os latino-americanos que, como nós, buscam ajustar suas realidades internas e ganhar fôlego para enfrentar as intempéries externas.
No mundo de hoje, manter a solidez econômica, evitando que outros se contagiem com as repercussões negativas de políticas fracas ou equivocadas, exige o diálogo e a articulação entre países e instituições para consolidar uma ordem internacional mais justa. Por isso, não temos e não teremos medo de tratar de nossos ajustes com abertura em relação ao mundo: dialogar intensamente com parceiros e com as instituições internacionais como o Fundo Monetário, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o BIS, das quais somos sócios e com as quais continuaremos mantendo um relacionamento maduro, aberto e soberano. Se for do interesse do país um entendimento com estas instituições, o faremos.

Recursos externos
Estou convencido de que os países do G-7 e as instituições referidas acima deveriam colocar à disposição do Fundo recursos suficientes para serem utilizados, em caso de necessidade, pelos países da América Latina em uma espécie de "fundo de contingência" que teria como objetivo a prevenção de crises.
Fazer um ajuste rigoroso em tempo curto -mais curto do que aquele que tínhamos quando o cenário internacional se afigurava menso conturbado- não é problema apenas do governo federal. O Legislativo, o Judiciário, os Estados e municípios terão que fazer a sua parte. O ajuste tem que ser um projeto nacional. Tem que estar inserido em todas as ações do setor público, sobretudo aquelas que envolvam gastos. Quanto maior a cooperação de todos, mais rapidamente reduziremos as taxas de juros, como todos queremos e o Brasil precisa.
Tenho consciência do que representa pedir um esforço maior de contenção. Faço-o para garantir a estabilidade, com os olhos voltados para um futuro com maior segurança econômica, para um Brasil ainda mais forte e melhor preparado para se posicionar no mundo.
Tenhamos todos consciência do desafio que esse passo representa, das dificuldades que teremos que enfrentar para atingir esse objetivo. Mas tenhamos também a determinação para enfrentá-las e a certeza de que essa é uma condição indispensável para que possamos alcançar a prosperidade, avançar na inclusão social e superar as injustiças e os desequilíbrios sociais que ainda pesam sobre nossa sociedade. Quero pedir aos brasileiros, que sempre souberam entender quando é preciso ser firme, que o sejam mais uma vez.
O povo brasileiro sabe que farei tudo, mas tudo mesmo, para proteger o Real. Para defender o poder de compra dos assalariados, para baixar os juros e retomar o crescimento. Contem com minha energia e dedicação para mantermos o Brasil, com estabilidade, no rumo do próximo século, com a esperança, que há de tornar-se realidade, de uma vida melhor para todos os brasileiros e brasileiras.
Muito obrigado.



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