São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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LANTERNA NA POPA
Sociedade e norma

ROBERTO CAMPOS
A escalada da criminalidade violenta e a total impunidade dos menores de 18 anos está levando mais de 70% da população das grandes cidades brasileiras a quererem a pena de morte. A raiva não é boa conselheira, tanto mais quando, no caso, a irreversibilidade da punição se combina com a falibilidade dos nossos mecanismos judiciais. Mas é bom reconhecer que os limites do tolerável já foram ultrapassados, e que, à quase falência múltipla dos órgãos do Estado, é preciso acrescentar a precariedade do processo normativo, de uma ponta à outra.
A criminalidade, obviamente, é uma questão complexíssima, em que interagem fatores econômicos, ambientais, culturais, sociais, genéticos, psicológicos etc. E é justo reconhecer que pesam muito o desemprego, a recessão, a anomia das situações de crise, os problemas urbanos, a televisão, a droga, o consumismo, a falta de estruturas sociais de integração e a deterioração dos valores comuns, inclusive religiosos.
Sociedade alguma é isenta de delito, porque os indivíduos variam segundo uma distribuição estatística de Gauss, ou "normal", aquela em forma de sino. Numa aba, uns poucos santos, na outra, outros tantos demônios, e na larga faixa intermediária, a maioria (para quem gosta de detalhe, 68%, dentro de um desvio padrão para cada lado). A mesma distribuição observável em todo o universo, das peças de automóveis e tampinhas de garrafas aos desvios dos chutes dos atacantes no futebol. Sempre haverá desvios em relação à norma -e só resta tirar os que fiquem fora do gabarito.
Sem que a sociedade exija efetivamente um alto padrão de ordem pública, dificilmente a repressão ao crime funcionará bem. O que quer dizer polícias eficientes, que dêem resultados e respeitem o cidadão. Criou-se, porém, uma demagógica confusão entre direitos humanos e operação do sistema. Madre Teresa não seria a melhor chefe de polícia. Além disso, a irrefletida descentralização da autoridade, na Constituição de 88, ainda que agrade aos políticos que têm vinculações com as polícias locais, atrapalha a coordenação e o combate às máfias.
Os problemas seriam menores se a vontade da maioria da sociedade fosse expressa firmemente. Infelizmente, os interesses gerais difusos acabam dominados por manipulações de minorias estridentes ou que controlam mecanismos-chave do sistema. Para mais, persiste entre nós ainda uma fantasia ideológica à la J.J. Rousseau, século 18, pela qual a responsabilidade do crime fica transferida do seu perpetrador para "a sociedade" -quando não, nas versões mais ingênuas, para a própria vítima, a qual, como "privilegiado", tem a "culpa objetiva" de ser um "inimigo de classe".
Questões em que as consequências recaem sobre terceiros não são moralmente gratuitas. Quem desqualifica a violência contra o inocente torna-se "ipso facto" cúmplice dela. E que dizer dos que, tornando impune o menor, fizeram dele o natural veículo do crime organizado e da droga?
Nas sociedades pré-modernas, a idéia da lei estava presa a uma concepção moral, inseparável de uma visão religiosa, que funcionava como o cimento da estrutura social. Hoje, porém, não temos a experiência do que era o culto dos antepassados de uma "religião cívica", como a dos romanos antigos. E a noção de "culpa" é uma idiossincrasia judaico-cristã enxertada na civilização clássica (que também nos legou, por outro lado, a lei formalizada em conceitos universais).
Nas sociedades modernas, não mais integradas pela religião, a norma passou a ser encarada como "regra do jogo". Não há mais como esperar que a consciência do indivíduo esteja fundida na consciência sacralizada do grupo. Idéias de culpa e perdão são hoje percebidas como questões da consciência de cada um, e não como referências operacionais para o sistema. A norma deve garantir a previsibilidade de condutas aceitáveis e a exclusão das não-aceitáveis. Clubes, condomínios, jogos de futebol, tudo precisa de regras. Os europeus, há muitos anos, passaram a tratar acidentes de trânsito, mesmo sem vítimas, como de responsabilidade objetiva. Quem bate por trás, por exemplo, é responsabilizado, sem discussões de "culpa".
É essa objetividade que se faz necessária. A norma está aí para ser cumprida. Graças à "tolerância zero", Nova York reduziu quase pela metade os índices de criminalidade. "Almas sensíveis" profissionais objetaram que a repressão iria recair sobre os grupos minoritários -negros, latinos, marginalizados, pobres. O que era até possível. Só que, para surpresa dos seus autonomeados defensores, tais minorias não quiseram saber dessa "defesa". Em vez de se deleitarem com a gloriosa perspectiva do sacrifício às mãos dos "injustiçados", preferiram mandá-los para a cadeia. E, nos países democráticos, quem decide não são os donos das "opiniões sociais avançadas", e sim os eleitores...
A pobreza não é uma boa desculpa para o crime violento. O problema distributivo depende de quem define quem deve ter direito a que e quem tem a obrigação de pagar por isso. Mas em caso algum legitima alguém matar um inocente. Bom senso e boa vontade podem ajudar a encontrar posições políticas convergentes. Mas colocar a solução de "problemas sociais", reais ou supostos, como condição prévia para permitir a defesa da ordem social é inverter a lógica. E fazer apologia do crime.



Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).




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