São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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ARTIGO

A política no banco da frente

MAYLA DI MARTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No início dos anos 90, o mais proeminente cientista político latino-americano, Guillermo O'Donnell, lamentava o fato de que, na América Latina, a economia tinha passado para o banco da frente, o do motorista, e a política, para o banco de trás, o do passageiro. Foi assim durante os dez anos em que Fernando Henrique Cardoso esteve no comando da economia brasileira: como ministro da Fazenda, conduzindo a estabilização, e como presidente, implantando a agenda de reformas neoliberais. Mas o Consenso de Washington fracassou como modelo de desenvolvimento no Brasil, na Argentina e no Peru. Resta explicar o porquê.
Em dissertação de mestrado apresentada em 2000 à London School of Economics, sugeri que uma parte da explicação estava na implantação da reeleição presidencial, medida até então inédita na América Latina. Afinal, todos os países onde o Consenso de Washington deu errado adotaram o mecanismo. A análise da aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição no Brasil, aprovada em 1997, permitiu iluminar as dinâmicas do modelo neoliberal, apontando algumas lições. A principal é a de que faltou política. A outra revela uma ironia: FHC não era um verdadeiro neoliberal, mas o mercado acreditou que sim, e por isso, ele pôde errar (Lula não poderá).
A lógica de FHC, para defender a reeleição, era a seguinte: a recondução ao poder de um presidente da confiança dos mercados daria mais dólares para "bancar a aposta" do câmbio valorizado até resolver o problema fiscal. A dissertação procura demonstrar que, na prática, aconteceu uma inversão de sinais: a busca da reeleição transformou a aposta em populismo econômico (bancar o real para obter um novo mandato, sacrificando as reformas).
Em entrevista concedida para o projeto de pesquisa, ainda em 99, o presidente diz que, desde o início de seu governo, a volatilidade do cenário externo sempre tornou proibitiva a realização de uma correção no câmbio. Admite, no entanto, que, entre o fim de 96 e o primeiro semestre de 97, não havia empecilho e diz que faltou incentivo para mexer no câmbio. Afinal de contas, essa era uma manobra arriscada: sem ajustes das contas públicas, a desvalorização poderia trazer de volta a inflação. Mas essa é a prova de que FHC pecou por populismo econômico. Os populistas econômicos, por definição, só agem quando a crise é inexorável. Por isso, não foi coincidência que FHC só tenha corrigido o câmbio depois da reeleição e em meio a um ataque especulativo. E que só tenha iniciado o ajuste no segundo mandato, forçado pelo FMI.
O presidente eleito terá de fazer o ajuste que o atual não fez: a reforma da Previdência e a reforma fiscal. Uma lição da era FHC é que elas só serão possíveis com mais, e não, como insistiu durante a campanha o candidato derrotado do governo, com menos negociação política. As novas reformas só serão feitas se o governo conseguir granjear o apoio da sociedade, fazendo com que esta pressione o Congresso. Passar a política para o banco da frente, conduzindo a economia, pode causar arrepios nos que se lembram do populismo latino-americano de meados do século 20. Mas deve-se lembrar que colocar a economia no banco do motorista não impediu o populismo, embora de outro tipo.


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