São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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ELIO GASPARI

A atualidade do Riocentro chama-se impunidade

Uma das boas coisas que aconteceram neste ano foi a reabertura do inquérito do caso Riocentro, um fantasma que anda por aí desde 1981.
O que esse fantasma tem de ridículo, tem de atual. Ele reflete a capacidade que o andar de cima tem de preservar seus privilégios por meio de uma rede inviolável de impunidades. Quando a punição de um magano ameaça o conjunto dos privilégios, vale tudo. Vale sobretudo obrigar o andar de baixo a engolir mentiras.
Deve-se acreditar que não houve vazamento de informações na desvalorização do real, em janeiro passado, que a Abin achou o grampo do BNDES debaixo de um viaduto, que foram os sem-terra que atacaram a PM em Eldorado do Carajás e que a polícia paulista estava defendendo a ordem pública quando matou 111 presos no Carandiru em 1992.
No Riocentro aconteceu o seguinte:
Enquanto se realizava um show no seu auditório e Elba Ramalho cantava "Banquete de Signos" para 10 mil pessoas, duas bombas explodiram nas cercanias do pavilhão. Uma, perto da casa de força, sem causar danos. Outra, no estacionamento, no colo de um sargento, dentro de um Puma. Ele estava ao lado de um capitão e ambos serviam no DOI-Codi do 1º Exército. Pertenciam ao aparelho de repressão progressivamente desativado desde 1975, que vinha praticando atentados terroristas contra personalidades políticas, bancas de jornais e sedes de publicações esquerdistas.
Era óbvio: o sargento e o capitão iam botar aquela bomba em algum lugar do Riocentro.
Eram veteranos. O capitão Wilson Luiz Chaves Machado, eventual chefe do patrulhamento da segurança do presidente quando ele ia ao Rio. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, o agente "Wagner", especialista em explosivos. Ambos, experimentados detonadores de bancas de jornais.
Apesar de a anistia ter completado mais de um ano, em abril de 1981 os comandantes militares ainda se julgavam senhores do país. Abriram um IPM de fantasia e entregaram-no ao coronel Job Lorena de Sant'Anna.
Ele concluiu que tanto o capitão quanto o sargento foram vítimas de um atentado de esquerda (coisa que não acontecia desde 1972). Ninguém acreditou, mas não se exigia credibilidade. Exigia-se uma choldra conformada com o exercício do poder por meio da mentira.
Graças à competência dos repórteres Amaury Ribeiro Junior e Chico Otávio, bem como às investigações do general Sérgio Conforto, o coronel Wilson Machado viu-se finalmente indiciado criminalmente.
É possível, mesmo sendo arriscado, que se mantenha em silêncio. Pode vir a admitir que estava no Riocentro para explodir uma bomba debaixo de algum dos 2.000 carros parados no pátio. Se escolher esse caminho, sabe que não lhe acontece nada, pois terá reconhecido um crime prescrito há dez anos. Poderá dizer que se manteve em silêncio para não comprometer a memória (nem a pen$ão) do sargento.
As conclusões já conhecidas do novo IPM indicam que se deseja acreditar que "havia uma guerra" na qual criou-se um "poder paralelo". Falso. Pode-se dizer (com muito exagero) que houvera uma guerra. As organizações terroristas brasileiras estavam destruídas desde 1972. Os últimos guerrilheiros do Araguaia haviam sido executados no final de 1974. Também não houve poder paralelo. À tortura, sancionada pelo Estado até 1975, seguiu-se, a partir de 1976, um surto terrorista de direita. Ele foi tolerado pelo governo, que conhecia a identidade dos criminosos, quase todos funcionários de seu aparelho policial. Não havia ignorância, havia apenas graus de cumplicidade.
Velhas memórias, bem como revelações recentes e as confissões publicadas no livro "A Direita Explosiva no Brasil", de José Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto Fortunato, permitem algumas reconstituições do que houve no Riocentro e, sobretudo, à sua volta.

Uma patifaria da história: tudo começou (e acabou) com Perdigão

Às 15h do dia 1º de abril de 1964, quatro tanques M-41 do Exército protegiam o Palácio Laranjeiras, a residência presidencial no Rio de Janeiro. João Goulart já havia partido para Brasília, começando sua rota para o exílio. O comandante dessa tropa era um jovem tenente de 27 anos. Chamava-se Freddie Perdigão Pereira. Não aderira ao golpe por receio da reação dos sargentos que o acompanhavam. Por volta das 16h chegaram a um acordo. Perdigão ficaria com três tanques e os sargentos com o outro. O tenente atravessou as centenas de metros que separavam a política brasileira. Foi para a porta do Palácio Guanabara, onde o governador Carlos Lacerda simbolizava a reação ao governo Goulart.
A movimentação dos tanques do tenente Perdigão transformou-se em símbolo da vitória da Revolução. Ele, por reservado, ficou no anonimato.
Perdigão tornou-se um quadro daquilo que se chamava de comunidade de informações. Em 1968, como capitão, trabalhava no Centro de Informações do Exército, o CIE. É desse ano o primeiro depoimento de preso político que informa ter sido torturado por ele. Ligou-se a um grupo de oficiais terroristas (alguns deles serviam no CIE) e participou de pelo menos um atentado a bomba, contra o depósito de papel do "Jornal do Brasil". Esse grupo foi responsável por 18 das 20 explosões de bombas ocorridas no Rio em 1968.
Em 1970, Perdigão estava numa barreira de controle de automóveis, na lagoa Rodrigo de Freitas, e interceptou um Volks vermelho. Nele iam três terroristas da Aliança Libertadora Nacional. Um, Carlos Frederico Fayal de Lira, atirou. Acertou Perdigão no peito e na coxa. Ele mancou pelo resto da vida.
Promovido a major, militou no pedaço mais fundo do porão do regime, o aparelho do CIE chamado de "Casa da Morte". Ficava em Petrópolis (rua Arthur Barbosa, 668) e poucos foram os presos que saíram dela com vida. Montada em 1971, essa casa estava apensa à política de extermínio das lideranças do terrorismo de esquerda. Era uma das centrais de "desaparecimento" de pessoas.
O grupo terrorista a que Perdigão estivera ligado em 1968 voltou a agir em 1976. Sequestraram, espancaram, pintaram de vermelho e deixaram nu numa estrada o bispo de Nova Iguaçu, d. Adriano Hipolito. Depois explodiram-lhe o carro em frente à CNBB. Fizeram panfletagens em Brasília e, pela narrativa de dois deles, chegaram a planejar um atentado contra o presidente Ernesto Geisel.
A essa época, o CIE dedicava-se a inventar guerrilhas na Amazônia. Apurar os atentados que partiam de seus quadros, nem pensar.
É comum esbarrar na argumentação de que o combate ao terrorismo de esquerda exigiu sacrifícios de quadros das Forças Armadas. Isso é verdade e, no caso de Perdigão, custou-lhe uma deficiência física. Parece ofensivo afirmar que havia gente metida na repressão para preservar o conforto pessoal. No caso de Perdigão, isso é expresso. Ele contou que decidiu cortar sua carreira militar, que terminaria seguramente no generalato, porque não quis comandar tropa fora do Rio de Janeiro. Preferiu ficar no SNI, como coronel da reserva. Somando o salário à aposentadoria, ganhava bem mais que um general.
Por volta das 20h de 30 de abril de 1981, em Brasília, o chefe da seção de operações do SNI informou ao coronel Newton Cruz que se planejava no DOI do Rio um atentado contra o Riocentro. Segundo a narrativa de Cruz, essa informação fora obtida pelo coronel Perdigão. Preocupado, ele teria convencido uma equipe de terroristas a jogar a bomba perto da casa de força, longe da multidão.
Cruz informa que o coronel Freddie Perdigão Pereira estava na equipe que, uma hora depois, lançou a bomba na casa de força.
Uma patifaria da história fez com que um ciclo de poder militar começasse com os tanques de um tenente ingênuo que guardava o palácio presidencial e terminasse com a bomba de um coronel terrorista metido no atentado que desmoralizou a ditadura. (Perdigão permaneceu no SNI até 1987. Morreu dez anos depois, por conta de uma operação de apendicite.)


Golbery: "O Medeiros disse que foi coisa do Coelho Neto"

O capitão Wilson Machado estava no Riocentro para explodir a bomba que detonou o sargento Guilherme Pereira do Rosário. Onde ia explodi-la, só ele pode dizer. No estacionamento, seria um ato intimidatório. No show, um massacre. Na platéia estavam o filhos do comandante da PM do Rio e do ex-chefe do cerimonial da Presidência da República.
É da tradição das denúncias do período militar a transformação do general Newton Cruz, o Nini, na Geni da ditadura. Seja o que for, foi ele. Está entendido que em 1981 o general sabia que o capitão era parte de um atentado planejado pelos agentes do DOI e que o coronel Perdigão estivera na cena da bomba da casa de força. Não era o único a saber disso. Nini não conhecia Perdigão. Vira-o apenas uma vez, rapidamente. Já o chefe da seção de operações do SNI, coronel Ary Pereira de Carvalho, era velho conhecido da turma do CIE.
Que havia generais assegurando a impunidade dos terroristas, não há dúvida. Resta saber se os havia manipulando-os.
Quatro anos depois de deixar o poder, o general Golbery do Couto e Silva, fundador do SNI e chefe do Gabinete Civil da Presidência de 1974 a 1981, contou que "o Medeiros disse que o Riocentro tinha sido coisa do Coelho Neto, mas hoje em dia eu não sei se ele realmente tinha elementos para dizer aquilo. O fato é que ele disse".
Medeiros era o general Octavio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI. Coelho Neto vinha a ser o general José Luis Coelho Neto, que meses depois seria nomeado chefe de gabinete do ministro do Exército. Militara no radicalismo militar e no terceiro escalão do SNI. Fora o segundo homem do CIE e seu condestável na área operacional. Tinha no gabinete fotografias dos cadáveres da guerrilha do Araguaia. Ele e Golbery se detestavam. Num depoimento que prestou ao Centro de Pesquisas e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, disse o seguinte:
"Houve uma investigação no 1º Exército, mas não chegaram a qualquer conclusão. Não deu em nada nem podia dar.
- O senhor diz que houve uma questão corporativa?
Exatamente.
- Então o senhor admite que a iniciativa do atentado partiu de dentro das Forças Armadas?
É."
Golbery costumava dizer que nunca lhe explicaram por que Coelho Neto ficara sob suspeita de ter manipulado o atentado ao Riocentro, nem por que essa suspeita foi abandonada.
Em julho de 1981 o general escreveu uma carta a Figueiredo lembrando que o capitão era culpado e que o SNI tinha uma "dose de responsabilidade pessoal" no episódio. Quando nada, por acobertamento.
O general morreu em 1986, convencido de que chegaria o dia em que o capitão falaria.


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